segunda-feira, 21 de julho de 2008

O QUE PENSA A MÍDIA
EDITORIAIS DOS PRINCIPAIS JORNAIS DO BRASIL
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DEU EM GRAMSCI E O BRASIL


O CAOS DA ESFERA PÚBLICA
Jürgen Habermas
Tradução: Peter Naumann

Quando o diretor do Instituto Karl Renner me comunicou a agradável notícia de que o júri pretendia conferir-me no corrente ano o Prêmio Bruno Kreisky [por avanços na área de direitos humanos; Kreisky (1911-90) foi ministro das Relações Exteriores da Áustria], não me senti apenas motivado a refletir sobre o aspecto estimulante da situação feliz de encontrar tanto reconhecimento imerecido, após décadas de conflitos e de uma imagem tendencialmente controvertida.

Após um estudo mais convencional de filosofia, ingressei em 1956 no meio pouco familiar do Instituto Frankfurtiano de Pesquisas Sociais, onde tive de me familiarizar durante os preparativos de uma pesquisa empírica também com a bibliografia (então ainda exclusivamente jurídica) sobre o Estado de Direito e a democracia.

Por um lado, os debates entre os grandes representantes da teoria do direito do Estado da República de Weimar me pareceram estimulantes, mas não consegui estabelecer uma relação mais apropriada entre os conceitos normativos da ciência jurídica e a teoria da sociedade — sob cujo influxo tentava compreender a realidade política da atualidade de então.

Estado de Direito

Foi a leitura de um livro que me abriu os olhos para o nexo entre economia política e direito. Publicado em 1929 sob o título áspero Os institutos jurídicos do direito privado e a sua função social, remontava a estudos realizados pelo jovem Karl Renner na virada do século, quando seu autor trabalhava como bibliotecário do Parlamento austríaco de então.

Foi assim que entrei em contato com os escritos dos marxistas austríacos, nos quais encontrei três idéias de cuja ausência me ressentia enquanto assistente de Theodor W. Adorno [1903-69] em Frankfurt: em primeiro lugar, a vinculação natural entre teoria e práxis política.

Em segundo lugar, a abertura nada tímida da teoria social marxista diante das descobertas da ciência acadêmica (uma atitude da qual Horkheimer e Adorno se tinham distanciado novamente desde a Dialética do esclarecimento).

E, em terceiro lugar — e sobretudo —, a identificação sem reservas com as conquistas do Estado democrático de Direito sem o abandono de objetivos radicalmente reformistas, voltados para horizontes muito além do status quo.

No meu caminho do marxismo de matriz hegeliana na direção de um pragmatismo kantiano, o livro de um outro austromarxista me deu um estímulo similarmente rico em conseqüências no final dos anos 60. Refiro-me à obra tardia de Max Adler [1873-1937], publicada em 1936 sob o título O enigma da sociedade.

Ao introduzir um “a priori social”, Adler não evoca apenas a constituição social da nossa consciência do ego e do nosso conhecimento do mundo; inversamente, a construção dos nexos da vida social também deve se assentar em atos do conhecimento.

A própria sociedade se baseia, então, na facticidade de pretensões de validade, que reivindicamos nas nossas exteriorizações comunicativas. Assim, Adler fundamenta, muito similarmente ao Husserl [1859-1938] tardio, uma referência à verdade de enunciados e correção de normas, imanente à sociedade.

Apesar de toda a sua insistência na cientificidade, Otto Bauer [1882-1938] e Rudolf Hilferding [1877-1941], Karl Renner e Max Adler se consideravam intelectuais de partido, que se submetiam à coação disciplinadora da tática e da organização, quando o momento assim o exigia. Mas, como democratas, faziam uma idéia inteiramente distinta do papel do partido do que o Lukács leninista em História e consciência de classe.

Seja como for, a figura do intelectual de partido pertence ao meio hoje já histórico dos partidos que perfilhavam uma visão de mundo esquerdista. Após 1945, esse tipo não pôde mais subsistir no Ocidente.

Os sem-partido

Diante desse fundo, o tipo do intelectual contemporâneo, sobre o qual pretendo falar, adquire contornos muito nítidos: os intelectuais que entraram em cena depois de 1945 — tais como Sartre, Adorno e Marcuse, Max Frisch e Heinrich Böll — tendem a se assemelhar aos modelos mais antigos dos escritores e professores universitários que tomam partido, mas não estão vinculados a nenhum partido.

Sem serem perguntados, isto é, sem mandato nem votação, eles se deixam provocar pela ocasião a fazer um uso público do seu saber profissional além dos limites da sua profissão. Sem a pretensão a um estatuto elitista, não podem invocar outra legitimação senão o papel do cidadão democrata.

Na Alemanha, as raízes dessa autocompreensão igualitária remontam à primeira geração depois de Goethe [1749-1832] e Hegel [1770-1831].

Os irrequietos literatos e livres-docentes do círculo da “Jovem Alemanha” e dos hegelianos de esquerda definiram o perfil do intelectual pairando livremente acima da sociedade — na qual intervinha espontaneamente, muitas vezes choroso, polemicamente excitado e imprevisível — assim como definiram os preconceitos arraigados contra ele.

Não por acaso, a geração de Ludwig Feuerbach, Heinrich Heine e Ludwig Boerne, Bruno Bauer, Max Stirner e Julius Froebel, Marx, Engels e Kierkegaard entrou em cena antes de 1848, quando o parlamentarismo e a imprensa de massa se formavam sob as asas protetoras do liberalismo incipiente.

Peixes fora d'água

É já nesse período de incubação, quando o vírus da Revolução Francesa se alastrou por toda a Europa, que se manifesta a constelação na qual o tipo do intelectual moderno encontrará o seu lugar. Ao influírem com argumentos retoricamente afiados na formação da opinião, os intelectuais dependem de uma esfera pública capaz de lhes servir de caixa de ressonância, alerta e informada.

Necessitam de um público de orientação mais ou menos liberal e precisam confiar num Estado de Direito minimamente encaminhado pelo simples fato de apelarem a valores universalistas em meio ao litígio sobre verdades sufocadas ou direitos negados.

Pertencem a um mundo no qual a política não se dissolve na atividade do Estado; seu mundo é uma cultura política da contradição, na qual as liberdades comunicativas dos cidadãos podem ser desencadeadas e mobilizadas.

É simples projetar o tipo ideal de intelectual que rastreia temas importantes, levanta teses fecundas e amplia o espectro dos argumentos pertinentes para melhorar o nível deplorável dos debates públicos.

Por outro lado, eu não deveria sonegar aqui a ocupação mais querida dos intelectuais: eles adoram sintonizar-se com as queixas rituais sobre o declínio “do” intelectual. Confesso não estar inteiramente livre dessa tendência.

Será que não sentimos falta das grandes entradas em cena e manifestos do Grupo 47, das intervenções de Alexander Mitscherlich ou Helmuth Gollwitzer, dos posicionamentos políticos de Michel Foucault, Jacques Derrida e Pierre Bourdieu, os textos de intervenção de Erich Fried ou Günter Grass? Será que a culpa realmente cabe a Grass, se as suas vozes hoje praticamente só encontram ouvidos moucos? Ou será que na nossa sociedade midiática não ocorre uma nova mudança estrutural da esfera pública, que faz mal à figura clássica do intelectual?

Por um lado, a reorientação da comunicação, da imprensa e do jornalismo escrito para a televisão e a internet conduziu a uma ampliação insuspeitada da esfera pública midiática e a uma condensação ímpar das redes de comunicação.

A esfera pública, na qual os intelectuais se moviam como os peixes na água, tornou-se mais includente, o intercâmbio é mais intenso do que em qualquer época anterior.

Maldição

Por outro lado, os intelectuais parecem morrer sufocados diante do transbordamento desse elemento vivificador, como se ele lhes fosse administrado em overdose. A bênção parece transformar-se em maldição. As razões para isso me parecem ser uma informalização da esfera pública e uma indiferenciação dos correspondentes papéis.

A utilização da internet simultaneamente ampliou e fragmentou os nexos de comunicação. Por isso a internet produz por um lado um efeito subversivo em regimes que dispensam um tratamento autoritário à esfera pública. Por outro lado, a interligação em redes horizontais e informalizadas de comunicação enfraquece ao mesmo tempo as conquistas das esferas públicas tradicionais, pois estas enfeixam no âmbito de comunidades políticas a atenção de um público anônimo e disperso para informações selecionadas, de modo que os cidadãos podem ao mesmo tempo se ocupar dos mesmos temas e contributos criticamente filtrados.

O preço do aumento positivo do igualitarismo, com o qual a internet nos brinda, é a descentralização dos acessos a contribuições não-redigidas. Nesse meio, as contribuições de intelectuais perdem a força necessária para formar um foco.

Não obstante, seria apressado afirmar que a revolução eletrônica destrói o palco para as aparições elitistas de intelectuais vaidosos, pois a televisão, essencialmente atuante no âmbito das esferas públicas estabelecidas nos Estados nacionais, apenas fez aumentar o espaço do palco da imprensa, das revistas e da literatura.

Ao mesmo tempo a televisão transformou o palco. Deve mostrar em imagens o que quer dizer, e acelerou o iconic turn, a virada da palavra para a imagem. Essa desvalorização relativa desloca também os pesos entre duas funções distintas da esfera pública.

Como a televisão é um meio que torna algo visível, confere celebridade no sentido de notoriedade aos que aparecem em público. Os atores sempre representam a si mesmos diante da câmera, independentemente da sua contribuição ao conteúdo do programa. Por isso o espectador se lembra em encontros fortuitos de ter visto o rosto do outro em algum momento passado.

Mesmo se o conteúdo remete a um evento discursivo, a televisão convida os participantes à representação de si mesmos, como podemos observar em muitos talk shows. O momento da auto-representação dos atores transforma inevitavelmente o público judicante — que, diante da tela, participa do debate sobre temas de interesse geral — também em um público assistente.

Celebridade e reputação

Não se diga que esse traço não cai como uma luva na vaidade patológica dos intelectuais; alguns se deixaram corromper pelo convite do meio à auto-representação, prejudicando assim a sua fama, pois o bom nome de um intelectual, se é que ele existe, não se baseia em primeiro lugar na celebridade ou notoriedade, mas em uma reputação, que o intelectual deve ter adquirido entre seus pares de profissão, seja como escritor ou como físico (de qualquer modo, em alguma especialidade), antes de poder fazer um uso público desse saber ou dessa reputação.

Ao intervir num debate com argumentos, ele precisa se dirigir a um público não de assistentes ou espectadores, mas de oradores e destinatários potenciais, capazes de discutir uns com os outros. Para expressar isso à maneira de um “idealtipo” — segundo o sentido de Max Weber —, importa aqui a troca de razões, e não o enfeixamento encenado de olhares.

Talvez isso explique porque as rodas de políticos, especialistas e jornalistas, que se formam em torno dessas moderadoras feéricas, não deixam nenhuma lacuna que deveria ser preenchida por um intelectual.

Não sentimos sua falta, pois todos os outros já há muito tempo cumprem melhor o seu papel. A mistura de discurso e auto-representação conduz à indiferenciação e assimilação de papéis, que o intelectual, hoje démodé, outrora se via obrigado a manter separados.

O intelectual não deveria usar a influência ganha com palavras como meio de conquista de poder. Não deveria, portanto, confundir “influência” com “poder”. Mas ainda hoje, nos talk shows, o que poderia distingui-lo dos políticos, que há muito tempo se servem do palco da televisão para uma concorrência intelectual em busca da ocupação de temas e conceitos influentes?

Faro vanguardista

O intelectual também não é requisitado como especialista.

Sem perder a consciência da sua falibilidade, ele deveria ter a coragem para posicionamentos normativos bem como a fantasia necessária para a formulação de perspectivas imaginativas. Mas o que poderia distingui-lo hoje ainda de especialistas, que há muito tempo aprenderam na discussão com especialistas de opinião contrária o que devem fazer para oferecer uma interpretação de seus dados que defina eficazmente a opinião dos ouvintes?

Por fim, o intelectual deveria se distinguir do jornalista inteligente menos pela forma da apresentação e mais pelo privilégio de ter de se ocupar apenas paraprofissionalmente dos assuntos da coletividade.

Ele só deveria intervir, mas intervir em tempo hábil — à semelhança de um sistema de alarme antecipado —, quando a vida cotidiana sai dos trilhos.

Com isso mencionamos a única capacidade que deveria distinguir o intelectual também no presente, a saber, o faro vanguardista para relevâncias. Ele deve poder interessar-se por desenvolvimentos críticos num momento no qual os outros ainda se detêm no business as usual.

Isso exige algumas virtudes inteiramente não-heróicas: uma sensibilidade desconfiada diante de lesões da infra-estrutura normativa da sociedade; a antecipação cautelosa de perigos que ameaçam a dotação mental da forma da vida política comum; o senso do que falta e “poderia ser diferente”; um pouco de imaginação para a projeção de alternativas; e um pouco de coragem para a polarização, a manifestação inconveniente, o panfleto.

Dizer isso é uma coisa, fazê-lo outra, e isso sempre foi assim. O intelectual deve poder se inquietar e deveria possuir a faculdade de juízo necessária para não reagir extremadamente.

Seus críticos — de Max Weber e Joseph Schumpeter a Arnold Gehlen e Helmut Schelsky — sempre lhe lançaram a acusação da “excitação estéril” e do “alarmismo”. Ele não deve se deixar intimidar por essa acusação. Mais influente como intelectual, Sartre errou nos seus juízos políticos com maior freqüência do que Raymond Aron.

Por outro lado, o faro para relevâncias também pode descarrilar terrivelmente.

O que mais me estimula hoje — o futuro da Europa — é visto por outros como uma questão abstrata e entediante. Por que deveríamos nos interessar por um tema tão pálido?

A minha resposta é simples: se não conseguirmos fazer da pergunta polarizadora pela finalidade, pelo “para quê” da unificação européia — o tema de um referendo em todos os Estados-membros da União Européia até as próximas eleições européias em 2009 —, o futuro da União Européia será decidido no sentido da ortodoxia neoliberal.

Se evitarmos esse tema delicado em nome de uma paz enganosa e continuarmos com essas medidas de expedientes, tomadas no costumeiro caminho das soluções de meio-termo, daremos livre curso à dinâmica dos mercados desenfreados e assistiremos ao desmonte do próprio poder de configuração política da União Européia, em benefício de uma difusamente ampliada zona européia de livre comércio.

No processo de unificação da Europa, estamos pela primeira vez diante do perigo de uma recaída aquém do patamar atingido da integração. O que me inquieta é a rigidez da paralisia após o fracasso dos dois referendos sobre a Constituição, na França e Holanda. Nessa situação, a ausência de decisão é uma decisão de grande alcance.

O impasse europeu

Três problemas que nos afligem diretamente enovelam-se no problema único da deficiente capacidade de ação da União Européia:

1. Alteradas no curso da globalização, as condições da economia mundial proíbem hoje ao Estado nacional servir-se dos recursos oriundos da arrecadação de tributos, sem as quais ele não pode mais atender, na escala necessária, as costumeiras exigências da política social e, mais genericamente, a demanda de bens coletivos e serviços públicos.

Outros desafios, como o desenvolvimento demográfico e uma imigração maior, agravam essa situação, que só admite uma saída pela via ofensiva: a recuperação da força de configuração política no plano supranacional. Sem alíquotas convergentes de tributos, sem uma harmonização das políticas econômicas e sociais no médio prazo, deixaremos o destino do modelo social europeu nas mãos de terceiros.

2. O retorno a uma política brutalmente hegemônica de busca do poder, o choque do Ocidente com o mundo islâmico, a decomposição de estruturas estatais em outras partes do planeta, as conseqüências de longo prazo da história colonial e as conseqüências políticas diretas de uma descolonização fracassada: tudo isso sinaliza uma situação mundial extremamente perigosa.

Somente uma União Européia que se habilita à ação no plano da política externa e assume um papel relevante em termos de política mundial, ao lado dos EUA, da China, da Índia e do Japão, poderia fomentar nas instituições existentes da economia mundial uma alternativa ao predominante Consenso de Washington e fazer avançar, sobretudo no interior da ONU, as reformas há muito tempo vencidas, entrementes bloqueadas pelos EUA, mas dependentes do seu apoio.

3. As causas da cisão do Ocidente, visível desde a Guerra do Iraque, também residem em um conflito de culturas que divide a própria nação norte-americana em dois campos de dimensões praticamente iguais. Na seqüência desse deslocamento mental, os critérios de aferição normativa da política governamental, até agora vigentes, se desconcertam por igual. Isso não pode deixar indiferentes os aliados mais estreitos dos EUA.

Justamente nas situações críticas em ações conjuntas, devemos nos libertar da dependência do parceiro mais forte.

Até agora os europeus se subordinaram às instruções e regras do alto comando norte-americano nas missões da Otan [aliança militar ocidental]. Agora devemos nos capacitar para manter, mesmo em ações conjuntas, a fidelidade às nossas próprias idéias sobre o direito internacional público, a proibição da tortura e o direito penal em conflitos bélicos.

Democracia

Por isso, penso que a Europa deve se mobilizar para uma reforma que não confira à União Européia apenas procedimentos decisórios efetivos, mas a dote de um ministro de Relações Exteriores, um presidente eleito pelo voto direto e uma base financeira própria. Tais exigências poderiam ser o objeto de um referendo, que poderia ser combinado com as próximas eleições para o Parlamento Europeu.

O anteprojeto seria considerado aceito caso obtivesse a “maioria dupla” dos Estados-membros e dos votos dos cidadãos. Ao mesmo tempo, o referendo vincularia apenas os Estados-membros em que a maioria dos cidadãos teria decidido em favor da reforma.

Com isso a Europa daria adeus ao modelo do comboio de navios no qual o mais lento define a velocidade. Mesmo em uma Europa de centro e periferia, os Estados-membros que por enquanto preferem ficar à margem naturalmente continuariam com a opção de associar-se ao centro quando bem quisessem.

Os políticos com o faro orientado para o futuro podem levar os intelectuais a reboque.

DEU NO JORNAL DO BRASIL


A REPÚBLICA, DE FLORIANO A LULA :: WILSON FIGUEIREDO
Wilson Figueiredo
jornalista


Ninguém mais perde tempo em atribuir a Lula, mordendo a língua, a responsabilidade pelo que vem acontecendo ao Brasil. Nada pega de muda na sua biografia. O presidente não quer saber de observações contrárias à alta avaliação que faz a seu próprio respeito. Dá como feitas obras ainda no papel e saca pesado contra a História que lhe abriu crédito sem teto. Lula usa cartão corporativo para quitar-se, no presente e no passado, do país que não tira os olhos do futuro.

O brasileiro já parece disposto a esperar o resultado das revelações escabrosas para falar. Foi mesmo a situação geral que elegeu o presidente Lula. O Brasil atual só pode ser obra de vários governos. Falta saber quando foi que o Brasil começou a retroagir moralmente. Vai ver que desde as caravelas. Já está claro que o passado não absolve, mas esquece. O futuro, já dizia Santo Agostinho, tem o inconveniente de estar sempre atrasado e, quando se procura por ele, já vai longe. O Brasil continua esperando. Se o Brasil não deve a Lula o espetáculo de baixo nível ético, não pode desconhecer que o elegeu. É natural a má vontade. O esgotamento da social-democracia no governo anterior, além da reeleição, criou condições para Lula abrir espaço social à cidadania mínima. Elas por elas. E assim se conta como Lula deu a mão àquelas faixas sociais batizadas com letras do alfabeto mas ainda sem acesso à educação e à saúde públicas. Com o Bolsa Família e outras fontes de sobrevivência mínima, o presidente fez o seu nicho na História do Brasil. Ainda ativou a Polícia Federal e tirou o pão da boca da oposição.

Já que o show não pode parar e a ação policial muito menos, já que não foi Lula quem incrementou as roubalheiras, nada o impede de fazer o levantamento das responsabilidades alheias, mas sem a tradicional separação de bons e maus ladrões. "Ou todos comem ou haja moralidade" é a retumbante máxima republicana que continua válida, apesar da omissão do nome do seu autor, o marechal Floriano Peixoto, de quem Lula poderia aproveitar lições contundentes. Diante de um pedido de autorização para pagamento de obras públicas, o marechal estranhou o custo e exigiu explicações. Teve-as, mas não se satisfez e, como era hora de pagar, não perdeu tempo. Antes da assinatura, Floriano lavrou de próprio punho o despacho com a ressalva: "Pague-se, mas que ladrões". Lula bem poderia valer-se do precedente histórico e homenagear o consolidador da República quando aqui chegar a IV Frota americana. Diante da fermentação política que azedava os sonhos republicanos, o embaixador britânico sondou o governo sobre como seria recebido o desembarque de marinheiros ingleses para ajudar a manter a ordem pública. O presidente Floriano não se fez de rogado: "a bala".

Desde que o governo Lula ficou mais visível que previsível, não custa procurar aonde foi parar a idéia do terceiro mandato recusado com firmeza digna de desconfiança. A candidatura da ministra Dilma Rousseff é auto-insustentável. Se o presidente se render ao imprevisível, a ministra será a primeira a reconhecer que a prioridade é de quem a tem, ou seja, dele – Lula. Nada impede os fatos de tomarem outro rumo sem consultá-lo. É por aí que o terceiro mandato se esconde numa situação que comporta variantes de todos os matizes.

No seu tempo, Machado virou do avesso aquele ditado popular que reconforta os pobres com a ressalva e a rima de que é a ocasião que faz o ladrão. Sempre atento à natureza humana, ele considerava que o ladrão nasce feito. O dote vem do berço e a ocasião é fortuita, seja pobre, rico ou remediado o ladrão. Por ser mais antiga do que a teoria, a desigualdade social na questão do roubo nem foi abordada por Rousseau. Aliás, ladrão paira acima da ocasião, que não apenas propicia o roubo como beneficia o ladrão, e ainda sobra para os advogados.

A rigor, nem a ocasião garante o ladrão, depois que a quebra da trinca dos sigilos mais produtivos – telefônico, fiscal e bancário – passou a dar testemunho.

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

ILUSÕES PERDIDAS
Fernando de Barros e Silva

SÃO PAULO - Num país tão brutalmente desigual, soa até ofensivo perguntar se a Justiça é elitista. Como? Claro que sim, como a saúde e a educação, direitos universais no papel. Os que não podem pagar (professor, médico ou advogado) se viram na moenda social brasileira.

Essa é também uma sociedade autoritária. Escravocratas durante séculos, seguimos patrimonialistas. E saímos de uma ditadura de duas décadas há pouco mais de 20 anos. Essas marcas estão inscritas na maneira de pensar, no país que conseguimos ser: ainda desiguais demais, ainda democratas de menos.

O "affaire Dantas", além do potencial explosivo, é rico porque traz à tona esse núcleo de problemas: privilégio e impunidade de um lado, demanda por justiça social e por lei para todos, de outro.

A simpatia popular pende para o elo mais fraco -neste caso, o delegado da PF, o que por si só é uma boa ironia. Não se deve caluniar a polícia abstratamente, disse o filósofo Adorno ao amigo Marcuse, pouco antes de morrer em 1969.

Mas não se deve também relevar o viés autoritário ou os abusos heterodoxos do inquérito (como se fossem "só" males menores) em nome do desejo por justiça.

Não é preciso querer livrar a cara dos vilões para notar que ninguém nessa história faz boa figura. Este parece ser o xis da questão. A polícia atropela a lei para combater privilégios; advogados invocam a lei para preservar os mesmos privilégios. Quantos interesses inconfessáveis escondem cada intenção geral?

Talvez este episódio nos coloque diante do que o crítico Roberto Schwarz chamou de "desigualdade social degradada", a saber: esgotada a perspectiva histórica de uma vida nacional e coletiva decente, a sociedade se reproduz mais e mais e de cima abaixo sob o signo da delinqüência. Daniel Dantas seria, tanto quanto Fernandinho Beira-Mar, um tipo capaz de iluminar a trama contemporânea do país.

Ficamos ainda sem saber se é um prenúncio de boas novas ou um sintoma dos limites do Brasil.

DEU NO VALOR ECONÔMICO


OPERAÇÃO SATIAGRAHA
Fábio Wanderley Reis


A confusão criada em torno da operação Satiagraha da Polícia Federal leva talvez sobretudo a uma indagação: temos "patrimonialismo", com o Estado exposto à sanha de interesses privados poderosos, ou temos antes "abuso de autoridade" por parte do Estado? Ou será que as duas coisas se ligam, sendo uma a contraface da outra?

Apontei aqui, há algum tempo, a ambiguidade envolvida no que caberia desejar quanto à autonomia do Estado. Por um lado, se pensamos na "soberania popular" e na imagem de um "povo" homogêneo que ela evoca, parece claro que o Estado não pode ser autônomo; por outro, se o Estado se relaciona com uma sociedade desigual, sua sujeição ao povo supostamente soberano pode redundar em que ele se transforme, no limite, no "comitê executivo" de interesses privados poderosos. Que dizer de uma situação, como a nossa, em que o tamanho da desigualdade permite à linguagem corrente contrapor com clareza um "povão" - numeroso, pobre e ignorante - a uma parcela comparativamente reduzida da população que se poderia pretender aproximar, por alguns traços, do "povo" idealizado e soberano?

Estado subjugado ou abuso estatal?

Menos mal que o "povão", sendo numeroso, ganha eleições, o que, se a democracia e o sufrágio se garantem, não pode senão ter, no longo prazo, efeitos democratizantes sobre o Estado e a sociedade. Mas as vicissitudes do processo acumulam feições contraditórias em que a ambiguidade fundamental ganha dramaticidade e que o noticiário recente sobre as atividades do braço policial ou armado do Estado deixa ver: de um lado, ações desastradas ou diretamente criminosas de forças policiais ou militares que comprometem - em geral para o "povão" - o próprio direito à vida; de outro, uma PF aparentemente imbuída do espírito de luta contra o que ela mesma vê como o "mal" e que se traduz direta e explicitamente em termos de indevida apropriação privada do Estado.

O diabo é que, se nos voltamos para o plano econômico-financeiro, não há como carimbar negativamente, de maneira taxativa, sequer a aproximação, afim à idéia de patrimonialismo, entre o Estado e interesses privados.


Que dizer, por exemplo, de uma entidade como o BNDES?


Os juros módicos de seus empréstimos à iniciativa empresarial são sem dúvida defensáveis em nome do interesse público, destinando-se a permitir investimentos e crescimento que supostamente beneficiam a todos (a assimilação, em algum grau, entre interesse empresarial e interesse público constitui, em muitas análises, importante fator a viabilizar a própria democracia).


Mas eles não só resultam, ocasionalmente, em autênticas doações de recursos volumosos a ricos empresários (como nos tempos de juros reais negativos diante da inflação); eles permitem também, como Raquel Balarin destacava em sua coluna de 16 de julho neste jornal, a especulação financeira por parte dos bancos, a jogar, de modo perfeitamente legal, com o diferencial entre a taxa de 6,25% ao ano cobrada pelo BNDES e os 12,25% da taxa Selic. Se isso é possível, se lobbies ou grupos de pressão constituem também uma atividade em princípio aceitável, torna-se, naturalmente, problemático (ainda que seja fácil ver corrupção no extremo do suborno de delegados) situar o ponto em que começa o condenável "tráfico de influência" de um Daniel Dantas - cujo alcance notável acaba por incomodar de imediato ao governo, calar a boca da oposição, mobilizar a ira de Gilmar Mendes e levar os deputados em geral ao gracejo algo assustado de transformar Satiagraha em "essa me agarra"...

Mas, na dinâmica de nossa sociedade desigual, a própria Justiça surge dividida nos eventos que se desenrolam. Por certo, o Judiciário tem papel crucial a cumprir para a "boa" autonomia do Estado, encarregado de zelar imparcialmente pelo império de leis neutras diante dos interesses diversos. Mas não é de surpreender, numa sociedade de larga experiência escravista e aristocrática, que a Justiça em geral manifeste ainda um viés elitista em sua atuação, e que também aos seus olhos alguns acabem sendo mais cidadãos do que outros. Certamente há matizes, que respondem em parte pela divisão observada. Sem falar da Justiça do Trabalho, em que o viés em favor de empregados ou trabalhadores é notório há tempos, o antigo conservadorismo dos profissionais ligados à área do Direito tem sido substituído, como mostram pesquisas recentes, pelo apego majoritário dos juízes à idéia de justiça social como referência e orientação, em vez da letra da lei. Aí se desdobra de modo importante a idéia de um Estado (e um Judiciário como seu instrumento) autônomo e capaz de neutralidade: seria preciso alcançar uma neutralidade de "segundo grau", em que o fundamento por excelência do acesso de todos à Justiça e da adequada e igualitária garantia dos direitos civis (e políticos) esteja no avanço social geral e na eventual condição igualitária da sociedade como tal.

É possível destacar o aspecto pelo qual a referência à justiça social, em vez do apego à letra da lei, converge com o ativismo legislativo que a cúpula do Judiciário tem defendido com respeito à sua própria ação. Seja como for, é com certeza relevante o fato de que, quanto a essa cúpula, a veemência indignada e a singular rapidez na denúncia dos abusos de autoridade e nas decisões correspondentes ocorram quando tudo mostra a vítima dos presumíveis abusos como o mentor de avanços singularmente ousados de interesses privados sobre o Estado.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

DEU EM ZERO HORA


É MELHOR CUMPRIR A LEI
Paulo Brossard


Fatos dos últimos dias estão a revelar falta de unidade do governo, que é comum quando muitos mandam e ninguém obedece. O presidente da República, ao retornar do giro diplomático empreendido, acostumado como está a opinar e doutrinar a respeito de tudo, chegou a ordenar o retorno de um delegado de polícia ao posto de que se afastara ou fora afastado, e o delegado que fora ou não afastado diz que vai, mas não vai, porque não fará nenhuma investigação, não presidirá nenhum inquérito. E agora? Mas o presidente também disse que não gostou do espetáculo publicitário que tem marcado atos policiais que nada recomendam à necessária discrição inerente ao governo e à administração. No meio desse alarido oficial, aqui e ali, alguma coisa parece estar mudando.

Misturando elementos vários, como justiça e corrupção, governo e permissividade, não será difícil separar coisas tão diferentes. De uma parte, impressionados com as dimensões da corrupção, muitos entendiam, ou pelo menos deixavam entrever, que para combatê-la tudo era permitido, fosse ou não autorizado por lei, enquanto outros pensavam que o ferro em brasa, apto a escoimar a pústula, não excluía ter presente os ditames da lei, de modo a não claudicar no alvo e no modo de enfrentá-lo. Em outras palavras, o combate rijo à corrupção para uns não se sujeitaria aos limites legais, para outros a firmeza na luta contra o câncer social inegável, mais acertado seria se atentasse aos preceitos existentes, talvez menos rápidos, mas mais seguros. As divergências, em verdade, refletiam o perfil mental das pessoas, sua formação e as respectivas experiências de vida.

Enfim, uns queriam extirpar o mal de um golpe enérgico, que interrompesse de pronto a propagação do flagelo e outros entendiam que a degenerescência enraizada dificilmente seria erradicada de uma vez. As leis encerram experiências antigas confirmadas pelo tempo. Elas não são boas por serem antigas, mas são antigas por se terem revelado boas porque adequadas. O respeito à defesa, aos prazos marcados e aos recursos que permitem repensar os juízos deve ser observado somente em tempos normais? Por que não deve sê-lo sempre, particularmente em momentos convulsionados capazes de excitar os sentimentos coletivos? Se a justiça tarda, é a negação de justiça, como diz a sabedoria popular, uma justiça a meia rédea também será uma fraude à justiça. De resto, não se deve esquecer a advertência de Rui Barbosa: "Quando a lei deixa de proteger os nossos adversários, virtualmente deixa de nos proteger"; ou há quem duvide dessa verdade?

Na minha apreciação será sempre preferível o meio em que as garantias legais sejam preservadas, ainda que, o termo de procedimento tarde algumas horas. Será tempo ganho. Tudo deve ser bem feito, especialmente os pertinentes aos princípios fundamentais de liberdade e de ordem.

***
Antes de terminar, devo registrar a notável exposição acerca da "Epidemia do Crack", de Itamar Melo e Patrícia Rocha, desdobrada em capítulos estampados neste jornal. Trabalho sério e doloroso, sem dúvida, e que merece por isso mesmo ser recolhido das páginas efêmeras do jornal para outras mais duradouras, como as do livro. É pungente mas é real e dramaticamente vivo, embora conduza à decadência e à morte.

*Jurista, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal