segunda-feira, 30 de junho de 2008

EM DEFESA DA DEMOCRATIZAÇÃO PROGRESSIVA


EM DEFESA DA DEMOCRATIZAÇÃO PROGRESSIVA
Gilvan Cavalcanti de Melo


Diferente da idéia de um partido que deseje conformar a sociedade a si mesmo’
(Gramsci)


Não é fácil. Olhar cenário político através do diálogo virtual é mais difícil. Mas, me deixa uma sensação que perdemos a batalha das idéias na defesa das melhores tradições da cultura democrática, pecebista, inovadora. Observo muitas mensagens de militantes e dirigentes do PPS, que, inclusive, se autodenominam herdeiros dessa tradição, fazem opção de voto, nas próximas eleições, de primeiro de outubro, recusam, sob argumentos e matizes distintos, a política de coalizão e alianças. Exclui, exatamente, o núcleo forte daquela política. Recusa em nome de quê?
Do purismo? Do anticonservadorismo? Do antielitismo? Do exclusivismo? Do corporativismo partidário? Ou do “revolucionarismo”?

Mas, o que diz a experiência concreta? A história é política e filosofia. E ela já demonstrou que a progressiva democratização do Estado ocorreu, justamente, quando prevalecia uma política ampla, generosa, - reformismo pluriclassista, gradualismo forte. Quando essa concepção era excluída ou derrotada, predominava, com força, o prussianismo da modernização ou ‘revolução passiva’.

Os exemplos e as lições aliancistas, seus êxitos e erros, do passado podem ensinar – não copiá-los ou reproduzi-los, no presente. Quais ensinamentos posso extrair dos seguintes períodos históricos frentistas: a) bloco operário-camponês dos anos 1920; b) a frente única da aliança nacional libertadora (1934-1935); c) os comitês de ação em 1943; d) a aliança do fim do Estado Novo; e) política de frente única contra o golpismo pós 1954 (hoje, 52 anos do suicídio de Vargas); f) frente democrática e nacionalista no pré 1964; g) frente democrática na época da ditadura militar; h) aliança centro-esquerda (PMDB/PFL/PCB e outros) na transição dos anos 1980 (diretas, já!, constituinte); i) frente impeachment de Collor e coalizão governo Itamar.

O que tem isso, acima, a ver com as eleições? Ora, me vem logo na memória, uma expressão de Marx que diz: “Os homens fazem sua história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob as circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”. E, mais dizia: “A sociedade não se põe tarefas cuja solução já não existam as condições necessárias”. Vejo, então, que herdei um processo de democratização longo, com períodos autoritários. Desejo aprofundar essa democracia progressiva, representativa. E me inquieta e muito quando há tentativas de desmoralizar suas instituições, os partidos, a política.
Preocupa-me muito quando não há uma resistência, na mesma proporção. E, mais, ainda, tenho um forte sentimento que o governo Lula contribuiu muito para essa desmobilização democrática, para a quebra dos valores e princípios éticos e para apatia da população. É evidente que há coisas, processos que são irreversíveis, exemplo: o parlamento brasileiro.

Por isso, nesta eleição, estou convicto que há ‘condições necessárias’ de derrotar o projeto antipolítica do lulismo: essa é a grande política. Evidente, que não posso ficar de acordo com a expressão conformista do filosofo Hobbes: “deve-se preferir o presente, defendê-lo”. No caso, estaria negando a minha tradição de “reformismo forte”: conhecer o real, interpretá-lo e transformá-lo.



GRAMSCI : UM INOVADOR

GRAMSCI : UM INOVADOR*
Gilvan Cavalcanti de Melo**

Em 27 de abril de 1937 morreu aos 46 anos, Antonio Gramsci, o mais importante, talvez o maior pensador marxista ocidental do nosso século. A morte o derrotou no instante em que conseguira a liberdade. Dois dias antes recebera o documento assinado pelo Juiz do Tribunal Especial de Roma com a declaração de que fora suspensa qualquer medida de segurança em relação a ele.

Gramsci fora preso por ordem de Mussolini, em 8 de novembro de 1926. No processo farsa, montado pelo Estado Fascista, o promotor pediu aos juizes sua condenação, olhando para o Gramsci e alegando: “É preciso impedir este cérebro de funcionar”. A condenação ocorreu, mas não conseguiu impedir que, de dentro da prisão, fosse escrita uma monumental obra “FÜREWIG” {para a eternidade).

Condenado pelo fascismo, Gramsci fez com que sua inteligência penetrasse na densidade opaca da realidade. Rechaçando a vaidade demagógica de uns e o dogmatismo embolorado dos outros, não pensava em formular uma nova e original doutrina da práxis. Só mais tarde manifestou a consciência do valor de sua reelaboração do marxismo. Ousou, de dentro do cárcere, na solidão e solitário politicamente, desafiar a ignorância e as banalidades stalinistas. Foi, também, condenado pelos companheiros, sepultando-se no silencio sua obra e seu nome.

As categorias gramscianas sobre “Sociedade Civil”, “Estado ampliado”, “Hegemonia”, “Guerra de movimento”, “Guerra de Posições”, “Revolução Passiva”, “Revolução – Restauração”, “Bloco Histórico”, “O Príncipe Moderno”, “O Partido como Intelectual Coletivo” e tantas outras, são hoje, nos meios acadêmicos, reconhecidas e estudadas, como instrumentos de análise da modernização conservadora brasileira e suas complexas super-estruturas. Essas categorias e as rigorosas análises intelectuais sobre as diferenças da Revolução Russa de 1917 (Oriente) e o Ocidente são também fonte de inspiração e reflexão dos combatentes modernos do socialismo com democracia.

Gramsci, modesto com o era, não deixou de polemizar com o pensamento mais rigoroso e mais fecundo que formava grandes correntes de opinião. Assim o faz quando estuda o conceito de “classe política” de Gaetano Mosca em relação com o conceito “elite” de Vilfredo Pareto. É Benedetto Croce, o mais importante filósofo italiano, seu principal interlocutor. O conjunto dos “cadernos do cárcere”, na verdade, é um combate em duas frentes: contra o pensamento especulativo e idealista (Croce) e a chamada ortodoxia vulgar e positivista do marxismo.

O ensaísta José Guilherme Melquior, em recente artigo na Revista “Presença”, nº 11, com o título de “Marxismo e Modernidade”, referindo-se ao ultimo livro “Marxismo Ocidental”, escreveu: “as categorias Gramscianas, sua epistemologia humanista, seu enfoque nada economicista, seu discurso de “Croce Leninista”, tudo o separa nitidamente do marxismo clássico. Mas, em compensação, nem um pouco, em Gramsci,de Kulturkritik ou de golpes de estado de especulação apocalíptica. Diante disso como resistir à tentação de escrever um capítulo sobre essa obra tão rica e fecunda, dando-lhe o papel de herói (ao lado de Hegel) num livro cheio de vilões teóricos?”.
A vida de Gramsci, pelo modo, lugar e tempo de sua concretização, poderia ser designada como a de um homem derrotado. Na ignorância de uma época faz iluminar a extraordinária força moral e o rigor intelectual do homem que, sem se deixar abater, fez de suas derrotas novas fontes de energia para recomeçar a avançar. Suportou o seu destino, com coragem e sobriedade intelectual, sem concessões ao vulgar e patético, conservando sempre o controle racional dos sentimentos.

* Artigo publicado no Jornal do Commercio – Recife - domingo, 8 de maio de 1988 = Caderno C , pág. 7.

** Gilvan Cavalcanti de Melo é pernambucano, membro do Conselho Editorial da Revista Presença (Rio de Janeiro) e do Conselho Fiscal da Cooperativa Brasileira de Cinema (Rio de Janeiro).

A ESQUERDA DEMOCRÁTICA E A CONSTRUÇÃO DE UM NOVO REFORMISMO

A ESQUERDA DEMOCRÁTICA E A CONSTRUÇÃO DE UM NOVO REFORMISMO
Gilvan Cavalcanti de Melo
*

Ao andar se faz o caminho
e ao voltar a vista atrás
se vê a trilha que nunca
se há de voltar a pisar.
Caminhante, não há caminho,
apenas estrelas no mar.

(Antonio Machado)

Introdução

Na abertura do Encontro Nacional do PPS que se inicia em Brasília neste começo de dezembro cujo tema - Uma Nova via para o Brasil –, tomo a liberdade de apresentar algumas idéias para o debate. É evidente que as opiniões abaixo expostas têm uma forte influência do pensamento de Gramsci, discípulo do filósofo hegeliano Benedetto Croce e seu principal critico, fundador do Partido Comunista Italiano, prisioneiro de Mussolini durante o fascismo, um dos mais profundos críticos do stalinismo e das principais soluções políticas impostas ao movimento operário e comunista mundial. Grande parte da sua força intelectual reside em algo cada vez mais raro hoje: ele jamais esquece que a principal fonte de conflitos políticos continua a ser a distribuição desigual da propriedade. Na análise desse conflito, entretanto, coloca a ênfase nos problemas de direção cultural e política. Assim, em sua forma de abordar a realidade, recusa separar a política e sociologia, da economia e da cultura, e concede centralidade à batalha das idéias, vista sempre em conexão com o desenvolvimento das forças sociais reais.
I
· A esquerda brasileira pré-64 privilegiou temas como a superioridade do Estado sobre a sociedade civil, das empresas públicas sobre as empresas privadas. Naquela época, o mercado era uma idéia fraca;

· A velha esquerda – comunista e social -democrata – tende hipertrofiar o papel do Estado;

· Defende a propriedade estatal;

· Vê o Estado apenas como instrumento de redistribuição de renda;

· Concebe o sindicato como instrumento político e o conflito social como arma;

· Tem uma segunda vertente a ser abandonada: o revolucionarismo que pegou carona nos movimentos sociais de base, nos movimentos das igrejas e no sindicalismo do ABC do final dos anos 70. Uma parte da esquerda só mobiliza para a participação política quando vê chance para instalação de mudança revolucionária, em vez de participação política permanente e optar por coligações. Essas duas esquerdas – a da estadolatria e a do revolucionarismo – são o que há de mais equivocado, atrasado e anacrônico.

II
· A velha direita tanto quanto a nova procuram reduzir o Estado ao mínimo;

· Ambas defendem a propriedade privada;

· Querem desmantelar o Estado;

· Crêem que a organização dos interesses dos trabalhadores é ruim, por isso é inimiga dos sindicatos;

· Querem o Executivo ultrapassando o Legislativo em matéria de legislação sem garantir previsibilidade e estabilidade democrática;

· Querem a Justiça e as Leis racionalizadas a partir de valores de mercado.
III
· A Esquerda Democrática não acredita que a expansão das despesas públicas seja a salvação para todos os males. Entende as vantagens das finanças públicas ordenadas e de uma dívida pública redimensionada em relação a riqueza do país. Objetiva maior responsabilidade da sociedade civil e de suas representações, inclusive fora dos tradicionais canais dos partidos. Promove o princípio da descentralização, fortalecendo os governos municipais a partir de uma visão federativa. Persegue democratização maior das decisões públicas.

· Procura uma “nova economia mista” e defende a intervenção do Estado, não como proprietário direto de atividades econômicas, mas como árbitro da concorrência, regulador eficiente do mercado. Um Estado que reduza sua presença em setores que são mais inerentes ao mercado e ao mesmo tempo concentre seus esforços na regulação, nas políticas antimonopólios; objetive alcançar níveis satisfatórios de investimentos e de cuidados em relação aos bens e serviços públicos coletivos;

· Vê o Estado como instrumento de solidariedade e de igualdade de oportunidades, universal, vinculado aos direitos dos cidadãos, e exatamente por isso a ser construído de modo que venha a ser flexível e sustentável. E ao lado dele, um Estado específico e não genérico, orientado para as efetivas situações das necessidades humanas fundamentais. Um Estado voltado para investimento em capital humano, que tenha como centro das suas atribuições a qualidade da vida dos cidadãos e dos trabalhadores;

· Vê nos sindicatos de trabalhadores um elemento essencial de democracia e de organização social. Sabe que para conjugar crescimento e equidade é necessário a negociação. Compreende os benefícios de uma inflação baixa, mas tem clareza de que, para manter a inflação baixa sem golpear as camadas mais frágeis, apenas a política monetária não é suficiente: são necessários também o consenso social e uma política de rendas;

· Não se contenta com uma visão puramente monetária do crescimento econômico, o qual não está inteiramente refletido na medida quantitativa dos produtos. O crescimento não é suficiente se não acarreta uma redução das desigualdades e um aumento das oportunidades de escolha e de vida para todos os cidadãos;

· Não pode limitar-se a avaliar o país à base do índice das Bolsas de Valores, nem os sucessos nacionais à base do PIB. O PIB não leva em conta o estado de saúde das pessoas, dos cidadãos, homens, mulheres, crianças e idosos, da qualidade da sua educação e da alegria de seu lazer.

Esses índices são indiferentes às condições de trabalho de nossas empresas, fábricas, escritórios, escolas, hospitais e à segurança nas ruas, casas e apartamentos. Não contempla a beleza da nossa música, poesia, teatro e cinema, a inteligência dos nosso debates políticos e culturais ou a honestidade de nossos funcionários públicos – médicos, professores, economistas, administrativos, trabalhadores da saúde. Não leva em conta nem a justiça de nossos juizes, tribunais, nem a fraternidade e solidariedade das relações entre os cidadãos.

· Recusa a idéia purista de que o mundo vai se organizar a partir dos movimentos sociais, de que é possível chegar a ser dirigente e dominante sem cumprir a lógica política, sem se unir. Só que é exatamente na política que os diferentes interesses encontram uma maneira de expressão comum. É justamente na política que estão as formas concretas de transformação. Esquerda que acha que fazer aliança é se contaminar, adquirir infeção por contato foi derrotada três vezes, em 1989, 1994 e 1998. A Esquerda Democrática tem que se orientar pela política de alianças amplas e buscar, como núcleo dessa política, o centro democrático;

· Tem o desafio de fazer da subjetividade dos indivíduos o motor de uma nova e grande política democrática. Com o desmoronamento dos mitos do coletivismo autoritário as respostas às carências humanas não podem ser encontradas no individualismo e na luta do homem contra o homem, mas de afirmar ideais de liberdade com responsabilidade aliada à idéia de solidariedade. É neste sentido profundo que a Esquerda Democrática fala de democracia como meio e fim. Este desafio exige um esforço enorme, porque só encontrando-se, dialogando e não fechada, idéias e culturas diferentes poderão contribuir para o novo projeto de libertação: um humanismo moderno;

· Não pode falar de humanismo moderno sem cair no abstrato se não ajustar contas com o capitalismo moderno o qual pelas lógicas de seu funcionamento – finanças, concentração de poder não só econômico, uso distorcido da ciência e tecnologia –, prisioneiro da própria espontaneidade, está cada vez em menos condições de superar as contradições dilacerantes das desigualdades de um país de milhões de cidadãos que não podem ser incluídos no modelo de consumo atual;

· Reconhece que no Brasil nunca houve uma revolução, mas sim uma modernização conservadora “pelo alto” e que não há no horizonte nenhuma revolução. Quer fundar um Novo Reformismo cujos valores de igualdade e liberdade não sejam contrapostos como no passado. O desafio é recompor valores que entraram em crise na sociedade brasileira: do meio ambiente, da justiça, da cultura, da saúde, da segurança. Reinventar a relação entre crescimento e bem estar regulado através de uma programação democrática definida como moldura para decisão, avaliação e transparência das políticas públicas.

Rio de Janeiro, 28 de novembro de 1999

* Membro do Diretório Nacional do PPS , Executiva Estadual do Rio de Janeiro e do Conselho Diretor do Instituto Astrojildo Pereira.

ELEIÇÕES: NOVO CENÁRIO

ELEIÇÕES: NOVO CENÁRIO
Gilvan Cavalcanti de Melo
*

O segundo turno das eleições municipais, votação, apuração e seus resultados, foram os atos finais de um espetáculo democrático. Fecharam-se as cortinas. Nova peça é anunciada. Começa nova apresentação: as eleições parlamentares – estaduais e federais -, senadores, governadores e, principalmente, presidência da República, em 2006.

A originalidade das últimas eleições é que quase todos os partidos se consideraram vitoriosos. Os dados, já amplamente divulgados, só confirmam essa curiosidade. Só se modificam as posições dos vitoriosos quando se analisa os números de prefeitos, vereadores ou a quantidade de votos obtidos. Esta observação é a confissão dos atores políticos, de todas as correntes partidárias, do fortalecimento do pluripartidarismo no país.

Com o quadro demonstrado pelos resultados das eleições municipais, o cenário da eleição presidencial já está visível? Há uma forte tendência que coloca o PT e o PSDB como protagonistas principais na disputa. Nasceram em São Paulo, têm uma sólida implantação no Estado, têm vocação de hegemonia, ocupam o mesmo centro político, compartilham a vocação e semelhança para a centralização administrativa e a política macroeconômica. Os dois partidos foram os únicos que apresentaram candidatos próprios nas quatro eleições no pós-regime militar. É um elemento importante para se determinar se poderá haver uma polarização ou não, na disputa. Pelos dados fica descartada a tendência ao bipartidarismo – o americanismo por cima.

Outros grandes partidos como o PMDB e PFL – tiveram papeis fundamentais no período da transição do regime militar para a democracia – mantiveram boas votações, mas parece que abriram mão de serem atores ou protagonistas principais na disputa, para serem coadjuvantes com vocação ao poder municipal e estadual.

É consenso entre os articulistas, analistas políticos e especialistas em análises eleitorais que o PPS se destacou nas eleições com um crescimento expressivo, tanto em números de prefeitos e vereadores, como em número de votos. Seus 306 prefeitos com 5.947.853 (votos no primeiro turno), 2.817 vereadores, 5.299.535 votos foi o fato que mais chamou a atenção. Outro dado fundamental: não esquecer que o PCB/PPS apresentou candidatura própria nas eleições presidenciais de 1989,1998 e 2002, não abrindo mão de sua vocação nacional e não aceitando o papel de coadjuvante dos atores principais.

Outra força que emergiu fortalecida foi o PDT com seus 305 prefeitos, 5.255.238 (votos no primeiro turno) e 3.252 vereadores, 6.124.376 votos. O PPS e PDT, abertas perspectivas de uma nova conjuntura, poderão transformar-se em atores, nos papeis principais do novo cenário?

nov/2004


* Membro do Diretório Estadual/RJ e do Diretório Nacional do PPS.

A TRANSIÇÃO BLOQUEADA

A TRANSIÇÃO BLOQUEADA
Gilvan Cavalcanti de Melo

“O Brasil é uma sociedade em construção que apresenta heterogeneidades brutais. Nesses casos, as responsabilidades do Estado enquanto regulador da sociedade são bem maiores. Ninguém pode corrigir as desigualdades que existem no Brasil a não ser através da intermediação do Estado. Não somente o mercado não poderá fazê-lo, como também ele tem a tendência de agravar as desigualdades sociais”(Furtado 1996)


A construção democrática da nação foi interrompida com o golpe militar de 1964 , quando se inaugurou um regime autoritário, afinal derrotado em 1985 no Colégio Eleitoral. Aqueles que acreditavam que a substituição do antigo regime traria a redefinição imediata do sistema político ficaram desiludidos. Quase dez anos decorridos da promulgação da Constituição de 1988, não foram suficientes para corrigir as deformações do passado e promover as reformas propostas para diminuir o peso da burocracia do Estado, restituindo-lhe a capacidade de regular a economia e praticar uma segura política de desenvolvimento sustentado, com melhor distribuição de renda.

Fernando Henrique Cardoso fortalecido com o êxito do plano real ,lançado meses antes de sua eleição, esperava vencer rapidamente as resistências dos grupos sociais patrimonialistas de tradição ibérica e conseguir aprovar os projetos de reforma fiscal, da previdência social e administrativa, obrigatórios para completar a estabilização da economia, recuperando a capacidade de poupança e reinaugurar um novo ciclo de crescimento econômico, acompanhado de desenvolvimento social mais igualitário, o qual estava ausente no passado, a tal ponto do país ocupar um dos primeiros lugares no mundo em desigualdades.

Passados quase três anos as reformas não foram concluídas. Anunciada no começo do Governo como terminada, a transição ainda não teve o epílogo. Mesmo quatro anos constitui um período de tempo muito curto para transformar uma nação complexa e paradoxal como o Brasil, ainda mais agravado pelo último ciclo de “modernização conservadora”. Uma tentativa de balanço deste período do governo não permite tirar conclusões definitivas, prontas, acabadas e sim provisórias; no máximo pode-se destacar algumas tendências e certos problemas.

Paradoxalmente o Brasil é, ao mesmo tempo, prisioneiro do sucesso do plano real e vítima de uma transição bloqueada. A eliminação de altas taxas de inflação se traduziu pôr um aumento do poder de compras das camadas mais pobres, gerando um crescimento de consumo .No início, sob o efeito simultâneo da estabilização monetária e crescimento econômico, houve uma redistribuição de renda em favor das camadas de trabalhadores de baixos salários e dos autônomos do setor informal .Um indicativo para demonstrar isso é o valor da cesta básica: no inicio do plano real valia R$ 106,90, e no dia 15 de setembro o custo era de R$ 109,70. Aumento de 3%(Jornal do Brasil 1997).Este impulso distribuitivo está esgotado? Recentemente o Ministro da Fazenda afirmou:
Ninguém em sã consciência poderia imaginar que a estabilidade econômica levaria, pôr si só, a um processo continuado de redistribuição de renda no país. O efeito inicial de melhora na distribuição de renda vem no período em que se baixa a inflação vergonhosa para uma inflação civilizada, depois precisa ser substituído pôr outras ações. (Malan 1997). Temendo uma aceleração e um superaquecimento da economia com reflexo no índice inflacionário o governo tomou algumas medidas restritivas que inibiu a expansão ,com as inevitáveis conseqüências para o nível de emprego e os salários. Só na grande São Paulo ,pôr exemplo, a massa salarial entre julho/94 e maio/97 baixou 14,8% e o salário médio, no mesmo período teve uma queda de 14,1%.(Desep/Dieese 1997).
A concentração de renda voltou a crescer, depois de uma queda no inicio do plano real. A distância entre ricos e pobres que era de 15.7 vezes em agosto de 1994, chegou em maio de 1996 a cair para 11,33 e já em maio deste ano voltou a subir para 13,23(Unicamp 1997).

Com a inexistência de uma reforma fiscal a área do governo responsável pela política econômica não tem a audácia de alterar a taxa de câmbio – tema de controvertida polêmica– aparentemente sobrevalorizada. O processo de abertura comercial acompanhou consigo uma grande expansão das importações alterando a posição da balança comercial ,tradicionalmente com superávit para torna-se até o momento deficitária. Assim o país depende cada vez mais de afluxo de capital externo para equilibrar seu balanço de pagamento e o serviço da divida externa.
As reservas em divisas alcançam um nível muito elevado, mas ao preço de elevadas taxas de juros. Com isto o Brasil passou a ser local particularmente atraente para os chamados capitais voláteis, com os riscos que isso possa acarretar. As altas taxas de juros provocam uma elevação muito grande da dívida pública interna do governo federal, estadual e municipal, levando os bancos estaduais a seu desendividamento, seguido de privatizações, tema polêmico e bastante difícil de administrar. Ao mesmo tempo, o fim da inflação elevada debilitou o sistema financeiro privado obrigando o governo a intervir para salvá-lo.
O tema dos direitos humanos ao qual o governo tem dado muita importância, constitui um domínio no qual realizam-se grandes avanços nesses quase três anos de mandato. Programas dedicados a esses direitos foram lançados ,contendo numerosas propostas de ação governamental em diversos campos que vai da proteção da segurança dos cidadãos, a reforma do sistema judiciário, a proteção do direito à igualdade de tratamento perante a lei, medidas com relação a criança e adolescente. O campo é muito vasto e não se pode esperar resultados grandiosos imediatos. Mas, a existência do programa dá uma clara sinalização do governo com o compromisso nessa direção.

A grande dificuldade será garantir progressivamente e de forma eficaz todos os direitos democráticos, aí incluídos os direitos econômicos, sociais e culturais para o conjunto da sociedade brasileira , num país tão profundamente desigual, com alta concentração de renda ,uma estrutura fundiária atrasada, disparidades enormes nos salários, um desemprego que já atinge níveis elevados nas grandes áreas metropolitanas, sem esquecer o subemprego crônico.

O país tem uma estrutura agrária atrasada. À primeira vista as condições são favoráveis para uma reforma fundiária democrática. É paradoxal ver milhões de trabalhadores sem terra e de outro milhões de hectares de terra sem uso, improdutiva. O momento é marcado por conflitos ,muitos deles violentos e a relação dos camponeses sem terra com o governo difícil. O governo proclama sua vontade de acelerar a distribuição de terras via assentamentos de famílias com objetivo de alcançar metas que ultrapassem todos os governos anteriores.
Mesmo assim esta ação constituirá uma realização bastante pequena, tendo em vista as reais necessidades concretas da nação e ,também, as reservas disponíveis.
O programa de apoio à agricultura familiar (Pronaf),é o reconhecimento tardio da importância do potencial deste segmento . Por muitos anos , a agricultura ficou entregue ao lucro das grandes explorações agrícolas e os recursos financeiros favorecendo a grande produção e a grande propriedade. Grande parte de milhões de brasileiros rurais vive em pequenas e médias propriedades familiares, em decadência pela ausência de medidas concretas de apoio. O Pronaf pretende interferir num setor socialmente frágil, no qual a reabilitação e modernização poderá traduzir-se numa redução do contigente de emigrantes que afluem às cidades ,aumentando o número de desempregados urbanos. No entanto, a aplicação do programa realiza-se de forma lenta, e os recursos colocados à sua disposição são pequenos se levado em conta a grandeza do problema.

Enquanto a questão agrária gera polêmicas, amiúde violentas, a reforma da educação provoca simpatias e amplas adesões. Os salários dos professores ,extremamente baixos em determinadas regiões do interior ,foram revalorizados com a criação de um fundo de desenvolvimento do ensino básico.
Todas as escolas primárias estão sendo equipadas com antenas parabólicas, aparelhos de televisão e outros equipamentos destinados a reciclagem dos professores e cursos para os alunos. Ao mesmo tempo iniciou- se uma discussão para a reforma da universidade, democrática, descentralizada, objetivando maior autonomia administrativa e financeira das unidades federais de ensino superior.

É necessário ressaltar os sucessos obtidos na área da política externa. O governo multiplicou seus deslocamentos para o exterior ,estabeleceu um diálogo com chefes de Estados e de governos da principais nações. Mas foi na América do Sul que desenvolveu o essencial de sua atividade, reforçando e ampliando o Mercosul, ao mesmo tempo, chamou para Brasília a instalação do secretariado permanente do Tratado de Cooperação da Amazônia. Também está contribuindo para criar uma matriz energética articulada em uma ampla aliança e cooperação sul-americana, estabelecendo uma premissa para a criação de uma área de livre comércio alcançando todo subcontinente. O Brasil se prepara, assim, para desempenhar um papel ativo no panorama internacional na qualidade de potência regional. Está em cena o tema do Estado -nação, seu papel no processo de globalização. É possível conciliar a globalização com as demandas de igualdade social dentro das fronteiras nacionais? Só o futuro dirá qual a resposta a esta indagação.

Política industrial, política de empregos, reforma agrária. É um projeto de conjunto e necessário. A tarefa é enorme, porque se trata de rejeitar a herança do passado, inclusive, o mais recente. Ao mesmo tempo escapar à lógica oculta de expansão econômica através da desigualdade social. Essas questões fundamentais poderiam ser objeto de debates e soluções se superassem as falsas dicotomias e as divisões conflituosas que colocam na conjuntura os neoliberais duros e puros, fundamentalistas do mercado, de um lado, e de outro uma esquerda fideísta da estadolatria e sectária.

Esses são os “fatos”. Essas são as “circunstâncias”. E como agiram os atores diante deles? Quando afirmei que era necessário indicar os sujeitos históricos (Melo 1997) queria me referir ao movimento real da sociedade que no passado participou do transformismo do autoritarismo ao Estado de direito, tais como os partidos políticos, o novo sindicalismo do ABC, os novos intelectuais, os novos empresários, os movimentos sociais de bairros e favelas, o sindicalismo rural, etc. Foram esses sujeitos que se colocaram na dianteira das grandes mudanças nas últimas décadas (Cardoso 1997). E, atualmente, como agem esses atores nas transformações que estão ocorrendo? pensam e atuam como se tivessem perdido suas idéias e valores (D`Alema 1997), não restando outra saída senão resistir às reformas e as “transformações moleculares”. Não entendem que a direção e o desfecho das mudanças estão vinculados ao agir dos sujeitos históricos diante das “circunstâncias”.
Esses atores sociais, em vez de defenderem o velho estatismo deveriam colocar em discussão o problema de um novo Estado democrático, sem corporativismo, que tendo como centro a cultura, a formação, a educação permanente dos indivíduos: condições para que o processo inovativo não empurre as pessoas para as margens, mas ofereça-lhes a possibilidade de viver melhor e de realizar plenamente a própria personalidade (D`Alema 1997).

28.09.97

Gilvan Cavalcanti de Melo
Membro do Diretório Nacional do PPS


Referências Bibliográficas

Cardoso, Fernando. Revista Veja nº 36 10.09.97
D`Alema, Massimo. Jornal Estado de São Paulo 30.08.97
_______________. Idem.
Furtado, Celso. Jornal dos Economista - nº 88 agosto de 1996
Malan, Pedro. Jornal do Brasil 16.09.97
Melo, Gilvan Cavalcanti. Reunião D.Nacional PPS -Brasília 20.a 22.06.97
Resenha Desep nº 11 de 13.08.97.
Unicamp. Pesquisa do Cesit (Jornal O Globo 10.08.97)
O RESGATE DA POLÍTICA NAS ELEIÇÕES DE 1998
Gilvan Cavalcanti de Melo
*

Para uma discussão sobre as eleições do presente ano, no Estado do Rio de Janeiro, é fundamental uma reflexão não só imediata – possibilidade de reeleger os atuais parlamentares e bem como aumentar sua representação – mas, também, mediata – o dia seguinte das eleições. É, o melhor, da tradição do PPS, a herança da cultura política de pensar o país em processo, em transformação, tentando descobrir, dentre as complexidades, as principais tendências do processo político, sem o exclusivismo partidário ou o “corporativismo de partido”.

Hoje o núcleo no qual se polariza o debate político é a agenda da reforma constitucional da previdência social e administrativa. Ontem eram as reformas constitucionais da ordem econômica: petróleo, empresa nacional, telecomunicações, etc. Entre uma geração e outra a reforma constitucional sobre a reeleição dos atuais mandatários dos poderes executivos: união, estados e municípios. Com esta pauta o presidente Fernando Henrique teve que fazer uma opção de alianças fundamentais, do centro reformista – PSDB, PMDB–, a direita up to date até a direita old fashioned – PFL, PPB, PTB, etc.– , daí as grandes dificuldades, contradições, as limitações, morosidade e as próprias ambigüidades do governo. Isto é, os partidos – PT, PDT, PCdoB e PSB – contrários, em princípio, às reformas não entenderam, até agora, que a verdadeira oposição às reformas do Estado e as mudanças está exatamente na própria base de sustentação do governo FHC.

Concluída esta geração de reformas e mantido o quadro atual de candidatos à sucessão presidencial, terá início um provável segundo mandato de FHC. Neste cenário abrir-se-á uma nova conjuntura, um novo horizonte político diferente do instalado e mantido no atual governo.
Com certeza o presidente da República não será mais prisioneiro da necessidade de garantir quorum de 308 votos às reformas; as correntes mais conservadoras irão buscar um caminho próprio de oposição; os sociais-liberais do PFL tentarão fortalecer suas posições com as quais possam concorrer à sucessão presidencial de 2002 com candidato próprio; o PSDB, obviamente, não verá esse movimento se desenvolver como simples observador dos fatos. Neste novo cenário surge uma tendência, no início, do segundo mandato de FHC para a dissolução da aliança que permitiu a eleição, garantiu o atual governo e a sua provável reeleição.

É justa a preocupação de conceber como prioridade as alianças nas eleições proporcionais no Rio de Janeiro? Sim, é correta. Mas não são quaisquer alianças. E aí não tem argumento que possa justificar um pragmatismo político indiferente a qualquer tipo de perspectiva futura. A aliança nas eleições proporcionais deverá ser realizada dentre os partidos os quais participem do bloco que apoiem um candidato nas eleições majoritárias comprometido com aquela política ampla, democrática e seja capaz de compreender e atuar numa nova conjuntura, um novo quadro político mais complexo que é possível prever alguns contornos desde já. A esquerda brasileira tradicional, principalmente, no Rio de Janeiro será capaz de perceber essas novidades no cenário político? O candidato do PPS à presidência da República deve ter o objetivo, mesmo situado na oposição, de, em primeiro lugar, defender a estabilidade econômica como uma conquista a ser preservada. Em segundo lugar, de trabalhar para a deflagração de um movimento para a formação de um novo bloco político democrático e progressista, no qual as forças de centro-esquerda têm papel fundamental, capaz de operar as transformações de nossa estrutura sócio-econômica.
A afirmação da radicalidade democrática é o nosso principal compromisso! Em terceiro lugar, deve ser um movimento que de dialogue com o PSDB e PMDB, desfazendo os impasses e propondo soluções viáveis que favoreçam o resgate da política, em meio a uma profunda desqualificação da esfera pública e da atividade política. Simultaneamente, essa candidatura deverá interpelar as velhas concepções da esquerda. Ou seja, trata-se de fugir da indiferença das alianças e armadilhas bipolares através de uma larga e generosa política que inclua o centro político em suas intervenções de alcance geral, sem perder o dinamismo e energias das suas intervenções particulares e regionais.


Rio de Janeiro, 26 de Janeiro de 1998.

* Membro efetivo do Diretório Nacional e da Executiva Estadual do Rio de Janeiro do PPS, (texto apresentado na reunião da Executiva Estadual do PPS - 26/01/98).

POR UMA AGENDA


POR UMA AGENDA
Gilvan Cavalcanti de Melo
*

Das discussões travadas com alguns amigos em artigos ou em conversas sobre o papel da esquerda, sua função, agenda política, lutas, programa e visão de mundo no quarto ano do novo século, peguei um tema da controvérsia. Mas, antes me ocorreu uma dúvida: discutir um programa de governança ou a concepção de mundo de uma agenda política? Estou convencido que o diálogo que pretendo propor prioriza a segunda opção.

Inicio esta conversa partindo da premissa que os atores políticos contemporâneos, individuais e coletivos, identificam as origens da esquerda no século XIX e no ocidente europeu. O símbolo mais forte daquela época foi, sem dúvida alguma, o “Manifesto Comunista” de 1848, escrito por Marx e Engels. Naquele documento se anunciava ao mundo: “Um espectro ronda a Europa: o espectro do comunismo”. Os pesquisadores demonstram que data do mesmo período o aparecimento da influência no Brasil daquela idéia1. Considero, também, que os atores reconhecem que sua substância pode ser vista, analisada por quatro aspectos ou ângulos: a) se afirmou e se desenvolveu no âmbito do estado nacional; b) o trabalho tomado como valor primário, básico, principalmente, o industrial. Destacando-se não só como fator social, mas como elo espiritual de sua natureza; c) o socialismo real, forma de regulação estatal e burocrático da sociedade, a partir do qual o movimento comunista marcou sua essência, natureza no século XX; d) o estado do bem-estar a partir do qual a outra vertente da esquerda, a social democrática européia construiu, também, sua identidade.

Todo este cenário se modificou. Nenhum daqueles elementos existem mais ou permaneceram imutáveis. Julgo amenizada a divisão de 1914, a esquerda, com todos os seus matizes, mas, orgulhosa de sua tradição e zelosa dos valores que lhe deu identidade, é suficientemente inteligente e virtuosa, no esforço de pesquisa e de análise, para incorporar as novidades da vida e dialogar com os novos fenômenos. E a partir dessa investigação, desse processo, descobrir, criar uma renovada concepção estratégica para o mundo do século XXI. Aí me vem a evocação da antiga e dicotômica interrogação gramsciana: ela deve privilegiar a conquista de governo, mesmo sendo minoria na sociedade, ou construir uma direção ético-político, cultural, um ator reconhecido pelo conjunto da sociedade, uma hegemonia?

Pergunto-me qual o método que se pode utilizar na descoberta do novo? Penso que o melhor roteiro é seguir a pista dos quatros aspectos que expus no bloco inicial. Existem distintos ou diferentes elementos a serem considerados para se analisar os novos fenômenos. O primeiro e mais importante é o da mundialização. Vive-se um mundo único, interdependente, mercado unificado. Observada esta realidade há de se reconhecer uma pluralidade de alternativas.
Não existe fatalidade de caminho único. O desafio é saber como a esquerda poderá elaborar uma estratégia democrática para se adaptar a globalização. A aproximação, o acesso a uma possível solução é o multilateralismo e não o unilateralismo, presente nas relações políticas atuais. Assumindo esta opção, acredito que seja vital, imprescindível, essencial, discutir, polemizar, questionar o quadro das instituições internacionais vigentes. Um fato real, na circunstância, é que não existe multilateralismo sem instituições internacionais democráticas e fortes.

Acredito que é inconcebível, inviável um multilateralismo sem uma cooperação regional e uma política de integração. Em se pretendendo trabalhar por um sistema com esta característica, que seja sólido e eficaz, se deve fortalecer e desenvolver a construção política de integração regional. Neste quesito a nova direita e a renovada esquerda não pensam iguais. Para a primeira a política de integração regional tem como pressuposto o fundamentalismo do livre mercado.
Já para a segunda, a concepção de integração, creio, deverá ser a construção de uma nova substância política e institucional que incluam mercado único, moeda única, política macroeconômica convergente, políticas sociais, de segurança, relações exteriores e até uma constituição única. Nesta mesma lógica me inquietam outras indagações: a mundialização pode ser apenas mercado, economia? Ou exige uma estratégia para a globalização política, dos direitos, da democracia? Compreendo que o desafio básico, fundamental é: orientar este processo real de maneira democrática, cimentado sobre os valores e princípios como liberdade, igualdade e a dignidade humana.

Outro aspecto essencial, determinante, indispensável é a questão da transformação do trabalho. Parece-me evidente que se coloca, em primeiro lugar, a existência de uma premissa: a esquerda no mundo atual reafirma sua opção. O mundo do trabalho, não só industrial, mas de todos os trabalhos, é mais do que objeto, uma análise social e proposta de política econômica. É o elemento fundador da sua essência política e democrática. O trabalho é o espaço principal da consciência de si e dos próprios direitos sociais e políticos. Não posso negar e, ninguém com mínimo de conhecimento, poderá deixar de reconhecer que o trabalho sofreu uma grande modificação. Já existe, concretamente, a sociedade da flexibilização. Não só do trabalho. Também se flexibilizou a produção, o tempo e até a comunicação. Entendo que a esquerda, com a idéia de ser dirigente ético-político e vocação de governar, com cultura moderna, não pode usar como sua referência a atitude de contestação, oposição, impugnação em relação a flexibilização. Reconheço, é indiscutível a existência de uma questão, um problema, um risco, um perigo: como se evitar que a flexibilização se transforme em precariedade? As experiências concretas demonstram que se procura introduzir muita flexibilidade para garantir às empresas um ciclo produtivo de maior competitividade. É obvio que isto se transforma em condições de precariedade.
O grande desafio, a dificuldade a se resolver é como construir uma sociedade na qual se trabalhe e se viva de forma flexível e ao mesmo tempo cada cidadão tenha garantido a proteção social e seus direitos fundamentais. Nenhum ser humano, homem ou mulher, escolhe livremente ou tem vontade de viver, ter um modo de existência insuficiente, escasso, sem dignidade, precário. Esta é a demanda. Encontrar os atalhos, os caminhos, as estradas.

O terceiro elemento e, talvez, o mais emblemático que não posso subestimar é o que marcou a esquerda comunista: a revolução russa, o socialismo real. Lênin e seus companheiros fizeram a revolução de outubro de 1917 com as palavras de ordem liberdade, igualdade, fraternidade, justiça, paz e pão, em um país atrasado, isolado com imenso conglomerado de nacionalidades em distintos graus de desenvolvimento. Uma nação na qual se mesclavam elementos do capitalismo com remanescente do feudalismo. Pergunto: como poderia naquelas circunstâncias superar tantos obstáculos para ultrapassar etapas? Aquele projeto gigante foi neutralizado pelas condições concretas – a contradição entre os objetivos democráticos e socialistas e as circunstâncias de país atrasado e rapidamente invadido, isolado pelas potencias ocidentais. Em seguida os descaminhos, novas invasões, a segunda guerra mundial. Aquela revolução que mudou a face do mundo não pode ser vista como um erro ou como resultado de perspectivas catastróficas da vontade de poder dos bolcheviques. Este mundo não existe mais. É claro que deixou marcas e seqüelas.

Não posso deixar de registrar que o medo da revolução socialista mundial derivado de 1917 e sustentado pelo estado soviético também teve conseqüências e marcas visíveis. Inquietou, criou o temor às forças políticas ocidentais. De maneira inesperada ganharam força, impulso, interpelações pragmáticas e essas inspiraram as correções, os ajustamentos, as modificações na relação capital-trabalho: os programas sociais, o crescimento dos sindicatos e até o fortalecimento do papel dos parlamentos e da democracia representativa. A própria social-democracia não teria tido a mesma evolução, nem teria chegado ao governo em vários paises europeus com seu “Estado do Bem-Estar”.

Norberto Bobbio, falecido recentemente, apesar de nunca ter sido comunista e “nunca ter tido vontade de sê-lo”, mas era um interpelador e dialogava com os comunistas italianos sobre temas tais como liberdade e democracia. Andou se preocupando como preencher o vazio deixado pelo fim do “comunismo histórico”.
Também começou a pensar o problema do futuro do mundo sem o “campo socialista” e sem a URSS, rejeitando “a fúria com que se esquecem os erros de avaliação e previsão ou se penitencia por eles”. E convidava os atores políticos a um juízo mais reflexivo. Dizia: “qualquer juízo sobre o comunismo, filocomunismo e anticomunismo não é possível, e é inclusive eticamente incorreto, fora do contexto histórico em que aquelas paixões surgiram, aquelas convicções se formaram, aqueles juízos e pré-juízos tiveram origem”. E, finalmente, chamou a atenção com uma interrogação: “a democracia, devemos admitir, superou o desafio do comunismo histórico. Mas de que meios e idéias dispõe para enfrentar os mesmos problemas que deram origem ao desafio comunista?” A pergunta continua sem resposta.

Não se pode negar a importância do “Estado do Bem-Estar”. Foi uma grande conquista da experiência histórica, principalmente, para a social-democracia. Aquele movimento reformista civilizou e contaminou o capitalismo. É dele a política de pleno emprego, de nacionalizações e a construção de um estado social, em base nacional. Hoje, em quase todos paises europeus e outros continentes as forças da social-democracia viram erodir seu consenso, foram relegadas à oposição. Aqueles estados nacionais vivem uma crise estrutural e fiscal.

A época da globalização coloca outro problema, outro desafio: o que significa, na atual conjuntura mundial, lutar pela sociedade do “bem-estar”? Imagino que é trabalhar para construir uma estratégia que deve unificar duas dimensões que no passado recente quase sempre estiveram separadas: a exigência de modernização – que quer cada dia avançar um pouco mais – e a necessidade de garantir a todos os cidadãos seus direitos ao trabalho, a comida, a habitação, a saúde, educação e a democracia. Ambas as dimensões, dificilmente, seguem uma mesma direção. O pensamento conservador propõe uma estratégia que as separam. Apresenta uma opção de modernização que sacrifica os direitos. Por outro lado, historicamente, o pensamento da esquerda tradicional, privilegiou a conquista ou obtenção de direitos. A modernização pertencia a outros e não assumia em sua totalidade como própria. Defendo que uma esquerda que pretenda ser hegemônica na “sociedade civil” e dirigir a “sociedade política” deve prever como objetivo unir as duas dimensões: a modernização da sociedade, o desenvolvimento econômico e tecnológico, da infra-estrutura social, agregados aos avanços culturais e ao mesmo tempo garantir os direitos fundamentais da vida dos indivíduos. Estes são os novos desafios que a esquerda tem diante de si. Esta é a nova agenda política sobre a qual é necessário discutir, dialogar para construir uma nova estratégia política.


Rio, 04/02/2004.


1 A revista “O Progresso” editada em Recife de 1846 a 1848 por Antônio Pedro de Figueiredo publicou artigo em 28 de agosto de 1848 em solidariedade com os operários revoltosos de junho de 1848, na França, com o seguinte juízo: “Nem se deve deduzir do que fica exposto que os insurgentes de junho, e nós também, pretendamos revolver totalmente a sociedade para reorganizá-la; bem sabemos que estas revoluções radicais são obra do tempo, e apenas meia dúzia de exaltados podem conceber a esperança de realizá-las imediatamente; mas o que pretendiam os revolucionários de junho; o que nós também pretendemos, é que o governo, como representante da sociedade inteira, intervenha nos fenômenos da produção, distribuição e consumo, para regulá-los e substituir pouco a pouco uma ordem fraternal ao desgraçado estado de guerra que ora reina nestas importantes manifestações da atividade humana. Os nossos votos hão de ser realizados”.
Citação de Vamireh Chacon - História das Idéias Socialistas no Brasil – Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro – 1965, pág. 27.

* Gilvan Cavalcanti de Melo, pernambucano, 68 anos, esteve exilado no Chile e Cuba. É membro do Diretório Estadual/RJ e do Diretório Nacional do Partido Popular Socialista (PPS).

POLITICA OU ORNAMENTO

POLITICA OU ORNAMENTO?*
Gilvan Cavalcanti de Melo**


Em qualquer análise da crise do PCB, é obrigatório, pelo menos, buscar como referencia o final dos anos 70 e toda a década de 80. Não é ocultando esse período, fazendo de conta que nada aconteceu que se superará esse momento cinzento. É fundamental uma profunda, séria e sincera autocrítica, em primeiro lugar e, principalmente, do núcleo dirigente. Não uma autocrítica verbal, desprovida de conteúdo. Mas uma atitude desprovida do velho vício da prepotência e da soberba. Pelo contrário. Espera-se o exemplo da humildade. Não é suficiente explicar a atual situação do Partido em função do acontecimento do Leste europeu e da exaustão do modelo do “socialismo real”. Na verdade, o desmonte do PCB se iniciou na gestão conservadora de Giocondo Dias. Isso precisa ser dito muito claramente e retirar do fato todas as conseqüências. É hora de um basta nas hipocrisias e nos mitos intocáveis. É hora de decifrar o enigma.

O grupo dirigente cometeu tantos erros os quais conduziram o movimento dos comunistas a um distanciamento em relação aos trabalhadores, aos intelectuais e à vida cotidiana. Era quase desesperante ver o Partido ser arrastado para uma posição de isolamento, para uma situação residual na sociedade. Substituiu-se a política pela luta no interior da máquina, transformando-a no centro das preocupações. Em outras palavras, o PCB voltou as costas para a sociedade e voltou seus olhos para as próprias entranhas. E assim a dicotomia se expressava: menos política, mais máquina.
A política ficou reduzida à propaganda e defesa do “socialismo real” contra o “socialismo ideal” dos comunistas italianos. Vivia-se na época da estagnação conservadora brezneviana. No âmbito nacional, a transição do autoritarismo para a democracia, sua complexidade e contradição era enfrentada com ambigüidade. O que importava era a legalização do PCB a qualquer preço em nome de certa identidade, não interessando qual política tinha curso no seu interior. E no interior predominava uma política que não era a dos comunistas. Adotava-se orientação contrária a da frente democrática substituída pela política de frente de esquerda. A questão da democracia ou ficava no papel, nos discursos ou considerada apenas como instrumento de ordem tática.. A única política aberta, clara, sem conciliação, que o núcleo dirigente desenvolveu foi a implacável, dura e inflexível luta contra o pensamento renovador do Partido, bloqueando assim, um processo de renovação cujos resultados dispensam maiores comentários nos dias atuais.
O resultado assistido, a via-crucis percorrida durante esses anos de sofrimento, descaminhos, angustias, marchas e contra-marchas, aponta com clareza que o Partido também teve sua “Crônica de uma morte anunciada”. Só que esta foi escrita por um sujeito coletivo – uma aliança de neo-prestistas, reformistas conservadores e os herdeiros do frentismo de esquerda.
Num manifesto subscrito por um grupo de comunistas do Rio de Janeiro, em setembro de 1983 afirmava-se: “às velhas práticas burocráticas revelaram-se incapazes de dar curso, tanto à renovação do movimento comunista quanto às novas necessidades impostas pela crescente complexidade da sociedade capitalista brasileira.” Em outra parte do documento, referindo-se ao grupo dirigente do PCB, reconhecia-se a responsabilidade da seguinte forma: “o CNDC por se revelar incapaz de aplicar e implementar essa nova política, vem se constituindo num obstáculo ao cabal exercício do papel que os comunistas poderiam desempenhar como uma das forças representativas do movimento popular e democrático brasileiro”.
Já em pleno período do “socialismo renovado” o núcleo dirigente repetia argumentos bloqueadores da verdadeira renovação. A VOZ DA UNIDADE ESPECIAL de janeiro de 1987 publicou o documento de balanço da direção para o VIII Congresso e confessava: “o combate à concepção liquidacionista e às TESES LIBERAL-REVISIONISTAS DOS “RENOVADORES” perdurou formalmente até o terceiro trimestre de 1982, quando, derrotadas as duas vertentes ANTIPARTIDO esboçaram(...)”, etc.
Mais cristalina é a posição recente do núcleo dirigente expressa no discurso da liderança na câmara Federal no ano passado. Referindo-se ao ex-Secretário Geral na década de 80 o colocou como homem que se absteve pela renovação do PCB quando, na realidade, foi o contrário que ocorreu.
Desmontado o PCB, transformado num sujeito residual na Sociedade Brasileira, derrotado o pensamento renovador, marginalizados os comunistas que eram capazes de renovar e atualizar e se constituíam numa alternativa de direção do PCB, a atual direção proclama agora aos quatro cantos do mundo que deseja uma “renovação” um “novo socialismo”, uma “nova formação política”, um bloco democrático e progressista”, “nova forma de Partido”. Em outras palavras, uma nova religião.

A renovação propõe outros temas: a questão da política e não da doutrina, a questão da democracia como processo de criação de canais, na qual se expressem os conflitos do mundo do trabalho, da cultura e da subjetividade para o despertar de uma hegemonia das classes subalternas. A criação de uma nova vontade democrática, de uma política de alianças com vista a conquista de objetivos claros, baseados no programa de um novo desenvolvimento integral que unifique a questão da igualdade e da liberdade.

Essa política exige, pressupõe um novo PCB cujo núcleo dirigente esteja comprometido com a verdadeira renovação dos anos 80. Um partido de política democrática, laico, respeitador dos pensamentos minoritários, aberto ao diálogo com todas as correntes, construtor da frente democrática duradora, desbloqueador radical da transição à democracia. E, hoje, não cabe mais a velha conciliação, sob pena de o PCB transformar-se definitivamente em mero ornamento. E a este papel a renovação se recusa.

* Artigo publicado no Jornal Voz da Unidade em 1 de maio de 1991 – Tribuna de Debates do IX Congresso do PCB – pág. 5.
** Gilvan Cavalcanti de Melo, militante do PCB em Niterói, membro do Conselho Editorial da Revista Presença (Rio de Janeiro).

O PPS E A NOVA ERA

O PPS E A NOVA ERA
Gilvan Cavalcanti de Melo
*

Nas três últimas eleições presidenciais o tema central foi à diminuição do papel do Estado, considerado o obstáculo institucional à modernização das estruturas econômicas e sociais. Era a época da queda do “Muro de Berlim”, fim do “Socialismo Real”, da vitória do pensamento neoliberal de um lado e do outro lado a vitória da “teoria da dependência e do populismo”, da declaração do fim da “era Vargas”, da dicotomia frente de esquerda versus frente democrática, democracia política versus democracia social, enfim, da derrota da cultura política de coalizão.

Na eleição de 2002 a conjuntura brasileira viveu um momento privilegiado: completou a longa transição democrática e consolidou a democracia política. O processo eleitoral ocorreu sem perigo de catástrofe, convulsões, sem que qualquer candidato viesse a representar ameaça às instituições republicanas. À direita, o conservadorismo, o atraso ficou fora da disputa Presidencial. Foi um cenário agradável, ditoso, sereno. Por que? Porque os principais concorrentes na disputa presidencial, desde o primeiro turno e os dois finalistas, tiveram elementos de coincidências. Destaco, apenas, algumas que, para o momento considero as mais importantes.

Em primeiro lugar porque houve, na essência, um consenso no esgotamento de um ciclo que manteve a estabilidade da moeda e a manutenção da inflação em níveis civilizados, mas bloqueou o caminho para o crescimento da economia, a redistribuição de renda e os movimentos ascendentes na escala social. A agenda das três últimas eleições presidenciais, tais como privatização, redução do papel do Estado foi abandonada. Todos os candidatos foram protagonista de programa de mudanças e reformas. Houve um “pacto”, com matizes diferenciados, pela mudança.

Em segundo lugar a convergência se deu no sentido de devolver ao Estado a capacidade de indução da atividade econômica, de mudar a relação do Estado com a sociedade, entre o público e o privado, entre política e economia e a ultrapassagem do liberalismo de mercado pelos compromissos clássicos à social-democracia, apresentaram-se como continuadores da tradição republicana e não mais em oposição a ela. Nas eleições presidenciais de 1989, 1994,1998 o tema central foi à redução do papel do Estado considerado o obstáculo institucional à modernização das estruturas econômicas e sociais. Não é de mais relembrar que o PSDB e PT se formaram inspirados na interpretação da história brasileira (1930/1964) com a teoria da “Dependência”, do “Populismo”, “O Modo de Produção Asiático”, “O Estado do Mal Estar Social”, recusando a “era Vargas”.

Em terceiro lugar a convergência aconteceu no terreno da cultura política. Os principais candidatos na disputa presidencial, desde o inicio, estavam na procura, na busca, na corrida em direção ao centro político. Ele tornou-se o lugar importante, básico, essencial, primordial e único na política brasileira. O PT, pólo hegemônico, vencedor do segundo turno, que até pouco tempo negava sua existência ou a depreciava, desqualificando-a, triunfou restabelecendo a “cultura da política” sobre a economia e o social, da cultura do “frentismo democrático pluripartidário” sobre o “corporativismo partidário”, da cultura de “centro-esquerda” sobre a “esquerdista”.

A vitória de Lula nas eleições presidenciais provoca uma guinada na vida política brasileira. Para uma democracia madura, não seria algo extraordinário. Mas no caso da sociedade brasileira – 14 anos de Constituição cidadã - ela ultrapassa o marco do período eleitoral e inaugura um autêntico processo “civilizatório” no capitalismo brasileiro. A singularidade dessa vitória reside, entre muitos aspectos, na possibilidade de enfrentar os conflitos sem redução das questões sociais à “economia-monetarista”.
Abre-se, também, o horizonte para a junção da democracia política com a democracia social, da liberdade e igualdade. Essa possibilidade aberta não é pouca coisa. Em outras partes do mundo a social-democracia levou anos para concretizar esse processo, através de sucessivas vitórias eleitorais e reformas de longo alcance. De qualquer maneira o que está colocado é a tentativa de construção da primeira grande democracia social no país, iniciando um acerto de contas com o passado autoritário e elitista.

É inegável que o país está diante de uma realidade: não será governado sem um amplo bloco de alianças políticas de sustentação, sem o presidencialismo de coalizão. A agenda imediata é tão complexa que nenhuma força isolada ou estreita terá como enfrenta-la com êxito. Sobretudo se se quiser governar com o programa reformista que as urnas apontaram. Há dificuldades enormes para estabelecer essa dinâmica política, mesmo porque o PT só recentemente aceitou o valor do “frentismo democrático”, imaginando, ainda, que esse movimento foi mais forte no grupo dirigente de que nas bases do partido. Haverá muita resistência, mas uma mudança de cultura não se faz sem conflitos e contradições. Na medida que essa cultura se afirmar poderá haver um reencontro com outras correntes social-democráticas. Terá sucesso?

O PPS deverá não só apostar no êxito, mas compartilhar, garantir a governabilidade, no Congresso, na sociedade e no Executivo, como parte autônoma e construtor desse presidencialismo de coalizão. O PT venceu as eleições assumindo a cultura política do PCB/PPS, não é pouca coisa. A responsabilidade do PPS é ajudar que essa transformação seja irreversível.
A desconstrução da cultura política do PT original fecha um ciclo histórico e poderá abrir um vazio do lado radical da esquerda do espectro político nacional. Na medida que o PT caminha em direção ao centro político, à social-democracia, quem ocupará o espaço mais à esquerda?
Lembrando o Chile da Unidade Popular quem desempenhará o papel do MIR? È verdade que Marx afirmava: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. Mas é verdade também não esquecer que grandes personagens do PSDB e do PT eram simpáticos do MIR e opositores da Unidade Popular, pela esquerda. Podem ser tentados a repetir o fato como farsa.

È evidente que é política a decisão do PPS de participar da gestão do governo Lula. Esta participação deverá estar sustentada no compromisso de um projeto de mudanças, cujas linhas centrais foram definidas no XIII Congresso Nacional do PPS: a) defesa e ampliação da democracia, com a incorporação crescente da sociedade nos destinos do país; b) reforma democrática do Estado; c) arrojada política de desenvolvimento social, apoiada em uma nova política econômica que não só mantenha estabilidade da moeda, mas leve o país à retomada do desenvolvimento econômico; d) política externa independente; e) presença competitiva e soberana da economia brasileira no mercado mundial.

Para finalizar, há um vaticínio aprovado no Congresso que merece uma reflexão: “Para o Brasil avançar, precisa romper com a redução do embate político a dois pólos, de um lado, um amplo bloco de centro direita, e, de outro um restrito bloco de esquerda, esta com dificuldade comprovada para ampliar-se em direção a partidos e eleitores de centro”. O PPS tentou romper a dicotomia, interpelou as outras forças de esquerda, apontou que mantida essa relação a derrota era provável. A candidatura Ciro Gomes assinalou para um bloco de centro esquerda, mas na verdade quem rompeu a dicotomia e se dirigiu para o centro e venceu as eleições foi o PT.

Rio de Janeiro, 02 de novembro de 2002.
* Gilvan Cavalcanti de Melo, - Membro do Diretório Nacional e Estadual PPS/RJ.

NOSSA HERANÇA

NOSSA HERANÇA
Gilvan Cavalcanti de Melo[i]

Comemora-se em abril sessenta e um anos da morte de Antônio Gramsci. Simultaneamente diversas homenagens estão programadas para lembrar os 150 anos da publicação do Manifesto Comunista, redigido pelo fundador da filosofia da praxis. Nestes tempos de renúncias, será legítimo destacar Gramsci pela sua enorme contribuição ao pensamento político moderno. Com certeza a melhor forma de ressaltar sua figura e originalidade será atribuir-lhe o mesmo mérito com o qual se referiu a Marx no artigo escrito em 1918, pôr ocasião do seu centenário de nascimento: não escreveu uma doutrinazinha, não é um messias que tenha legado um punhado de parábolas grávidas de imperativos categóricos....Iniciava o ensaio fazendo duas perguntas e dava uma resposta contundente: Seremos marxistas? Existirão marxistas? Tolice, só tu és imortal (Gerratana 1992).

Após o fim do socialismo real se fala e se escreve muito sobre a morte da filosofia de Marx. Seria bom relembrar uma leitura que o intelectual e militante político italiano fazia dela: A filosofia da praxis pressupõe todo este passado cultural, o Renascimento e a Reforma, a filosofia alemã e a Revolução Francesa, o calvinismo e a economia clássica inglesa, o liberalismo laico e o historicismo; em suma, o que está na base de toda a concepção moderna da vida.
A filosofia da praxis é o coroamento de todo este movimento de reforma intelectual e moral, dialetizado no contraste entre cultura popular e alta cultura. Ela corresponde ao nexo Reforma protestante mais Revolução Francesa: Trata-se de uma filosofia que é também uma política e de uma política que também é uma filosofia (Gramsci 1978). Continuando as melhores tradições deste pensamento, poderíamos sugerir que o novo paradigma contemporâneo dessa filosofia pressupõe todo aquele coroamento e os atuais princípios inspiradores da Perestroika; aspectos do pensamento antropológico e sociológico da Igreja pós-conciliar; a busca de novas idéias integradoras que, desde o início dos anos oitenta, ocupam as principais social-democracias européias(o europismo socialista e o eco-socialismo); o novo pensamento político dos grupos dirigentes mais avançados do Terceiro Mundo; as tradições políticas inspiradas na não violência; as concepções do socialismo como desenvolvimento integral da democracia; a visão nova da constituição e do desenvolvimento do gênero humano inspirada no pensamento da diferença sexual; as novas idéias de progresso fundadas na consciência do limite, e no conceito do desenvolvimento sustentável.(Vacca 1996).

Avocando essa herança e buscando voltar radicalmente a atenção para o presente tal como é, se se quer transformá-lo (Gramsci 1992), podemos vislumbrar as mudanças ocorridas no capitalismo. Que cenário é este? É complexo, de possibilidades variadas ,algumas vezes divergentes, dinâmico, entremeado de tendências opostas e contradições agudas É marcado por transformações sociais fundamentais, revoluções tecnológicas e cientificas, extremamente abrangentes. Problemas globais cada vez mais sérios e mudanças radicais quanto à informação.
Convivem, lado a lado, as mais fantásticas possibilidades de desenvolvimento, progresso e a pobreza mais abjeta. Abriga grandes campos de tensão. É um mundo da multipolaridades, da crise do Estado-Nação e da soberania. Este panorama tem a ver com o tema da extinção do Estado (Marx 1978) na perspectiva da construção da supranacionalidade. É um mundo da interdependência, está exposto a maior risco e aberto a diversas alternativas. Por isto é fundamental estabelecer um diálogo com as forças sociais e políticas fundamentais procurando discutir as invariâncias e não só as mutações, reatar os nós das relações entre o velho e o novo, fazer a leitura do passado à luz das imagens que do presente estão se formando (Vacca 1996), centralizado na questão da democracia, confrontando-o com uma nova realidade: sociedades neocorporativas; sistema das relações internacionais; normativismo ético; método dicotômico; individualismo metodológico.

Qual é o núcleo da discussão proposta? O valor fundamental da democracia dos modernos tem como centro o indivíduo. Mas isto não implica que o único modo de analisar a realidade (econômica, social e histórica) seja considerá-la como inesgotável fluxo de ações individuais a serem classificadas, com base em nossa escolha de valor, com objetivo de ordená-la. Este tema pode ser sustentado com dispositivo teórico diferente do liberal-democrático clássico, que utiliza o método dicotômico, e do individualismo metodológico pensando enquadrar a história na oposição conceitual entre democracia/totalitarismo; indivíduo/estado; indivíduo/sociedade;público/privado; Estado/sociedade civil; estrutura/superestrutura; democracia/autocracia; ser/dever ser.; descrição/prescrição
Esta teoria política neopositivista resolve-se na classificação, e ,portanto, na tipologia das formas de governo historicamente existente, construídas com base na determinação daquilo que as une e daquilo que as diferencia, numa operação similar ao botânico e ao zoólogo os quais classificam plantas e animais.

Para Gramsci toda reflexão sobre a democracia poderia ser considerada do ângulo dos problemas do indivíduo. Mas, o indivíduo isolado, solitário e voltado para o privado não pode ser o sujeito que sustenta o processo democrático e assegura sua expressão. Democracia sem sujeito? O tema de fundo é explorar as condições com que se pode fazer avançar o projeto da democracia ininterrupta ou progressiva e indicar os sujeitos históricos, não indivíduos soberanos, capazes de promover a difusão daquele processo. Qual o critério da construção da nova subjetividade e dos sujeitos políticos? Esta construção se dará no campo da hegemonia e esta luta terá como palco o território nacional. O desenvolvimento histórico nacional é, portanto, o paradigma que preside a constituição dos sujeitos políticos. O tema diz respeito à vida dos Estados e à função dos partidos. É possível pensar a história apenas como história nacional? As análises das situações das relações de força não podem decorrer apenas do Estado-Nação. Na sociedade contemporânea a história é história mundial e a constituição dos sujeitos políticos tem na nação o terreno decisivo, mas está condicionada pelo desenvolvimento do mercado, isto é, combinação entre o elemento nacional e internacional.

Para Gramsci o conceito de hegemonia foi construído como uma hipótese teórico-política de reunificação de um mundo objetivo, extremamente múltiplo, diferenciado, estratificado. Tem a forma de um projeto da vontade subjetiva, estando ausente qualquer necessidade ou determinismo. É sempre parcial e conflitiva, estando fora qualquer visão totalitária. O fundamento da teoria da hegemonia só pode ser o princípio da integração do agir político em uma visão unitária e solidária do desenvolvimento do gênero humano: o princípio da Interdependência.
Isto pressupõe a existência da democracia representativa e sua reforma (reformismo forte). A extensão da democracia a todo o âmbito da vida social dissolve a estrutura hierárquica autoritária do Estado. Liberalismo extremo e simultaneamente a sua destruição (Gramsci 1978)

Referências bibliográficas


Gerratana, Valentino – Revista Presença nº 17, 1992
Gramsci, Antônio – Concepção Dialética da História – Civilização Brasileira, 3ª ed.,1978
_____________ – Maquiável a Política e o Estado Moderno – Civiliz. Brasileira, 3ª ed.,1978
Marx, Carlos – Lutas de Classe na França – Cátedra, ed., 1986
Vacca, Giuseppe – Pensar o Mundo Novo: Rumo a Democracia do Século XXI – Ática, 1996


[i] Membro efetivo do Diretório Nacional e da Executiva do Estadual do PPS no Rio de Janeiro

DEMOCRACIA E REFORMA

DEMOCRACIA E REFORMA
Gilvan Cavalcanti de Melo


Os primeiros partidos de esquerda apareceram e se desenvolveram a partir da revolução industrial como uma resposta aos conflitos sociais gerados pelo capitalismo daquela época. A contestação da esquerda teve duas vias: a revolucionária que terminou num impasse trágico no oriente e a reformista ocidental que conseguiu conquistas sociais e liberdades de valor histórico. Este mais generalizado nos Estados nacionais modernos.

No momento está ocorrendo outra enorme transformação: mundialização dos mercados, integração dos sistemas econômicos, uma nova revolução científica e tecnológica. Diante deste novo fenômeno, - mudam os modos de produzir e trabalhar que destroem o conjunto das relações sociais que o primeiro industrialismo tinha delineado.

Com a mudança das circunstâncias os valores e princípios da esquerda devem ser redefinidos. Não deve causar surpresa, desespero, nem desalento, o fato de que parte deles tenha sido colocada em dúvida. Os valores e princípios de uma esquerda moderna estão sendo repensados e elevados em dignidade pela própria força dos fenômenos, pela perspectiva de dirigir o processo e de evitar os perigos que sobrevierem. É o momento de afirmar isso com segurança, inteligência e nobreza.

A demanda que se coloca no século XXI é que os avanços da tecnologia e a ampliação dos mercados só beneficiam o desenvolvimento humano se crescem, simultaneamente, os sujeitos políticos coletivos, os bens públicos e a unidade social. A supressão ou limitação dos direitos conquistados, do trabalho, da educação, da saúde não pode ser o preço a ser pago para alcançar objetivos e metas econômico-financeiras em nome da eficiência capitalista.

Os paradigmas pelos quais a esquerda voltará a ser ator neste século XXI manifestar-se-ão nos novos fenômenos. São eles, - é esta a novidade -, o amálgama entre a mundialização dos mercados e a transição para uma economia pós-fordista que propõem o realinhamento de uma nova bipolarização entre progresso e conservação, direita e esquerda.

Os problemas e as novidades a enfrentar são imponentes. Começa pela limitação relativa da soberania nacional, sobre a qual a esquerda construiu seus instrumentos políticos de hegemonia e domínio. A idéia principal é se o pós-fordismo e pós-industrialismo submeterá a sociedade à dependência do mercado ou criará outra mais complexa que não seja condenada, fatalmente, a produzir novas injustiças e, simultaneamente, ofereça novas oportunidades para o desenvolvimento dos indivíduos, com experiências de incorporação, cooperação e agregação.

A esquerda não deve contemplar com receio a globalização. Ela favorece o desenvolvimento econômico e a conquista de qualidade de vida mais elevada.
Aproxima mercados mas também povos e culturas. É verdade que despontaram novas desigualdades e as antigas voltaram a superfície. É verdade que a insegurança é o novo sentimento que afeta os indivíduos e a sociedade como um todo. Adicione-se a dúvida com relação ao trabalho, ao futuro da aposentadoria, às transformações da estrutura familiar, o perigo com o aumento da marginalidade e da criminalidade. È uma circunstância nova na qual é necessário virtú para agir e lutar.

A esquerda brasileira deve saber apreender as promessas contidas na força liberada pela revolução dos fenômenos e saber reformular seus novos valores: igualdade entre sexos, etnias e grupos sociais; maior abertura possível da experiência existencial, concebida em seus aspectos individuais e coletivos; defesa do trabalho, de sua dignidade, da valorização dos recursos humanos; valorização dos méritos: valorização profissional, a inovação social, a criatividade cultural com responsabilidade social; equilíbrio ecológico: a sustentabilidade das técnicas, a proteção da natureza, o valor cultural do meio ambiente; integridade do ser humano, o respeito pela vida, a laicidade do Estado, sua democratização e a liberdade de opções com base nas convicções éticas individuais; valorização da cultura, da história e da memória; ética política: os direitos mas também os deveres da cidadania, as responsabilidade morais dos representantes. Se a esquerda quiser reavaliar a cultura política como expressão dos interesses coletivos, cabe travar a luta contra o indeterminismo de um lado e contra todos aqueles que preferem conceber a política como jogo do poder, instrumento de ambições pessoais e interesses corporativos; novo internacionalismo: à luta contra a fome e pobreza, a mundialização dos direitos humanos, base para a unificação dos povos.

Concluindo, a história ensinou de forma clara e trágica que justiça e liberdade são valores inseparáveis. Não pode haver igualdade e justiça sem liberdade, sem democracia.

A QUESTÃO DA PREVIDÊNCIA

A QUESTÃO DA PREVIDÊNCIA
Gilvan Cavalcanti de Melo
*

I

Causa-me um certo desconforto e constrangimento falar de Reforma da Previdência e não sobre a Seguridade por um simples raciocínio: o conceito de Seguridade Social está consagrado na Constituição de 1988. Até agora a legislação, seja por medida provisória, por emenda constitucional ou qualquer outra alternativa, não foi revogada, portanto, continua em pleno vigor.

O conceito de seguridade social estabelecido na Constituição é identificado como “um conjunto de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social” (art.194, CF). Na literatura americana o conceito aparece com muita freqüência associado a programas dos chamados riscos sociais: aposentadoria e pensões (por idade, invalidez ou morte), seguro-doença e auxilio-maternidade; seguro-acidente de trabalho; seguro-desemprego e auxílios familiares. A literatura européia mostra como aqueles países evoluíram de um sistema de seguro para um sistema de seguridade, tornando mais abrangente a proteção. A concepção contida na Constituição não é, porém algo novo Há, ainda, uma definição adotada pela OIT na convenção nº 102 aprovada em Genebra em 1952, dentro da mesma abrangência da nossa Carta Magna: “Seguridade Social é a proteção que a sociedade proporciona a seus membros, mediante uma série de medidas públicas contra as privações econômicas e sociais que, de outra forma, derivam do desaparecimento ou em forte redução de sua subsistência como conseqüência de enfermidade, maternidade, acidente de trabalho ou enfermidade profissional, desemprego, invalidez, velhice e também a proteção em forma de assistência médica e ajuda às famílias com filhos”. É bom recordar que o parecer nº 78 de 1994, do então deputado Nelson Jobim e hoje Ministro do STF, relator da Revisão Constitucional optou para manter na íntegra o texto do artigo 194, afirmando: “O conceito de seguridade social adotado na Constituição de 1988, em que pese não haver sido implementado em sua plenitude, continua atual, coerente e viável. A integração das ações de saúde, previdência e assistência social, é a nosso ver, primordial para que se possa desenvolver de uma forma mais racional e eficiente o atendimento à população”.

Mas, não se pode negar, que a partir dos anos noventa a idéia da seguridade vem perdendo terreno. A legislação que regulamentou a seguridade abriu caminhos particulares para as diferentes áreas: Lei Orgânica da Saúde, Lei do Custeio e dos Planos de Benefícios da Previdência, Lei Orgânica da Assistência Social e outras vão, enfim, estabelecer diretrizes especificas. A fragmentação vai se consolidando através de medidas provisórias, leis complementares e emendas constitucionais. Do ponto de vista administrativo e do financiamento a Seguridade Social não tem mais existência formal. Entretanto, sua operacionalidade vem apresentando eficácia administrativa. E por esta razão, ainda, não foi extinta.

É sabido que as contribuições instituídas constitucionalmente para financiar a Seguridade são recolhidas e administradas pela Receita Federal, através de legislação especifica, cabendo ao Tesouro o repasse, conforme a sua programação financeira. É evidente que legalmente não se pode objetar. Observa-se, por outra parte, que recursos de seguridade arrecadados pela Receita não vão para a seguridade. Este órgão exterior, repassador de receitas, também, pode retê-las ou priorizar alocações (ver quadro abaixo).

RECEITAS E DESPESAS DA SEGURIDADE SOCIAL(1)
(SALDO COM O REGIME GERAL DE PREVIDÊNCIA SOCIAL (RCPS)) - ANO 2000
(em R$ bilhões)

I - RECEITAS

Receita previdenciária líquida(2)
55.715
Outras receitas do INSS(3)
0.536
Multas sobre contribuição previdenciária
0.657
CONFINS
38.634
Contribuição social sobre o lucro líquido
8.666
Concurso de prognósticos
0.468
Receita própria do Ministério da Saúde
0.573
Outras contribuições sociais(4)
1.045
CPMF
14.396
TOTAL DE RECEITAS
120.691
II DESPESAS

Pagamento total de benefícios(5)

1 – Benefícios previdenciários(6)
64.284
Urbanos
53.858
Rurais(7)
10.426
2 – Benefícios assistenciais
3.510
RMV
1.503
LOAS
2.007
3 - EPU(8)
0.712
Saúde(9)
20.443
Assistência Social geral
1.021
Custeio e pessoal do MPAS(10)
4.077
TOTAL DAS DESPESAS
93.026
SALDO FINAL
27.665
Fonte: SIAF e Fluxo de Caixa do INSS (dados da Previdência)

II

Atualmente se fala, se escreve e se debate muito sobre a Previdência Social. E a controvérsia é concentrada entre a Previdência do INSS X Previdência do Serviço Público. Verifica-se uma forte corrente em favor da unificação dos regimes, pretendendo-se um tratamento isonômico a todos os trabalhadores de empresas e dos serviços públicos de todos os poderes da União, Estados, Distrito Federal e Municípios. No entender dos defensores da unificação esta deverá criar maior igualdade na distribuição de renda e acabaria com os “privilégios” das aposentadorias dos servidores públicos. Parte-se do pressuposto de que todos os encargos sociais são mantidos por toda a sociedade, direta ou indiretamente. O objetivo seria dar um tratamento igual a todos os trabalhadores, sem distinção.

Impõe-se discutir, refletir mais profundamente sobre todas as repercussões do sistema único, principalmente se o mesmo é dirigido para favorecer os cidadãos. Dadas às condições concretas das idéias, esta unificação nivelaria pelas deficiências e não pela eficiência, o que é o objetivo do bem estar da seguridade social, sem qualquer avanço para os trabalhadores em geral.

Os defensores da unificação esquecem que a própria Constituição estabelece uma diferenciação entre empresas e administração pública, dedicando um capitulo a esta última e outro aos servidores públicos. O servidor é admitido como “empregado” do Estado, destacando-se várias situações distintas que o diferencia do trabalhador em geral do setor privado: não negocia salário que é fixado em lei; não tem o beneficio do FGTS; não faz jus ao seguro-desemprego; não tem direito ao aviso prévio proporcional ao tempo de serviço; não participa dos lucros da empresa; não possui o direito de assinar convenções, dissídios ou acordos coletivos de trabalho e carece do direito de greve. Ressalte-se que todas essas garantias asseguradas ao empregado do setor privado foram expressamente excluídas da Constituição como direitos do servidor público. Embora dele seja exigidos o dever e lealdade de forma tão rigorosa que pode responder, mesmo depois de aposentado, pelos atos praticados na atividade podendo ser castigado com a cassação da aposentadoria, o que alcança, também, o sustento da família, o que evidentemente não ocorre com o trabalhador do setor privado. Se os defensores da unificação têm como objetivo estabelecer a igualdade dos direitos previdenciários esquecem de lutar pela igualdade dos direitos trabalhista.

Rio, 30 de janeiro de 2003

· Secretário da Executiva Estadual/RJ e membro do Diretório Nacional do PPS.

(1) Receitas e Despesas da Seguridade Social conforme o artigo 195 da C.F.
(2) Receita Liquida = Arrecadação bancária + Simples + depósitos judiciais + restituição de arrecadação – transferências a terceiros
(3) Correspondem a rendimentos financeiros, antecipação de receita e outros, segundo o Fluxo de Caixa do INSS.
(4) Referem-se a contribuições sobre o DPVAT (vai para a Saúde), contribuições sobre prêmios prescritos, bens apreendidos (parcela da assistência social).
(5) Referem-se aos benefícios mantidos (previdenciários + assistenciais), excluindo-se EPU e benefícios anistiados.
(6) O valor direto do Fluxo de Caixa do INSS (que somou R$ 65.787 bilhões) devido à separação das RMVs em item próprio.
(7) Dados sujeitos a alteração.
(8) Encargos previdenciários da União: benefícios concedidos através de leis especiais, pagos pelo INSS, com recursos da Seguridade Social, e repassados pelo Tesouro.
(9) Inclui ações de saúde do SUS, saneamento e custeio do Ministério da Saúde.
(10) Pagamento realizado a ativos, inativos e pensionistas do INSS, bem como despesas operacionais consignadas.

AS BASES AUTORITÁRIAS DO SISTEMA PARTIDÁRIO BRASILEIRO


AS BASES AUTORITÁRIAS DO SISTEMA PARTIDÁRIO BRASILEIRO1
Gilvan Cavalcanti de Melo*

O Brasil, mais que qualquer outro país da América Latina, chega à metade da primeira década do século XXI, em compromisso com seu passado. Pode ser considerado o local por excelência da "revolução passiva". Ou seja, uma "revolução sem revolução", conceito gramsciano para designar as mudanças "por cima". O ponto de partida para o estudo desse conceito é o trabalho de Vincenzo Cuoco que o empregou para caracterizar o primeiro período da revolução napolitana de 1799 (Risorgimento italiano), modificando-o e desenvolvendo-o a ponto de transmutar sua estrutura e natureza. É sob vários aspectos, um dos mais ricos e complexos do pensamento do filósofo e militante italiano. Seu vínculo e conexão com outros conceitos (guerra de posição, americanismo, bloco histórico, hegemonia, fordismo, estado ampliado e outros) são múltiplos e determinantes, de modo que ele passou a servir como critério de interpretação para pensar qualquer época de transformações históricas.

Graças as diferentes rearticulações com as interpretações gramscianas, resulta que nas análises da nossa formação, pode-se descobrir os elementos da revolução passiva dos grupos dominantes na elaboração de seu programa para conceber uma nação para o seu Estado. De outro lado, as grandes maiorias que vem surgindo com o processo de conquista de direitos e da cidadania ainda idealizou o seu Estado. Sua existência vem ocorrendo mais no plano societário que se realiza com rupturas moleculares. A política e apenas ela permite seu acesso ao Estado. E a palavra chave é a democracia como critério de interpretação da esquerda sobre a sua forma de inclusão, para que se transforme no sustentáculo de um transformismo ativo em que se encontre o social – igualdade – com a política – a democracia, a liberdade.

Aos fundadores do nosso Estado-Nação importava adotar uma institucionalidade liberal. Esta se devia dobrar a realidade, uma vez que se mostrava incompatível com uma sociedade inarticulada e inorgânica. A forma liberal do Estado não podia ser criada em conformidade com o caráter da sua sociedade civil, mas devia concentrar em si, ao mesmo tempo, que projetava para o futuro, aquilo em que a sociedade deveria converter-se.

Esse pragmatismo da nossa cultura política se apresenta como a compensação necessária à sua natureza autoritária, uma vez que os fins sociais se constituem como um segredo da razão de Estado, que, ora é revelado para a sociedade e ora lhe é ocultado, encoberto. Como algo que é criado numa instância distante dela e que não se sente obrigada a consultar suas preferências.

Essa é a explicação de fundo para a continuidade dessa cultura política no processo que, após 1930, deflagra a modernização econômica e nos traz a primazia da indústria e do industrialismo, mas, também, um momento de triunfo da razão de Estado em busca dos fins civilizatórios e da preservação dos meios coercitivos de controle social e produção de uma determinada ordenação societária.

Esse autoritarismo não poderia ser diferente na questão da organização do sistema eleitoral e partidário. As discussões, controvérsias e a evolução da legislação, em diversos momentos de recomposição das forças políticas, comprovam as origens dessa "dialética sem síntese". Vejamos sua evolução: o Código Eleitoral de 1932 (Decreto nº 21.076 de 24.02.1932) - baseado na obra de Joaquim Francisco de Assis Brasil, Democracia Representativa: do Voto e do Modo de Votar, Rio, Imprensa Nacional, 1931 cria as seguintes normas:

(a) estabelecimento de tribunais (Supremo Tribunal Eleitoral e tribunais regionais); (b) voto obrigatório, adulto e universal (inclusive feminino), secreto e alfabetizado; (c) adoção do princípio majoritário na eleição do presidente, dos governadores e dos senadores, e o princípio proporcional para a Câmara Federal e para as Assembléias Estaduais. O sistema idealizado por Assis Brasil e operacionalizado em 1932 era ainda caracteristicamente "pré-partidário", abrigando disposições extremamente frouxas nesta matéria. Assim, se admitia partidos estaduais, uni-estaduais e candidatos avulsos, sem filiação partidária.
Mais adiante o Código Eleitoral de 1945 (Decreto nº 7.586 de 25.05.1945) - a chamada "Lei Agamenon" institui - uma comissão para elaborar o novo Código.São seus membros: José Linhares, (Presidente); Vicente Piragibe, Lafayette Andrada, Miranda Valverde e Hahneman Guimarães:

A Comissão partiu dos princípios gerais e reproduzia os procedimentos do Código de 1932 - exceto no tocante à organização partidária, acrescentando-lhes dispositivos e inovações agrupados em quatro categorias gerais.

Primeiro lugar, sobre o registro de Partido: entendia-se que os partidos deveriam apresentar assinaturas de 10.000 (dez mil) eleitores distribuídos entre pelo menos 5 (cinco) estados, nenhum estado com menos 500 (quinhentas) assinaturas, a fim de obterem o competente registro.(Art.109 da Lei eleitoral). Em 1946 Dutra o aumentou para 50.000 (cinqüenta mil)- decreto-lei nº. 8.063, maio de 1946.

O artigo 114 do Código Eleitoral estabelecia que o Tribunal Superior Eleitoral poderia negar registro a quaisquer partidos que fossem contrários aos princípios democráticos e aos direitos fundamentais do homem, definidos na Constituição. De trinta e um com registro provisório, quinze foram cancelados. As razões foram bastante variáveis. Só uma vez o artigo foi utilizado de forma ideológica contra o PCB. O decreto de Dutra que aumentou o número de assinaturas permitia, também, pelo artigo 26 o cancelamento de registro de partido que recebesse orientação política ou contribuição em dinheiro do exterior.

Em segundo lugar, quanto ao registro de candidatos determinava que somente poderiam concorrer candidatos registrados pelos partidos ou alianças de partidos.
Um candidato poderia concorrer por mais de um partido para os cargos regidos pelo princípio majoritário, mas só por um partido ou coligação partidária para os cargos regidos pelos princípios proporcionais (artigos 39 a 42). Um candidato poderia concorrer simultaneamente para presidente, senador e deputado estadual num mesmo estado ou em mais de um Estado.

Em terceiro lugar, sobre o item da representação era retida na legislação eleitoral de 1945, a dualidade de princípios, majoritário para os cargos executivos e para o Senado, e proporcional para Câmara dos Deputados e para os legislativos estaduais. Na representação proporcional o quociente eleitoral seria determinado pela divisão do número de votos válidos, mais votos em branco, pelo número de cadeiras a ser preenchido. A representação de cada partido seria obtida dividindo-se a votação partidária pelo quociente eleitoral. Os lugares não preenchidos por esse critério seriam dados ao partido que obtivesse o maior número de votos na eleição em vez dos candidatos, individualmente, mais votados, como previa o Código de 1932.

Em quarto lugar, quanto ao alistamento eleitoral e face à precariedade dos recursos disponíveis e à lentidão do alistamento eleitoral, foi permitido o registro de blocos de eleitores com base em listas preparadas por empregadores e agências do governo: chamado de alistamento ex-officio. Esse sistema foi extinto com o Código Eleitoral de 24/07/1950, quando passou a ser exigido o alistamento individual.

O movimento político-militar de 1964, orientado para interromper o longo ciclo Vargas, se colocou em linha de continuidade com o que fora o objetivo de sua intervenção, isto é, 1964 confirma 1937 pelo seu aspecto coercitivo de suas instituições e pelo controle social sobre o conjunto da sociedade: modernização "por cima".

Foi com a alteração da Constituição de 1946 que o regime militar fundou os princípios ainda em vigor. A Emenda Constitucional n. º 14, de 03/06/1965 criou o Domicílio Eleitoral. Determinou que para ser candidato ao cargo de governador e vice-governador teria à data da eleição, pelo menos, quatro anos de domicílio eleitoral no Estado. Para os cargos de Prefeito e Vice-Prefeito o prazo era menor: pelos menos, dois anos de domicílio eleitoral no Município.

Para Câmara dos Deputados e Senado Federal e Assembléias Legislativas o candidato tinha que ter, pelo menos, quatro anos de domicílio eleitoral no Estado.

Mais adiante, a Junta Militar, em 1969, modificou a própria Constituição do regime de 1964 e criou novos mecanismos de controle. Com a Emenda Constitucional nº 1 de 17/10/1969 determinou que a Lei Complementar estabelecerá os casos de inelegibilidade e os prazos, visando a preservar: a moralidade para o exercício do mandato, a obrigatoriedade de domicílio eleitoral no Estado ou no município por prazo entre um e dois anos, fixado conforme a natureza do mandato ou função. Determinou que a organização, o funcionamento e a extinção dos partidos políticos seriam regulados por Lei Federal, observados os seguintes princípios: exigência de cinco por cento do eleitorado que haja votado na última eleição geral para a Câmara dos Deputados, distribuídos, pelo menos, em sete Estados, com o mínimo de sete por cento em cada um deles e a proibição de coligações partidárias. Também, fundava o principio da fidelidade partidária, quando decreta que perderá o mandato no Senado Federal, na Câmara dos Deputados, nas Assembléias Legislativas e nas Câmaras Municipais quem, por atitudes ou pelo voto, se opuser às diretrizes legitimamente estabelecidas pelos órgãos de direção partidária ou deixar o partido sob cuja legenda foi eleito. A perda do mandato será decretada pela Justiça Eleitoral, mediante representação do partido, assegurado o direito de ampla defesa.

Não é por acaso que a atual discussão de reforma político partidária e eleitoral se orienta no sentido de interromper o curso da comunicação entre a democracia política e os processos de democratização social, iniciado com o fim do regime militar, com a concepção de racionalizar a participação política da sociedade civil. E, nesse caso, permanece como continuidade da "Era Vargas" e da "Era Militar": administrar "por cima", seletivamente, o ingresso à cidadania, em uma democracia política entregue à "razão sensata dos ilustrados". O lamentável é que essa idéia é compartilhada, também, pelo iluminismo democrático e no campo da esquerda.

Concluindo, não seria muito relembrar que Gramsci sublinhava o perigo de transformar a "revolução passiva", “revolução sem revolução”, as mudanças “por cima” em programa, porque a maneira dos atores representar o papel geral do problema, pode levar a um fatalismo que exclua a ampliação da democracia política dos modernos, ou seja, o Estado ampliado, democrático e, conseqüentemente, a manutenção da separação do “bom senso” e do “senso comum”.

1 Artigo publicado na revista Política Democrática nº 13 /2005
(*) Gilvan Cavalcanti de Melo, pernambucano, 70 anos, membro do Diretório Nacional do PPS.