quinta-feira, 7 de agosto de 2008


O QUE PENSA A MÍDIA
EDITORIAIS DOS PRINCIPAIS JORNAIS DO BRASIL
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DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


ALGO DE SUJO ALÉM DE FICHAS
Dora Kramer



Há 12 anos, em fevereiro de 1996, Michael Jackson estrelou um videoclipe filmado no morro Santa Marta, zona sul do Rio, sob a direção de Spike Lee, os mais taludos se lembram.

Não era a criatura assombrosa de hoje. Tratava-se do maior astro pop do mundo, festejado e recebido com deferência em toda parte. Menos nos territórios sob controle do narcotráfico na cidade cartão-postal do Brasil, onde precisou se enquadrar às normas do crime organizado para ter o direito de ir e vir, exatamente como ocorre agora com os candidatos a prefeito.

Precedidas de explícitas negociações entre a produção norte-americana e o comando do tráfico no morro, as filmagens só aconteceram mediante pagamento de pedágio aos donos do pedaço.

Um deles, o traficante Márcio Amaro de Oliveira, conhecido como Marcinho VP, morto em 2003 no presídio de Bangu 3 por colegas do crime, foi uma das estrelas do fim daquele verão de 96 e ganhou fama no papel de "negociador".

Escândalo? Nenhum. Estranheza? Nenhuma, excetuados talvez os desmancha-prazeres, preocupados com pormenores tais como o Brasil figurar no noticiário internacional como o lugar onde Michael Jackson precisou de salvo-conduto do narcotráfico para cantar e dançar. Debaixo do nariz das autoridades, tão deslumbradas com o séquito de Michael quanto complacentes para com a turma de Marcinho VP.

Corria o segundo ano do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, que, se achou aquilo anormal, guardou para si.

A vida seguiu seu ritmo. Lá como cá, a obsessão era a economia. Indo bem, tudo vai bem, ainda que a matança grasse, que o marginal capture prerrogativas do Estado e a segurança do público seja assunto restrito a momentos de fortes - e cada vez mais fugazes - emoções.

Também se combatia a violência a golpes de passeata - com contundência e eficácia semelhantes às dos candidatos atuais quando reagem às ameaças de fuzil com a entrega de manifestos à Justiça Eleitoral - e se cuidava mais dos acertos de contas do passado - na época literalmente, com a decisão de pagar indenizações aos perseguidos da ditadura - que dos horrores do presente.

Em janeiro de 1998, o então chefe do Gabinete Militar, general Alberto Cardoso, anunciava "estudos" para a montagem de um plano de combate ao narcotráfico em áreas específicas denominadas por ele de "zonas liberadas" espalhadas por diversos pontos do País.

No Rio, denunciava o general, já havia se instalado um legítimo "Estado paralelo" sob o comando do crime. Na concepção dele, delineava-se uma grave ameaça à soberania nacional.

"O Brasil ainda está muito longe de Medellín (Colômbia), mas a tomada de consciência não pode esperar mais."

O governador na ocasião, Marcello Alencar, tucano como o presidente da República, não gostou. À história da filmagem de Michael Jackson não impôs reparo, mas à denúncia sobre a existência de territórios dominados, reagiu indignado.
Repudiou a idéia e negou que o narcotráfico atuasse no Rio como uma rede de poder crescente. "Aqui o crime não é organizado porque não deixamos que seja", disse o governador, especialmente contrariado com a constatação do general de que o princípio da autoridade estava sendo banalizado e invertido.

Movimento cujo início foi localizado pelo general nos primeiros anos dos 80. Por isso, foi ironizado no boletim oficial do PDT, partido de Leonel Brizola, governador eleito em 1982, que vestiu a carapuça e passou a desqualificar os alertas como "coisa da direita".

Uma das poucas autoridades a se aliar à evidência apontada pelo ministro do Gabinete Militar, o prefeito do Rio, Luiz Paulo Conde, afirmou que a prefeitura já sofria restrições de acesso às favelas por parte das quadrilhas.

A despeito do perigo óbvio, das provas e das conseqüências, o tema foi e continua sendo tratado como coisa secundária. É lícita e saudável a preocupação do País com os candidatos "fichas-sujas", mas é desproporcional à atenção que deveriam merecer os episódios diários de demarcação de território na campanha do Rio.

Um desonesto não pode indignar mais que um assassino.

O problema não é local nem superficial. Nada é mais importante nesses tempos de campanha que o fato de os pretendentes a gestores da segunda maior cidade do País prestarem obediência compulsória a marginais.

Sem paranóia, é uma ameaça à soberania da legalidade.

Nos "fichas-sujas", o Congresso, se quiser, dá um jeito, mudando a lei. Se não quiser, o eleitor pode ele mesmo começar a fazer a limpeza pelo voto.

Agora, contra os "vidas-sujas" estamos indefesos. Se deputados e senadores se submetem aos ditames do crime na busca de voto, imagine-se a situação do morador dependente total dos chefes das "comunidades".

Hoje os pretendentes a prefeito do Rio são impedidos de circular, amanhã começam a correr risco de vida, depois de amanhã interditam-se candidatos a presidente e assim vai até que o Estado - já subtraído da prerrogativa do ataque - saia da defensiva para cair na rendição.

DEU NO VALOR ECONÔMICO


PT NÃO É PÁGINA VIRADA DO FOLHETIM
Maria Inês Nassif

O PT não pode simplesmente desconhecer o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e partir para uma carreira solo em 2010, lançando um candidato a presidente que não tenha o referendo e o apoio do atual chefe-de-governo - essa é uma opinião dominante. Não está claro, todavia, se o presidente Lula tem, sozinho, o condão de levar um candidato à sua sucessão à revelia de seu partido.

O PT não é o partido dos sonhos de Lula, mas sequer está claro se Lula é o presidente dos sonhos do PT. É verdade que Lula terá um enorme poder de transferência nas eleições de 2010, quando terá terminado seu segundo mandato e estará se preparando para voltar a São Bernardo do Campo. Lula teve 60,3% dos votos válidos no segundo turno das eleições de 2006. Segundo pesquisa do Instituto Vox Populi feito para a Fundação Perseu Abramo, cujos dados foram coletadas nos últimos dias de maio, Lula nadaria em águas plácidas se pudesse disputar um terceiro mandato. Se isso fosse possível, 43% dos entrevistados votariam nele. Se for considerado como índice de aprovação de seu governo a soma de avaliações positivas e regulares, Lula está no meio do segundo mandato deitado em 93% de aprovação. Tem 59% de avaliações positivas na média do país, que pode chegar a 71% quando se aproxima do Nordeste. Amarga, na média, apenas 7% de avaliações negativas, que chegam no máximo a 11%, quando o eleitor é da Região Norte.

O PT, todavia, não é uma página virada, descartada do folhetim de Lula. O partido que amargou um enorme desgaste no escândalo do mensalão, em 2005, não apenas voltou a patamares anteriores à crise política, como superou-os. Perto dos outros partidos, o PT continua sendo o mais reconhecido pelo eleitor, para o bem ou para o mal - o que significa que tem visibilidade. É a legenda a quem o entrevistado atribui qualidades políticas e conteúdo ideológico. A primeira façanha do PT foi a de manter-se no primeiro lugar das preferências partidárias. Num universo de eleitores onde mais da metade não se identifica com um partido (54%), um quarto (25%) prefere o PT. O PMDB vem em segundo, com 7%; o PSDB tem 6%; e o DEM, 2%. Em março de 2004, o PT tinha 19%; em julho de 2006, depois do mensalão e antes da reeleição de Lula, baixou para 17%. Seu índice de rejeição, que era de 8% em 2004 e subiu para 12% em 2006, foi reduzido para 8% este ano. O DEM, por exemplo, tem 4% de rejeição, mais do que os 2% que ostenta das preferências dos eleitores. No caso do PSDB, os dois índices, de preferência e de rejeição, quase empatam - 6% e 5%, respectivamente. Os eleitores também atribuem alguma coerência ideológica ao partido de Lula - 23% consideram que o PT é de esquerda; 5% acham que é de centro; e 12%, de direita. O PSDB, por exemplo, tem um maior grau de dispersão nas avaliações: 10% o consideram de esquerda; 8%, de centro; e 18%, de direita. Essa informação pode ser completada pelo cruzamento de preferência partidária e da posição ideológica declarada pelo entrevistado. Dos que se declararam favoráveis ao PT, 42% se disseram de esquerda.

Não é claro se Lula pode desprezar seu partido

A pesquisa mostra que Lula e PT possuem pesos específicos, mas igualmente se confundem. Os resultados do cruzamento das variáveis avaliação do desempenho de Lula e favoritismo do PT levantam a dúvida: quem deve mais a quem, o PT a Lula ou Lula ao PT? Segundo a pesquisa, 79% dos que declararam preferir o PT fizeram uma avaliação positiva do governo Lula; Lula era o favorito de 48% dos indiferentes ao PT e de 23% daqueles que eram desfavoráveis ao partido. Se, nessa hipótese, se considera que o PT transferiu automaticamente seus votos para Lula, o inverso também é verdadeiro: dos eleitores tradicionais do presidente (assim considerados aqueles que votaram duas vezes ou mais nele), 62% são favoráveis ao PT; dos eleitores eventuais (que votaram em Lula uma vez), 37% são favoráveis ao seu partido. Quanto mais fiel ao PT, mais fiel o eleitor será a Lula, e vice-versa.

É certo que, numericamente, Lula atrai de forma mais declarada eleitores que o seu partido. Mas parece claro que existe uma convergência natural do eleitor de ambos - o PT avança nas regiões onde o "lulismo" é maior e Lula capta naturalmente os votos petistas. A identificação Lula/PT é um dado - por mais que se considere que o líder seja maior que a sua casa, o dado colocado é que o PT, apesar de todos os tremores, ainda é o partido mais orgânico do país, e a identificação entre a legenda e o presidente é parte dessa expressão orgânica. Todo o desgaste sofrido com o mensalão; as defecções de grupos mais à esquerda, que teoricamente eram a mão contrária à burocracia partidária que se dilatou; a adesão e a incorporação de candidatos com maior poder econômico inclusive com domínio sobre a máquina - todos esses movimentos que vêm questionando o partido há anos, mesmo antes da primeira eleição de Lula, não conseguiram destitui-lo como representante de determinados setores sociais. O eleitor ainda vê o partido assim - e é a visão do eleitor que lhe dá organicidade. O PT continua desempenhando esse papel com alguma densidade. É com essa realidade que tanto a máquina partidária, que desideologiza o partido, como Lula, têm que lidar para articular 2010. Daí se deduz que os candidatos a presidente que correm por fora da preferência de Lula dificilmente terão sucesso - mas isso só será verdade para aqueles que, sem a simpatia do presidente da República, não sensibilizarem também a maioria do partido. Essas duas coisas não são necessariamente iguais - até o momento, a candidata preferida de Lula, a ministra Dilma Rousseff, não tem a preferência do partido; o ministro Tarso Genro não é o preferido de Lula, mas é minoritário no partido não por causa disso, mas porque simplesmente não tem força política para se contrapor ao Campo Majoritário; e Marta Suplicy pode ter a maioria do partido, embora não seja a preferida de Lula. No PT, nunca nada foi simples que se possa resumir, como nos partidos tradicionais, que o candidato do presidente é o candidato do partido. Apesar dos pesares, continua não sendo assim.

Maria Inês Nassif é editora de Opinião. Escreve às quintas-feiras

DEU EM O GLOBO


CHOQUE DE CAPITALISMO
Merval Pereira


NOVA YORK. A redução da desigualdade na distribuição de renda, e o crescimento da classe média, registrados por pesquisas da Fundação Getulio Vargas do Rio e do Ipea, são parte de um fenômeno mundial de longa duração, segundo outro estudo, este da Goldman Sachs nos Estados Unidos, que registra dois movimentos no mundo atual: 1) a mudança do poder de gasto em direção às economias médias, longe das economias desenvolvidas, a tal ponto que podem vir a dominar o gasto global pela primeira vez em décadas, à medida em que os países de maiores populações, como os incluídos nos Bric e no Next-11, fortaleçam suas economias. Por volta de 2050, nove países centralizariam cerca de 60% do PIB mundial, a saber: Egito, Filipinas, Indonésia, Irã, México e Vietnã, e três dos Bric - China, Índia e Brasil; 2) A mudança de poder de gasto em direção às pessoas da classe média, grupo que vem crescendo em escala mundial nos últimos dez anos e cuja tendência é continuar crescendo pelas próximas duas décadas.

Como resultado desses dois fatores, segundo a Goldman Sachs, a distribuição da renda mundial está ficando menos desigual e cada vez mais pessoas no mundo estão tendo acesso a essa distribuição.

A classe média global, que inclui os que têm uma renda anual entre US$6 mil e US$30 mil, vem crescendo a uma média de 70 milhões por ano e a previsão é que chegue a cerca de dois bilhões de pessoas por volta de 2030.

Embora China e Índia sejam fundamentais nesse processo, o estudo da Goldman Sachs mostra que, mesmo tirando esses dois países gigantes, o crescimento mundial da classe média continuaria batendo recordes, com cerca de 20 milhões de novos entrantes a cada ano.

Em conseqüência, a distribuição de renda no mundo está melhorando. Pelas projeções da Goldman Sachs, a distribuição global de renda deve se tornar menos desigual mesmo que as desigualdades entre países continuem altas ou até mesmo aumentem, à medida em que mais países de renda média juntem-se ao grupo.

A tendência seria que essa classe média passe a englobar 30% dos cidadãos do mundo em 2030 e chegue a 40% em 2050. As taxas de pobreza também continuarão a cair, e a proporção de pessoas no mundo ganhando menos de US$2,75 por dia, que já caiu nos últimos dez anos de 30% para 17%, deve ser ainda mais reduzida nas próximos anos. Assim como as com renda menor de US$1,50 por dia, que, com o crescimento da Índia e da China, também foi muito reduzida.

O economista Marcelo Neri, coordenador da pesquisa da Fundação Getulio Vargas do Rio que revelou o crescimento da classe média brasileira, que hoje já abrange 52% da população economicamente ativa, acha que a agenda que falta fazer no Brasil é a do "choque de capitalismo" nos pobres, de acesso a mercado para eles chegarem à classe média.

"Os pobres não precisam de proteção dos mercados, mas de que se pavimente o caminho deles de acesso aos mercados, seja de trabalho através de capital humano, com a educação, seja de investimento através de microcrédito, seja aos mercados consumidores, através de cooperativas, o capital social", assegura ele.

Segundo Neri, é "preciso pensar na riqueza e não na pobreza dos pobres". Em contraponto a "alguns que ainda querem a revolução socialista", o economista da Fundação Getulio Vargas diz que "a melhor proposta é o capitalismo para todos".

Ele compara a redução de desigualdade, "uma das maiores conquistas da presente década", com a estabilização na década de 90, a redemocratização na de 80, e o "milagre brasileiro" nas duas décadas anteriores. E diz que "a classe média precisa menos ainda de assistencialismo (pensões, transferências, etc) do que os pobres".

O outro estudo, o do Ipea, que mostra a redução da pobreza no Brasil, compreende os últimos 15 anos, de 1992 a 2008. A queda entre 2002 e 2008, que reduziu a 24,1% o percentual de pobres no país, nos faz retornar aos patamares de 1995, quando, devido aos efeitos do Plano Real, a proporção de pobres chegou a 25,3%.

Marcelo Neri diz que, embora muito tenha sido falado sobre a redução de desigualdade, desde 2001, e de pobreza, desde 2004, com ênfase especial ao papel das transferências de renda oficiais aos mais pobres, pouco se destacou os avanços estruturais decorrentes da expansão trabalhista observados em todos os segmentos da sociedade.

"Desde o final de 2006 até agora acontece aumento da renda do trabalho em geral, e da geração de empregos formais em particular", diz ele em seu estudo, que contém um dado importante: "A renda da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) já segue o passo do crescimento per capita chinês desde 2005, sendo 4,3% maior que o do PIB per capita", isso graças à geração da renda do trabalho.

Essa melhoria se concentra, segundo Neri, "nos elementos que ocupavam há pouco o epicentro da nossa crise, quais sejam: a renda do trabalho, o emprego com carteira, as metrópoles e a chamada classe média". Depois de duas décadas perdidas em relação à renda e ao trabalho, "a combinação de crescimento mais acelerado com marcada redução de desigualdade por um período mais longo é notável".

Na coluna de domingo, escrevi "as milhares de crianças" quando o correto é "os milhares de crianças".

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

A LEI DA ANISTIA
Editorial/O Estado de S. Paulo


O ministro da Justiça, Tarso Genro, está empenhado em fazer da Lei da Anistia letra morta. Como sabe que a revogação pura e simples da lei está além de sua competência como ministro, patrocina uma interpretação enviesada do texto que contribuiu decisivamente para a pacificação política do País, abrindo caminho para a redemocratização. Quer que os “torturadores” - e inclui nessa categoria apenas agentes do Estado - sejam levados à Justiça e punidos. “A partir do momento em que o agente do Estado pega o prisioneiro e o tortura num porão, ele sai da legalidade do próprio regime militar e se torna um criminoso comum. Não foi um ato político. Ele violou a ordem jurídica da própria ditadura e tem de ser responsabilizado”, afirmou ele em audiência pública organizada pelo seu Ministério.

Leve-se essa interpretação a sério, e ninguém - da “subversão” ou da “repressão” - terá sido anistiado, uma vez que os governos militares mantiveram intacto o arcabouço jurídico do País, em especial o Código Penal, embora criando regras de exceção - como a prisão sem mandado e a incomunicabilidade. E, assim, nada seria crime por motivação política, e tudo seria vulgar infração da legislação penal.

Essa, aliás, foi uma das características da chamada Revolução. Depois do discurso de 13 de março do presidente Jango Goulart, anunciando o seu projeto de República Popular Democrática, com o golpe de 31 de março instalou-se um governo de força, mas o governante de turno exercia mandato com data certa para terminar e o Congresso e o Judiciário continuaram funcionando. O regime de exceção se manifestava no poder de cassar mandatos eletivos e de suspender os direitos da cidadania.

Nos países sul-americanos onde os militares tomaram o poder, na época, a ruptura institucional foi completa. A repressão foi brutal e sistemática. No Uruguai, por exemplo, além dos mortos e desaparecidos, mais de 1 milhão de pessoas tiveram de buscar asilo no exterior, temendo pela própria segurança. Na Argentina e no Chile, os mortos se contaram às dezenas de milhares antes mesmo que os opositores do regime militar se organizassem na resistência armada. No Brasil, os torturados, mortos e desaparecidos, durante as duas décadas de regime militar, não chegaram a 400 - e todos os casos foram documentados pela comissão coordenada pelo arcebispo d. Paulo Evaristo Arns e pelo reverendo Jaime Wright.

O ministro Tarso Genro e o secretário de Direitos Humanos, Paulo Vanucci, apóiam as organizações que exigem que a Corte Interamericana de Direitos Humanos declare sem efeitos a Lei da Anistia. A Corte já adotou tal procedimento em alguns casos, mas nenhum deles tem semelhança com o caso brasileiro. Naqueles países, a anistia foi considerada derrogada porque foi concedida por um grupo que queria se proteger - os militares que deixavam o poder -, exclusivamente para seu benefício. No Brasil, como observou o ministro Celso de Mello, do STF, a lei teve caráter geral, abrangendo todas as pessoas que praticaram excessos em decorrência da existência do regime ditatorial. Destinou-se não a inocentar torturadores da direita ou da esquerda - que estes também existiram -, mas a permitir que a Nação construísse o seu futuro em harmonia.

É claro que a Lei da Anistia não tem o condão de provocar amnésia - e é bom que seja assim. De tempos em tempos, é salutar que uma nação reflita sobre seus períodos negros para que eles não se repitam.

Também não se pode esperar que as pessoas e famílias diretamente atingidas pela brutalidade não queiram satisfações. Algumas buscaram as reparações financeiras que o Estado tem concedido generosamente. Outras entraram na Justiça contra pessoas que denunciam como torturadores, a despeito de a Lei da Anistia estar em vigor. Nesses casos, a Justiça saberá o que fazer.

O que não é admissível é que duas autoridades, ocupando elevados cargos no Executivo - o ministro da Justiça e o secretário de Direitos Humanos -, liderem uma campanha de aberta contestação à Lei da Anistia. Com sua atitude, já eriçaram as Forças Armadas e dividiram o governo - haja vista a reação do ministro Nelson Jobim. Se não forem contidos pelo presidente Lula, acabarão reabrindo cicatrizes e fazendo o País retroceder três décadas.

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

CONTRA ''DESANISTIA'', GENERAL DA RESERVA ATACA TARSO E PT
Tânia Monteiro

Figueiredo sugere que ministro trate de “feridas” mais recentes, como o mensalão e a morte de Celso Daniel


Um dia antes do debate a ser promovido hoje pelo Clube Militar para discutir a Lei de Anistia, o presidente da entidade, general Gilberto Figueiredo, subiu o tom das críticas às declarações do ministro da Justiça, Tarso Genro - que defendeu na semana passada a punição a agentes do Estado que violaram os direitos humanos, durante o regime militar.

Segundo o general, se o ministro "faz questão de lamber feridas", que ponha de lado as que já estão "em processo de cicatrização e volte-se para algumas mais recentes, ainda à espera de esclarecimento", por terem sido supostamente "blindadas pelo governo". Entre essas "feridas" que, avalia, devem ser trazidas à discussão pública, Figueiredo listou o assassinato do prefeito de Santo André Celso Daniel, o escândalo do mensalão e "os indícios de ligações de membros da cúpula governamental com as Farc".

Ao se referir às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, o presidente do Clube Militar fez um duro ataque. "Há uma estranha afeição dos companheiros do ministro (Tarso) com o seqüestro e os seqüestradores, um dos crimes mais infames, ao lado da tortura que o ministro tanto abomina."

Após classificar o debate levantado por Tarso como "débil", o general indagou: "Segundo tal critério, qual dos crimes praticados pelo outro lado seria político? Talvez o do companheiro de ideologia do ministro que assassinou friamente um marinheiro inglês, recentemente desembarcado na Praça Mauá, apenas porque era um representante do capitalismo burguês", argumentou, referindo-se a episódio ocorrido em 1972, quando o marinheiro inglês David A. Cuthberg, de 19 anos, foi metralhado por terroristas.

Figueiredo criticou ainda o "extraordinário empenho, de altos membros do partido do ministro, no sentido de liberar os seqüestradores do empresário Abílio Diniz". E lembrou que é exatamente por meio do seqüestro que as Farc sobrevivem e, exatamente agora, "surge essa suspeita de ligações estreitas" com integrantes do governo.

O debate em contra-ofensiva ao evento promovido por Tarso questionando a Lei de Anistia será realizado hoje à tarde, no Clube Militar, no Rio. O encontro, intitulado A Lei da Anistia, alcance e conseqüências, contará com as palestras do ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Waldemar Zveiter e do general Sérgio de Avellar Coutinho.

O ministro Tarso foi procurado pelo Estado, mas disse que não comentaria as declarações de Figueiredo.

DEU EM O GLOBO


OS ‘PROCESSOS DE TARSO’
Demétrio Magnoli


Tarso Genro é advogado de formação e, por algum motivo obscuro, imagina-se um jurista. A sua tese jurídica mais recente foi alardeada como uma chave mágica para “punir os torturadores”. O ministro do Arbítrio assim a proclamou: “Esse agente (...) que realizou uma prisão ilegal, mas que a realizou dentro das normas do regime autoritário, e levou o prisioneiro para um local de interrogatório, até esse momento, estava de acordo com o regime vigente e, por esse ato, não pode ser responsabilizado. Mas, a partir do momento em que esse agente pega o prisioneiro, leva para um porão e o tortura, ele saiu da própria legalidade do regime militar.”

Esperto como uma raposa, Tarso aponta seu dardo justiceiro para o sargento do porão escuro, que “saiu da legalidade do regime militar”, enquanto firma um compromisso explícito com a cadeia de comando acima dele: “Não são as Forças Armadas que estão em jogo aqui. Não é a postura dos comandantes, dos presidentes ou dos partidos que apoiaram o regime militar. Estamos discutindo o comportamento de um agente público dentro de uma estrutura jurídica.” A mensagem dirige-se aos “comandantes” e “presidentes”, na forma de um pacto: entreguem seus pequenos à imolação na pira da minha justiça de fancaria e eu, em troca, asseguro-lhes o fim das incertezas. Coragem moral é isso.

Classificar Tarso como ministro do Arbítrio é apenas registro factual. Partiu dele a ordem de captura e deportação dos pugilistas cubanos Guillermo Rigondeaux e Erislandy Lara, que abandonaram a delegação de seu país nos Jogos Pan-Americanos do ano passado. O Brasil entregou-os à ditadura dos Castros violando o artigo 22 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, no qual se estabelece que “em nenhum caso” um estrangeiro pode ser entregue a um país “onde seu direito à vida ou à liberdade pessoal esteja em risco de violação” em razão de suas opiniões políticas. A deportação ocorreu depois que Fidel Castro rotulou os pugilistas de traidores da pátria. Agora se conhece a razão de Tarso: ele não liga muito para os tratados entre democracias, mas respeita a “legalidade”, a “estrutura jurídica”, das ditaduras.

A régua moral de Tarso é, antes de tudo, imoral. A sua pretensão de acusar o sargento do porão como criminoso comum, absolvendo a ditadura militar brasileira, significaria torturar a História até virá-la pelo avesso. No ponto de partida dos “processos de Tarso”, o Estado estaria dizendo que a tortura corriqueira de prisioneiros políticos não mantinha relação direta com uma “estrutura jurídica” na qual o direito público à divergência e os direitos privados dos presos haviam sido virtualmente cancelados. De fato, o ministro oferece à ditadura militar a oportunidade de obter um triunfo ideológico póstumo de valor incalculável.

Mas a régua de Tarso está meticulosamente moldada com vista a uma finalidade pragmática. Na Argentina, no Chile e no Uruguai, as leis de anistia dos torturadores sofreram revisões judiciais que abriram caminho para a responsabilização dos “comandantes” e, em certos casos, até dos “presidentes”. Aqui, o ministro pretende promover um número de julgamentos simbólicos de figuras irrelevantes sem atingir o edifício da Lei de Anistia, que consagrou um compromisso indecente entre perseguidores e perseguidos.

Esculpida no apagar das luzes da ditadura e retocada no governo de transição de José Sarney, a Lei de Anistia é um contrato de compra e venda. Os mandantes dos assassinatos e da tortura de Estado compraram a impunidade, pagando-a com recursos públicos, e usufruem hoje a tranqüila aposentadoria dos tiranos. Os perseguidos pelo regime venderam o direito da Nação à memória histórica, que não lhes pertence, em troca de títulos de indenizações pecuniárias cujas cotações são proporcionais à posição e à influência de cada um. Na mesa de operações da bolsa da anistia, um José Dirceu, um Carlos Heitor Cony ou um Ziraldo bem vivos valem dezenas de anônimos assassinados sob tortura.

O contrato funciona eficientemente para os dois lados, à custa da sociedade brasileira, mas experimenta fricções quando suas bases ou seus detalhes sofrem críticas. Nessas horas, emergem os argumentos da delinqüência moral. Os compradores de impunidade ameaçam exigir processos para “os dois lados”, cancelando de passagem o direito à resistência contra a tirania. Não é preciso deixar de deplorar o ato dos seqüestradores de um embaixador, que pretendiam trocar seu cativo por prisioneiros sob tortura, para distingui-lo do ato de uma ditadura que seqüestra militantes políticos e os suplicia. A proposta de equiparação entre esses dois atos evidencia apenas que o Estado dos compradores de impunidade só pode ser anistiado na condição de milícia fora-da-lei.

Os vendedores da memória, por sua vez, almejam conferir aos anistiados o título de heróis da pátria, juntando-os todos num balaio abrangente e desenhando uma auréola de santidade sobre convictos stalinistas que só queriam substituir uma tirania por outra. A operação ideológica, realizada em cerimônias públicas da Comissão de Anistia, é um veículo para legitimar a formação de patrimônios privados a partir das rendas de indenizações.

Uma democracia tem o direito de rever as leis herdadas de uma ditadura e o dever de livrar-se das vendas que a impedem de mirar um passado abominável. Tantos anos depois, uma revisão da Lei de Anistia não poderia abrir caminho para a adequada punição judicial dos “presidentes” e “comandantes” em nome dos quais agiam os torturadores diretos, mas propiciaria, juntamente com a abertura total dos arquivos secretos, uma completa atribuição de responsabilidades históricas. O horizonte do ministro do Arbítrio é bem diverso. Ele quer incrustar na pedra da eternidade a Lei de Anistia, imolando no percurso os mais desavisados entre os anões sádicos dos porões.

Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP.

DEU NA FOLHA DE S. PAULO


RADICAIS DE UNS E OUTROS
Eliane Cantanhêde


BRASÍLIA - Estava um bafafá em setores do governo ontem por causa da manifestação programada para hoje no Clube Militar do Rio, agremiação que faz e acontece, não tem papas na língua e a gente nunca sabe exatamente até onde está falando sozinha ou verbalizando o que o pessoal da ativa não pode (até para não ser punido).

Um erro leva a outro. O primeiro foi do ministro da Justiça, Tarso Genro, que não tinha nada que puxar para o governo -e, portanto, para Lula- a reabertura da Lei da Anistia, três décadas depois. Ficou isolado até no próprio governo. O segundo erro é a reação fora de hora e de dimensão da milicada no Rio.

No fogo cruzado, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, deu um chega-pra-lá no conterrâneo Genro, alegando que, se é para reabrir a Lei da Anistia, que o seja no foro adequado -o Judiciário. Como se dissesse ao Planalto: "Segura os seus radicais que eu seguro os meus".

Lula, aparentemente, está segurando os dele, porque Genro recuou, e a fogueira apagou. Quer dizer, teria apagado, se não viessem os radicais do outro lado para jogar lenha, fósforo e gasolina.

Além da manifestação em si de hoje, a turma de pijama ameaça distribuir fotos e perfis de ministros que reagiram ao regime militar e aderiram à luta armada, como José Dirceu, Dilma Rousseff, Franklin Martins, incluindo o próprio Tarso.

Uma boa pergunta é: quem lucra com isso? Ninguém, muito menos os participantes da provocação, ops, da manifestação de hoje, que, no mínimo, vão passar por defensores da tortura e de torturadores. O que não é elogiável em lugar nenhum, em tempo nenhum.

Mas o pior é se, além de pijamas, aparecerem fardas lustrosas, com quatro estrelas no peito, simbolizando o topo da hierarquia militar.

Há uma convivência elegante no governo entre o lado militar e o lado da antiga militância revolucionária de esquerda. Que permaneça elegante. E jamais vire uma guerra.

DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

A FOME SEGUNDO JOSUÉ
Rosana Magalhães


“A fome se revelou espontaneamente aos meus olhos nos mangues do Capibaribe, nos bairros miseráveis do Recife”, escreveu Josué. Ele foi médico, professor, sociólogo e escritor. Se vivo estivesse, completaria 100 anos em setembro. O pernambucano Josué de Castro foi o primeiro pensador a refletir sobre a natureza e a complexidade das diferentes formas de privação alimentar no País. Não por acaso, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), órgão do qual ele é patrono, deslocará sua reunião plenária, em setembro, de Brasília para Recife, cidade onde nasceu Josué – em evento que deverá contar com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

As idéias de Josué, já no início do século passado, uniram os avanços da bioquímica e da fisiologia, ultrapassaram as fronteiras das disciplinas biomédicas e introduziram categorias analíticas ligadas à sociologia, geografia, antropologia e economia. O descompasso entre as condições salariais e as necessidades alimentares dos trabalhadores o motivou a refletir sobre o papel do Estado e das políticas de governo. Ele associou a fome aos dilemas da construção da nação, do Estado e do desenvolvimento econômico e social.

Hoje, 100 anos depois do nascimento e 35 anos após sua morte, a miséria e a pobreza apresentam novos contornos, novas perspectivas de intervenção pública. A fome continua tema prioritário e exigência política no Brasil, que ainda não conseguiu erradicar a indigência (a incapacidade de obter a renda necessária para a garantir a mera sobrevivência física).

Hoje, no entanto, diferentemente da realidade dos anos 30, 40 e 50, analisados por ele, o quadro de miséria e fome tornou-se mais complexo, mais urbano e segmentado – a partir das clivagens de gênero, etnia, escolaridade e inserção ocupacional. À medida que o Brasil exibe recordes de produção agrícola e um PIB per capita que o insere entre os países mais ricos do mundo, nossos maiores limites para equacionar a fome estão ligados à questão das prerrogativas e dos direitos de cidadania. Ainda assim, ao formular um conceito de desenvolvimento que não é puramente econômico, mas que remete aos dilemas da integração e a emancipação humana, a obra mantém uma proximidade inquestionável com o debate atual em torno das políticas sociais e da cidadania. Estar bem nutrido para Josué de Castro é, antes de mais nada, uma exigência ética.

Sobre as opções políticas para a solução da fome e da miséria, Josué também nos ensinou a recusar o assistencialismo e a fragmentação das ações e evitar a perpetuação de programas setoriais que não buscam a convergência em torno de resultados comuns. Neste sentido, o esforço de fazer dialogar as diferentes agendas das políticas públicas, possibilitar novos arranjos de governança, incluindo múltiplos atores, instituições e grupos sociais em torno da questão da segurança alimentar, atualiza e expande a obra e o pensamento de Josué de Castro.

» Rosana Magalhães, nutricionista, é pesquisadora titular da Fundação Oswaldo Cruz.