terça-feira, 26 de agosto de 2008

O sonho de Obama


Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


DENVER, Colorado. A emoção está no ar, e há simbolismos para todos os gostos nessa convenção democrata que apontará Barack Obama como o primeiro negro candidato à Presidência dos Estados Unidos, exatamente 40 anos depois que outro negro, Channing Phillips, um delegado partidário de Washington, D.C., tornou-se o primeiro político negro a disputar a indicação de um dos dois grandes partidos, embora em caráter simbólico de protesto. Ele, que era delegado de Robert Kennedy, assassinado poucos meses antes, recebeu o voto de 67 delegados naquela ocasião. A convenção de Chicago, que completa 40 anos, marcou uma reviravolta na maneira de escolher os delegados no Partido Democrata.

O choque de gerações que se refletia nos movimentos de protestos nas ruas do país contra a guerra do Vietnã e a favor dos direitos civis, os assassinatos do líder negro Martin Luther King em abril daquele ano, e de Bob Kennedy em junho, virtualmente escolhido o candidato democrata, davam o pano de fundo de uma convenção que dividia o Partido Democrata. E os protestos tomaram conta das ruas de Chicago naquele agosto de 1968.

De um lado uma nova geração de eleitores que havia se entusiasmado com a campanha de Bob Kennedy, do outro a velha guarda partidária, que acabou indicando como candidato o vice-presidente Hubert Humphrey, que não disputou as primárias, mas prometia continuidade. Acabou sendo derrotado pelo candidato republicano Richard Nixon.

O famoso livro de Norman Mailer, "Miami e o cerco de Chicago - A história informal das convenções republicana e democrática de 1968", que entre outros fatos relata a história de Channing Phillips na convenção de Chicago e os protestos de rua juntando os estudantes e os militantes democratas contra a guerra do Vietnã, está sendo reeditado, no mesmo momento em que, aqui em Denver, várias manifestações estão acontecendo contra uma outra guerra, a do Iraque.

Ao mesmo tempo, a campanha de Obama esforça-se para grudar a imagem dele à dos Kennedy, não apenas para reforçar a idéia de mudança que impulsiona sua candidatura entre os jovens e as minorias, como para contrabalançar o poder político de um outro clã, o dos Clinton, que divide o Partido Democrata desde as primárias.

Para acalmar os eleitores jovens, que se sentiram desguarnecidos com o assassinato de Bob Kennedy e o golpe dos políticos tradicionais, o Partido Democrata mudou, após a convenção de Chicago, o processo de escolha de delegados, a fim de dar voz aos representantes das minorias e tornar a escolha mais aberta.

A escolha e subseqüente derrota de George McGovern na eleição de 1972 convenceu, porém, a direção democrata que deixar em mãos inexperientes a decisão final não era uma boa solução, e foi criada então a figura dos superdelegados, indicados pelas direções partidárias nos Estados.

Na eleição deste ano, os superdelegados foram acionados pela senadora Hillary Clinton, na tentativa de desequilibrar a pequena diferença que Obama tinha a seu favor nas primárias e fazer o resultado mais uma vez pender para o lado dos "caciques" democratas.

Preferida pela cúpula partidária, Hillary, no entanto, não obteve o apoio da maioria dos superdelegados, e muitos acham que eles só não se dispuseram a reverter o resultado das prévias com receio de uma reação violenta dos eleitores entusiasmados por Obama, especialmente os jovens, justamente como aconteceu em Chicago há 40 anos.

No seu livro "Audácia da esperança", Barack Obama analisa negativamente o ambiente político de Washington, se colocando como um outsider que se apresenta para mudar a maneira de fazer política. Foi com esse discurso que ele conseguiu neutralizar a adversária Hillary Clinton, que passou a encarnar a velha politicagem.

E foi também com essa pretensão que ele fez aquela viagem internacional cujo ponto alto foi seu discurso para uma multidão em Berlim. Tentou, sem conseguir, firmar-se internamente como um líder reconhecido internacionalmente.

Ao escolher para seu companheiro de chapa, como antídoto contra a também senadora Hillary Clinton e as críticas à sua inexperiência com assuntos internacionais, o senador Joe Biden, de 65 anos, que está há 36 no Senado, Barack Obama deu uma demonstração de que realmente é difícil se livrar da pequena política de Washington.

Virtualmente empatado com seu adversário republicano John McCain, em uma disputa que era vista como a mais fácil dos últimos anos devido à impopularidade do governo Bush e à situação econômica, Obama joga tudo nessa convenção para voltar a tocar os corações e mentes dos americanos, ao mesmo tempo em que faz concessões diversas dentro e fora de seu partido.

A festa está obedecendo aos melhores roteiros de Hollywood, e até mesmo um sósia de Obama desfila pelas ruas de Denver, dando autógrafos e entrevistas. O gran finale será na quinta-feira, com um discurso que se prevê histórico de Obama para uma platéia de 75 mil pessoas num estádio da cidade.

O dia foi escolhido a dedo. Comemoram-se em 28 de agosto os 45 anos do famoso discurso de Martin Luther King que ficou conhecido como "Eu tenho um sonho", um sonho "profundamente enraizado no sonho americano", o sonho da igualdade em que as pessoas não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo seu caráter. Todo esse processo desaguou na candidatura de Barack Obama, no seu sonho pós-racial, que encontra resistência até mesmo entre a velha liderança do movimento negro.

Marketing político, bom e mau

Ali Kamel
DEU EM O GLOBO

Muitos vêem o marketing político como o conjunto de técnicas de comunicação que ajudam a levar um candidato à vitória. Alguns políticos se acham especialistas nesse tipo de marketing, e se orgulham disso. Entre essas técnicas, porém, estão a dissimulação, o logro e a esperteza. Quando as usam, esses políticos podem conseguir vitórias expressivas, mas, no longo prazo, acabam tendo um fim de carreira melancólico: amorfos, sem idéias claras, com uma base de apoio às vezes ampla, mas fragmentada em inúmeros campos, muitas vezes antagônicos.

Visão bem diferente daqueles que consideram o marketing eleitoral como um conjunto de técnicas que ajudam um candidato a tornar mais clara a sua mensagem. Se a mensagem, ao ser entendida, for aceita por parcelas majoritárias da população, o sucesso do candidato será enorme. Pode ser que seja eleito, mas pode ser que apenas se mantenha como uma força política, expressiva ou não. Políticos que vêem o marketing assim sempre se manterão íntegros, com idéias claras e coerentes, com uma base de apoio coesa. Com alguma persistência, podem acabar tornando-se majoritários. Por exemplo, hoje há quem pense que aqueles que defendem a remoção de favelas jamais terão o voto dos favelados. O marketing político bem feito de um candidato sincero, porém, pode, um dia, mostrar aos favelados que os primeiros beneficiários serão eles, que deixarão de morar em condições subumanas, mudando-se para bairros com transporte rápido e barato.

Neste período eleitoral, vale a pena refletir sobre isso. Alguns políticos, Brasil afora, elegem-se como defensores da lei e da ordem, mas, no meio do caminho, ambicionando novos postos, acabam por agregar a essa mensagem o seu oposto: deixam que as vans ilegais proliferem, fazem vista grossa ao comércio ambulante, passam a ver o crescimento de favelas como um dado natural e, talvez, bem-vindo. Querem falar a todos os públicos, numa linguagem que acaba esquizofrênica. A coisa geralmente acontece assim: elegem-se prometendo ordem e obtêm êxito, uma grande parte do eleitorado lhe dá apoio, mas não todo, não há unanimidade. Num segundo momento, ao tentar um posto acima, é derrotado, porque, na crença dele, faltam-lhe os votos das áreas mais pobres, aquelas que ele acredita que não querem a lei e a ordem porque são pobres, uma suposição abjeta. Num terceiro momento, olhando para o mapa eleitoral, e ainda com vôos mais altos na cabeça, passam a prometer coisas antagônicas para diferentes partes do eleitorado. A suposição é de que isso fará dele um campeão de votos. E, na primeira tentativa, pode até fazer. Mas o fracasso estará ali adiante. Incapaz de servir a demandas tão díspares, as críticas começam a surgir de todos os lados, o desgaste é enorme e o que antes era um político forte passa a se comportar como um político amargurado. Tudo isso apesar de todo o conhecimento que achava que tinha das técnicas de marketing eleitoral.

Há também o caso de políticos que praticam a vida inteira o marketing correto, com êxito, transformando-se numa força eleitoral potente, mas sem obter a vitória tão esperada. Em dado momento, flexibilizam o discurso, aparentando acolher sinceramente pontos programáticos que antes rejeitavam como anátema. Com o recuo, obtêm êxito eleitoral, mas, ao chegar ao poder, verifica-se que não houve recuo algum, mas apenas a adesão ao mau marketing político. Se antes defendiam a moralidade como se tivessem o monopólio dela, ao chegar ao poder vêem-se rodeados de escândalos e, diante deles, saem-se com a desculpa de que todo mundo erra. Condenam a vida inteira alianças espúrias, mas, no governo, aliam-se, sem constrangimento aparente, aos que antes abominavam. Também neste caso, o futuro nunca é acolhedor: apesar de uma popularidade persistente quando estão no poder, fora dele a História costuma julgá-los com rigor.

Porque a democracia nunca falha, e os erros deixam marcas e rastros.

Sei, essa frase pode parecer otimista, e haverá sempre quem diga que é justamente a democracia que permite que fenômenos como esses aconteçam. É uma visão equivocada. Quando há democracia, ela não falha, e este é o nosso caso: figuras assim, aqui, acabam despidas. Sei que há aqueles que citam sempre Hitler como prova de que a democracia, às vezes, falha e cria monstros. Não cria. Hitler chegou ao poder não porque tenha vencido uma eleição (em nenhum pleito o Partido Nazista recebeu a maioria absoluta dos votos), mas em decorrência de conchavos entre líderes políticos que se achavam mais espertos do que ele. No primeiro gabinete que chefiou, além de Hitler, só havia mais dois ministros nazistas. Menos de um mês depois, houve o incêndio do Reichstag (forjado, ao que tudo indica, pelos próprios nazistas), e Hitler arrancou do presidente Hindenburg um decreto lhe dando poderes ditatoriais. Em seguida, fez o Congresso aprovar uma lei que dava a ele todos os poderes legislativos. Ora, aí está o "x" da questão. Uma democracia que dá ao presidente o poder de baixar um decreto como aquele e ao Congresso a possibilidade de abdicar de suas próprias obrigações em favor do Executivo pode ser chamada de democracia? Não pode, este é o ponto.

Uma democracia verdadeira contém em si todos os elementos para salvaguardá-la. A democracia não é o sistema político em que todas as tendências políticas disputam; a democracia é aquele sistema em que têm licença para disputar apenas aqueles que não pretendem suprimi-la.

O marketing político entendido como o conjunto de técnicas que ajudam a ganhar eleições, numa democracia de fachada , pode levar a situações funestas, como o nazismo. Numa democracia como a nossa, acaba levando apenas à desmoralização daqueles que o praticam. Basta esperar.

ALI KAMEL é jornalista.

O PT de novo em apuros

Editorial
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

A história se repete - até na tentativa de desqualificar uma denúncia, sob a alegação de que se trata de uma jogada eleitoral. No caso, para prejudicar o Partido dos Trabalhadores (PT). É o que quer fazer crer o secretário de Assuntos Institucionais do partido, Romênio Pereira, acusado de envolvimento com uma quadrilha que desviava verbas públicas. O modus operandi era o de sempre: mediante pagamento de propinas, o grupo intermediava a liberação de verbas federais destinadas a pouco mais de uma centena de municípios, quase todos em Minas Gerais. A fraude teria abrangido inclusive recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o principal programa de obras do governo Lula.

A armação, desvendada a partir da Operação João-de-Barro, deflagrada pela Polícia Federal (PF), vinha de longe. “O esquema, inicialmente montado com a participação de um número limitado de pessoas e empresas, cresceu em complexidade e organização”, constata o Ministério Público Federal. “Além de prefeitos e ex-prefeitos, suspeita-se da participação também de lobistas e de servidores ocupantes de cargos estratégicos na administração pública federal.” Pois bem. Apurou-se que um desses lobistas, João Carlos Carvalho, preso pela PF e apontado como um dos personagens centrais, se não o mais importante, dos ilícitos em série, tinha ligações com Romênio Pereira.

O dirigente, que se licenciou da Executiva Nacional petista por 60 dias para “poder exercer com tranqüilidade meu pleno direito de defesa” diante de acusações que assegura serem improcedentes, não nega ter mantido “diversos contatos” com Carvalho. “Mas nenhum deles para intermediar liberação de emendas ou de quaisquer outras verbas públicas.” Eles teriam sido apresentados por um prefeito petista há cerca de cinco anos. O fato é que, por solicitação da Procuradoria-Geral da República, que o investiga, o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou a quebra do seu sigilo fiscal, bancário e telefônico. No fim da semana, a revista IstoÉ informou que o levantamento será enviado ao STF em setembro.

Estranhamente, Romênio disse que não sabia que Carvalho era lobista. No ano passado eles se encontraram sete vezes. Na função de secretário de Assuntos Institucionais do PT, era o responsável pelo relacionamento do partido com prefeitos municipais. O secretário-geral da sigla, José Eduardo Martins Cardozo, considera “positivo”, como não poderia deixar de ser, o afastamento temporário pedido por Romênio - e, previsivelmente também, acha prematuro especular sobre a eventualidade de sua saída definitiva. A Executiva tinha marcado para amanhã uma reunião que trataria apenas da campanha eleitoral, mas decerto os seus membros não poderão ignorar o assunto.

Mais uma vez, afinal, um companheiro da cúpula partidária é citado numa devassa sobre atos reiterados de corrupção. Estes envolveriam desvios da ordem de R$ 700 milhões. A hipótese de que Romênio não tenha se beneficiado pessoalmente de qualquer das maracutaias identificadas pela Polícia Federal e o Ministério Público não atenua a nova crise petista. Ao que se sabe, tampouco os dirigentes processados no Supremo como integrantes da “organização criminosa” do mensalão, como José Genoino e Delúbio Soares, desviaram para suas contas alguma parte dos recursos usados para a compra de votos favoráveis ao governo na Câmara dos Deputados. Mas o escândalo ficou indelevelmente gravado na história do PT.

Agora, o risco de uma associação entre a sigla PAC e o termo “desvio de verbas” provoca desconforto no Palácio do Planalto, onde a única associação desejada - e em permanente construção - é a do programa com a sua condutora (ou “mãe”, como disse Lula), a ministra Dilma Rousseff, por enquanto o nome preferido pelo presidente para a sucessão de 2010. As suspeitas sobre Romênio Pereira, ao contrário do que ele diz, não foram concebidas com a intenção de prejudicar o PT nas eleições municipais. Mas é óbvio que vieram em má hora.

Evidentemente, o lulismo tratará o problema com panos quentes. No pior dos cenários, conforme o que as investigações trouxerem a público, fará o que sabe para circunscrever o estrago aos “erros” de um único protagonista, a ser sacrificado.

Virado à paulista


Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Nessa altura não interessa mais de quem é a culpa: se do governador José Serra, ao planejar a eleição de prefeito sem um candidato com a marca do partido, mas ao molde do roteiro de sua campanha presidencial, ou se do antecessor, Geraldo Alckmin, ao atropelar o projeto e se impor ao PSDB como candidato do partido à Prefeitura de São Paulo.

Importa apenas o fato: de posse das duas máquinas, estadual e municipal, das melhores alianças partidárias (incluindo a captura do PMDB da área de influência do PT) e de uma adversária com alto grau de rejeição e baixa densidade político-eleitoral em sua coalizão, o PSDB constrói uma derrota.

Mas não uma derrota qualquer, daquelas normais, cujas conseqüências nefastas têm prazo de validade e volta por cima no cenário do amanhã.

Dessas, o presidente Luiz Inácio da Silva só em eleições presidenciais sofreu três. O governador José Serra outras tantas e a então prefeita Marta Suplicy uma especialmente impactante: em 2004 perdeu a reeleição para Serra que dois anos antes fora derrotado por Lula, que não conseguiu convencer o paulistano a dar o bis a Marta, que foi ao fundo, emergiu e hoje é líder absoluta nas pesquisas.

A derrota em construção não se limita ao resultado eleitoral. Este pode até virar, não se sabe. Ninguém está livre de um milagre, nem Geraldo Alckmin nem Gilberto Kassab. Ou de um imprevisto, nem Marta Suplicy.

O estrago bordado com esmero em São Paulo - com a participação de artesãos de fora - é de natureza política.

Isso ocorre quando o fracasso independe do resultado. A situação já se desenhava assim desde o começo, quando Marta patinava na largada, Kassab reunia uma vistosa aliança e Alckmin exibia patrimônio eleitoral suficiente para inibir qualquer movimento mais brusco do grupo do governador Serra para matar sua candidatura na marra.

Com a mudança de ventos e o registro da queda de Alckmin em duas pesquisas consecutivas, o quadro deu uma piorada considerável. Candidato oficial do PSDB, o ex-governador desceu do altar do bom-mocismo e partiu para o ataque direto à atual administração de São Paulo.

No programa eleitoral diz que sobra dinheiro e falta competência. Aponta carências de toda sorte: de vagas nas creches, nas escolas, de transporte púbico decente, de moradias, de hospitais, de médicos, de iluminação nas ruas, enfim, a cidade mostrada por Geraldo Alckmin é um horror em matéria de desmazelo e abandono.

Com isso, não ataca Kassab, um ex-deputado do DEM, vice deixado na cadeira por Serra para representá-lo na prefeitura toda montada à base de tucanos. Desde que assumiu a vaga, o substituto não deu um passo nem um pio em desacordo com a concepção de Serra, política e administrativamente falando.

Quando diz ao eleitor de 2008 que a Prefeitura de São Paulo é mal gerida, está informando ao eleitorado de 2010 no Brasil todo que o principal candidato de seu partido à Presidência da República é um mau gestor.

Um caminho que nem o PT nacional, adversário oficial na sucessão de Lula, havia ousado trilhar.

É difícil, embora seja possível, acreditar que a campanha de Geraldo Alckmin não tenha pensado em todas as conseqüências - entre elas a perda do papel da vítima - e atue nessa direção apenas por aflição eleitoral.

Seja qual for o fator, não altera o produto: um candidato a prefeito que se apresenta à disputa para afirmar a marca do partido e depois tenta se credenciar subtraindo credenciais do candidato a presidente do próprio partido.

Algo nunca visto nem no PT das memoráveis guerras de extermínio interno.

À beira

Quando a senadora Marina Silva deixou o Ministério do Meio Ambiente, optou pelos símbolos para transmitir sua insatisfação. Não se deu a maiores comentários nem sobre a versão da “assessoria” do Palácio do Planalto de que o presidente Lula teria interpretado o pedido de demissão como um ato deliberado para deixar o governo mal diante dos ambientalistas nacionais e internacionais.

Devagar, a senadora passa dos gestos às palavras. Ainda as escolhe como quem pisa sobre ovos, mas caminha obviamente na direção de uma abordagem menos sutil da questão.

Ontem, em seu artigo semanal na Folha de S. Paulo, Marina Silva aponta “sinais preocupantes” de que o governo patrocina retrocessos na política ambiental - contrariando compromisso assumido pelo presidente em maio - e acrescenta: “Para a sociedade será difícil aceitar mudanças na contramão do que foi dito há três meses”.

Súmula

Em matéria de reforma política, a professora Sandra Cavalcanti, signatária da Constituinte de 1988, disse o necessário numa frase de seu artigo de ontem no Estado: “O voto poderia ser facultativo e as promessas obrigatórias”.


O resto é enfeite.

O tucano órfão


Clóvis Rossi
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


SÃO PAULO - Atrevo-me a dar uma boa e uma má notícia para Geraldo Alckmin.A boa: ele não é o único candidato a sofrer uma vertiginosa mudança em apenas 30 dias, pouco mais ou pouco menos. Barack Obama também passou de uma vantagem de sete pontos sobre John McCain para uma desvantagem de cinco pontos, pelo menos de acordo com o instituto Zogby.

Como Obama é tudo o que se quiser, menos "picolé de chuchu", o apelido que José Simão tascou em Alckmin, o candidato tucano não tem (ainda) razões para cortar os pulsos. Se um candidato tão antichuchu pode tropeçar desse jeito, também pode acontecer com Alckmin ver uma desvantagem de 4 pontos (dentro da margem de erro) transformar-se em 17.

A má notícia: lida com lupa a pesquisa Datafolha publicada no domingo, verifica-se que não há propriamente uma gangorra Marta/ Alckmin/ Kassab entre uma pesquisa e outra, mas uma hemorragia na candidatura Alckmin.

Em algo menos de dois meses, Marta oscilou de 38% para 36% e para 41%. Do ponto de partida (38%, no início de julho), evoluiu na margem de erro.

Kassab idem. De 13% para 11%, e daí para 14%, é um ritmo normal.Alckmin não. Caiu oito pontos percentuais em um mês, fora da margem de erro e sem que tivesse havido qualquer evento que o fizesse sangrar. Não foi apanhado roubando as moedas amealhadas por um mendigo cego na porta da igreja, não esfaqueou a mulher ou a filha, nada que tivesse merecido atenção especial da mídia.

A lógica manda atribuir a hemorragia ao fato de que ficou exposta a orfandade de Alckmin. Nem o seu partido o apadrinha. Ao contrário, apunhala-o sem piedade e sem o menor pudor.Não está, pois, nas mãos de Alckmin o torniquete que poderia conter o sangramento.

Contração global de crédito


Yoshiaki Nakano
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Toda crise financeira envolve uma fase de contração de crédito. Ela é precedida por uma fase inicial de expansão seguida de euforia; quando acontecem os excessos, temos a crise. O Fed e outros bancos centrais responderam rapidamente reduzindo a taxa de juros ou provendo liquidez abundante, de forma que não vamos assistir a uma sucessão de quebras de bancos como na crise de 1930. Entretanto, dada a magnitude dos prejuízos dos grandes bancos, é provável que, nesta crise, a contração de crédito seja profunda e prolongada.

A era de crédito abundante e de euforia, com a captação farta de recursos baratos via IPOs e emissões de dívida, chegou ao final. A contração de crédito e elevação da taxa de juros chegou também ao Brasil. Não por acaso, as empresas estrangeiras remeteram mais de US$ 18 bilhões para suas matrizes no primeiro semestre deste ano e a saída de recursos da Bolsa de Valores atingiu US$ 15 bilhões no mesmo período. Está havendo uma realocação de ativos de renda variável para renda fixa e depósitos bancários, além de mudança de atitude dos investidores estrangeiros. Busca-se liquidez - e a época de forte valorização de ativos e real superapreciado parece ter chegado ao fim.

Para se ter uma idéia da magnitude da contração de liquidez, basta lembrar que o FMI estima que os bancos e instituições de crédito terão um perda de capital próprio de cerca de US$ 1 trilhão. Isto implica uma contração da oferta de crédito da ordem de US$ 8 trilhões a US$ 10 trilhões. O que é possível também é que o Congresso americano venha a impor uma regulação mais restritiva e os órgãos oficiais, que supostamente deveriam ter supervisionado as instituições criadoras de crédito, venham a ter controle mais rigoroso. Desta forma, o início do novo ciclo de crescimento econômico, pós-crise, que demanda crédito abundante e novas formas de expansão, poderá ser mais demorado do que se imagina. Podemos esperar mudanças na forma de operação dos bancos e dos bancos de investimento, e tudo indica também que os fundos soberanos dos países emergentes e exportadores de petróleo, que detêm hoje recursos de mais de US$ 2,5 trilhões, terão uma papel importante no sistema financeiro internacional.

O superávit em transações correntes se reduz na China e, em contrapartida, o déficit em transações correntes nos Estados Unidos se contrai

O longo ciclo de forte expansão de liquidez global que agora chega ao final tinha três dimensões: forte expansão da liquidez do sistema financeiro (medido pela capacidade do sistema converter em liquidez imediata a riqueza nacional, isto é, a produção futura); expansão da liquidez monetária; e excesso de poupança dos países em rápido crescimento. Agora o ciclo se inverte e nas três dimensões a liquidez se contrai.

A primeira dimensão da liquidez do sistema financeiro teve profundo aumento em função dos socorros pelos governos às instituições em dificuldade/crise, introduzindo incentivo assimétrico à expansão de crédito (risco moral). Esta liquidez aumentou também em função da retração das autoridades reguladoras, das inovações financeiras e pela integração global dos mercados. Como vimos acima, este sistema entrou em profunda contração e deverá sofrer grande reestruturação.

A segunda dimensão da liquidez, a monetária, pode ser medida pela expansão dos diversos agregados monetários e de crédito, que aumentaram muito mais rapidamente do que o PIB nominal nos últimos 15 anos. Isto ocorreu em função da adoção da política de meta de inflação, que controla a taxa de juros, e não os agregados - estes passaram a ser determinados endogenamente. Com a crise financeira e o novo contexto inflacionário, os BCs estão ampliando o seu campo de preocupações e de ação e certamente controlarão com mais rigor o grau de alavancagem das instituições criadoras de crédito. Além disso, é importante lembrar que a fase de pressão deflacionária global parece ter chegado ao fim. Hoje existem pressões inflacionárias oriundas do excesso de demanda global de commodities. Há indicações de que o ajuste competitivo de preços dos manufaturados no mercado internacional começa a ser feito mais pela elevação de salários na China do que pela redução nos seus preços. Se isto for verdade, as atuais regras de política monetária de controle dos juros e expansão livre e endógena dos agregados monetários e de crédito terão que ser adaptadas para este novo contexto. Isto significa que a longa fase de expansão dos agregados monetários e de crédito acima do PIB nominal poderão chegar ao seu fim.

Finalmente, a terceira dimensão é o grande excesso de poupança, ou seja, de grandes superávits em transações correntes de alguns países emergentes. Este excesso de poupança em países de rápido crescimento ocorria porque as exportações cresciam muito mais do que o consumo doméstico. Nestes países, dado o subdesenvolvimento e o reduzido tamanho e profundidade do sistema financeiro, havia uma escassez de ativos financeiros com credibilidade e aceitação pelo mercado para os quais a poupança pudesse ser canalizada. Com a integração dos mercados financeiros, o excesso de poupança destes países foram canalizados para os mercados financeiros desenvolvidos e o excesso de liquidez local se transformou num excesso de liquidez global, com fortes pressões sobre os preço de ativos em escala global. Do lado real da economia, este fenômeno se traduziu na forte expansão econômica baseada no aumento do consumo e de investimento em novas residências pela economia americana e de alguns outros países, como a Espanha e Inglaterra. Este excesso de consumo destes países era a contrapartida do superávit de países com excesso de poupança como China.

Com o fim do "boom" imobiliário, a situação se reverteu. Nos Estados Unidos, o dólar se deprecia fortemente, as exportações começam a crescer - cerca de 23% nos últimos 12 meses -, enquanto a consumo tende a contrair. O contrário está ocorrendo na China. As suas exportações desaceleram 17% em dólar nos últimos 12 meses e 12% em yuan nos últimos três meses. Com isso, a expansão do consumo doméstico, agora, mantém o seu ritmo de crescimento. O excesso de poupança cai, isto é, o superávit em transações correntes se reduz na China e, em contrapartida, o déficit em transações correntes nos Estados Unidos se contrai.

Yoshiaki Nakano, ex-secretário da Fazenda do governo Mário Covas (SP), professor e diretor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas - FGV/EESP, escreve mensalmente às terças-feiras

Dilma e PSDB negociam agências


Raymundo Costa
DEU NO VALOR ECONÔMICO


O projeto que altera a Lei Geral das Agências Reguladoras, em tramitação na Câmara desde 2004, reuniu na última sexta-feira, no Palácio do Planalto, a ministra Dilma Rousseff (Casa Civil) e o líder do PSDB na Câmara, José Aníbal (SP). O tucano quer ajudar o governo a aprovar o projeto. Se der, ainda neste ano. Já a ministra mostrou disposição de negociar inclusive temas polêmicos como a autonomia.

Essa foi a primeira conversa institucional entre a ministra da Casa Civil e o líder do PSDB. Dilma e Aníbal são amigos desde os 17 anos. Estiveram no exílio e conversam com alguma regularidade. O deputado é o primeiro líder do PSDB, nos últimos anos, que não assenta praça na candidatura de José Serra a presidente, enquanto Dilma, por outro lado, é a eventual candidata do PT à sucessão do presidente Lula.

O líder do PSDB descarta a existência de qualquer viés eleitoral futuro em suas conversas com a chefe da Casa Civil. Restringe sua visita ao Palácio do Planalto à necessidade de "montar uma agenda de qualidade" para votações na Câmara. Neste caso, nada melhor do que a Lei Geral das Agências Reguladoras, um assunto que divide tucanos e petistas, mas que é igualmente considerado pelos dois lados como decisão importante para alavancar a infra-estrutura do país.

O deputado lembra-se das Parcerias Público Privadas (PPPs), que, segundo afirma, "continuam encruadas, porque não se consegue atrair investimento em área nenhuma, pois as agências, penalizadas como estão, deixam de ser um instrumento confiável para fiscalização, a regulamentação, enfim, tudo aquilo que é necessário em matéria de atração de investimento, criação de segurança jurídica, etc".

Já o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) está atrasado, sendo grande a defasagem do investimento previsto, o gasto autorizado e aquele que foi efetivamente autorizado.

Os tucanos têm um amplo diagnóstico sobre o projeto em tramitação na Câmara, um texto substitutivo ao do governo preparado pelo deputado Leonardo Picciani (PMDB-RJ). Uma de suas principais críticas à proposta é a retirada da autonomia, expressa no item que "transfere os atos de outorga atribuídos às Agências Reguladoras para os respectivos Ministérios a que estão vinculadas", conforme texto da assessoria técnica tucana. À exceção da Agência Nacional da Aviação Civil (Anac), que manteria, aprovado o projeto como está, o poder da outorga.

Governo se dispõe a discutir autonomia

A avaliação do PSDB é que o governo Lula deliberadamente tratou de fragilizar as agências reguladoras desde que assumiu em janeiro de 2003. Suas críticas às agências consideravam-nas responsáveis pelas tarifas aplicadas, pela inoperância na fiscalização e pela falta de investimentos nos diversos setores.

Os tucanos reconhecem a deficiência de fiscalização e de controle efetivo, mas culpam o PT: à época o partido ingressou com uma ação do Supremo Tribunal Federal (STF) que engessou a capacidade do governo Fernando Henrique Cardoso de realizar concursos para o provimento dos cargos criados.

"Se for possível avançar nessa área, vamos fazê-lo, por que não?", questiona o líder do PSDB, que tomou a iniciativa de pedir a audiência à ministra. "Se nós não tivermos agências que inspirem confiança, e tenham realmente a autonomia necessária para decidir fazendo uma triangulação entre os interesses do Estado, dos investidores e dos consumidores, projetos que podem sair pelas PPPs não sairão do papel, de jeito nenhum".

Foi com esse propósito que Aníbal assegura ter procurado Dilma Rousseff, ministra da Casa Civil cuja interlocução política é hoje suprapartidária e bem maior do que no início do ano. É difícil prever no que vai dar suas conversas com os tucanos da Câmara sobre as agências reguladoras. A discussão tem um componente ideológico que parece ser difícil de ser superado por tucanos e petistas.

Aníbal saiu animado com a conversa de Dilma. Diz que a ministra concorda que as agências reguladoras precisam ter maior autonomia.

"Ela revelou disposição para fazer uma interlocução, um entendimento para o aprimoramento do projeto, que, aliás, está incluído no PAC". Talvez já na próxima semana o deputado leve um texto com as propostas do PSDB à ministra.

Raymundo Costa é repórter especial de Política, em Brasília. Escreve às terças-feiras

Amiga Graziela


Ivan Alves Filho
DEU EM GRAMSCI E O BRASIL


Graziela Melo. Crônicas, contos e poemas. Brasília: Editorial Abaré, 2008. 203p.

Não conheço gênero literário mais livre do que a crônica. Cabe tudo dentro dela. O pequeno ensaio. O tratado filosófico em miniatura. A prosa poética. A reminiscência. A conversa de papel. Se a crônica fosse um fenômeno da natureza — um animalzinho por exemplo —, seria sem dúvida um passarinho. Se fosse um doce, quindim de Iaiá, certamente. Desses que derretem no céu da boca, como os passarinhos se divertem no céu de verdade.

Há certas crônicas que merecem quase ser devoradas. As crônicas — e também os contos e a poesia — de Graziela Melo estão entre essas. Que livro prazeroso a minha amiga escreveu! Por vezes áspero, como quando se refere à prisão do marido Gilvan no Rio de Janeiro ou à morte do filho querido em Santiago do Chile, nos tempos do Companheiro Presidente, o nosso querido Salvador Allende. Mas... ó quão verdadeiras essas crônicas são! Quanta emoção elas nos passam! Como isso se tornou possível, eu me perguntei a certa altura do livro. Como?

Qual foi o segredo? E creio ter encontrado a resposta: Graziela transformou sua vida — e não somente sua escrita — em uma obra de arte. Mulher sensível, a minha amiga Graziela ama viver até quase o desespero, retirando poesia das coisas mais simples do nosso cotidiano, sentindo as dores e as alegrias do mundo como as dores e as alegrias do mundo são: parte integrante da aventura da vida que ela sabe enfrentar como ninguém.

A poesia, a crônica, o conto? Ouso dizer — eu que não sou crítico literário — que esses escritos nada mais são do que uma conseqüência dessa arte maior, que é o amor de Graziela pelas coisas do mundo.

Ou para me socorrer de uma expressão sua, amiga Graziela, esses escritos, de tão sinceros, ficarão para sempre alojados “nas desordens da minha alma, nos arquivos da minha memória”.

Ivan Alves Filho é historiador e autor, entre outros, de A pintura como conto de fadas.

A morte política da metrópole


José de Souza Martins*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO /Aliás

Os municípios já tiveram seus grandes momentos na história política do Brasil. Por mais de 400 anos, o município foi o centro decisivo da vida política brasileira. Foi, durante esse longo tempo o embrião, ainda que mal acabado, de uma democracia no País porque constituía o baluarte de defesa da comuna contra o absolutismo monárquico, primeiro, a centralização do poder, depois, e, já combalido, os surtos autoritários da nossa mal traçada República. Nos séculos 16 e 17, as câmaras referiam-se, aliás, ao município, como república. É verdade que república oligárquica e conservadora, originalmente fundada na escravidão dos índios e dos negros e, portanto, nas desigualdades que interditavam os desiguais à participação política.

De vários modos, o instituto da inferioridade política dos simples vigorou até recentemente, abolido com a Constituição de 1988 e com a supressão da interdição do direito de voto aos analfabetos. A demorada extensão dos direitos de igualdade à totalidade dos brasileiros adultos e sua lenta incorporação à condição de cidadãos teve efeitos amplos, que se refletem tanto na vida política dos municípios, quanto dos estados e da União. Num certo sentido, essa ampliação democrática do direito de voto acabou com a República dos bacharéis e estendeu ao extremo as possibilidades da demagogia populista. Se houve progresso político com a ampliação da cidadania dos brasileiros que ganharam direito a voto, houve também um conseqüente retrocesso no estreitamento da mentalidade eleitoral. Pessoas que foram secularmente mantidas à margem dos direitos políticos e que ainda estão à margem de direitos econômicos e sociais, tiveram um crescimento político mutilado por essa deformação que, inevitavelmente, se reflete nas eleições por meio da transformação de carências não políticas em demandas políticas. Uma mediação social e eleitoral deformada pelo desencontro entre o social e o político preside a política brasileira.

Justamente nas eleições municipais os efeitos políticos dessa mutação são mais visíveis. A alma do município é a cidade e deveria ser, portanto, a urbanização e a revolução urbana. Isto é, a revolução no modo de vida dos moradores que lhes abrisse plenamente o acesso à civilidade possível, a cidade como conquista e direito, como demonstrou o sociólogo francês Henri Lefebvre, um dos maiores estudiosos das cidades. A cidade só o é como baluarte da civilização contra a barbárie, da riqueza de possibilidades sociais e culturais contra as limitações da pobreza do rústico e popular. A verdadeira cidade não é só um lugar em que se mora e se transita. É, sobretudo, um lugar em que o espírito da cultura vive em comunhão com o corpo do trabalho. A cidade é o espaço em que o homem se ergue acima do chão e da natureza, no urbanismo, na arquitetura, no estilo, no belo e no bom. Na vida cotidiana dos que na cidade vivem a cidade tem como cidadão o usuário, aquele que a usa compartilhando, o altruísta, contraposto à figura daquele que a consome, o predador, o especulador imobiliário, o egoísta. Na perspectiva desse modelo, nossas cidades, que cresceram em número, estão encolhendo, escapulindo da civilização em direção à barbárie. Em eleições como a deste ano, já fica evidente o bloqueio da utopia urbana pelas irracionalidades e absurdos que, infiltrando-se pelas eleições, chegam à política e dominam as cidades.

Se tomarmos como referência a história republicana da cidade de São Paulo, veremos, com desalento, que ela teve apenas dois prefeitos que representaram ousada e corajosamente a utopia urbana entre nós e em nome dela promoveram aqui a revolução urbana, Antônio da Silva Prado (de 1899 a 1911) e Francisco Prestes Maia (de 1938 a 1945; e de 1961 a 1965). É evidente que ao longo desse período, de pouco mais de um século, houve outros prefeitos que fizeram o que lhes coube na preservação e na implementação da revolução urbana de São Paulo.

Na administração Antônio Prado, a cidade caipira e de taipa, remanescente ainda dos tempos coloniais, foi praticamente demolida para dar lugar a uma cidade moderna e funcional, bonita e acolhedora. Se foi a cidade dos fazendeiros de café, que optaram nessa época por deixar a roça para morar e viver aqui, foi também a cidade do imigrante, aberta à pluralidade de línguas e costumes, a cidade aberta à diversidade e à criação cultural. Na administração Prestes Maia, São Paulo ganhou a infra-estrutura de metrópole, da cidade de massas, do alargamento dos grandes espaços públicos.

Para se compreender o que essas duas administrações representam em termos de civilidade, basta compará-las com administrações que deixaram como marcos os monumentos da catástrofe urbana: o Minhocão, a Praça Roosevelt, o tapete de concreto sobre o rio Tamanduateí, a Radial Leste, imensas cicatrizes de cirurgia plástica mal feita no rosto de uma cidade que já foi lindíssima e fascinante. Processo que culminou com a transformação do centro em periferia, na concepção minúscula e equivocada de que governar em nome do bem comum é anular as virtudes civilizatórias do centro, como lugar monumental das conquistas humanas, como síntese da utopia urbana, o centro que se expande ao expandir o sonho de um mundo possível, a cidade como lugar de viver e não como lugar de sofrer, como anúncio do novo e não como resíduo das misérias políticas de um país inteiro. Apenas nos últimos anos, na restituição à cidade da cara que já teve, na revitalização do que é antigo e já foi belo é que São Paulo começou a reconhecer de novo os sinais da revolução urbana possível. Utopia que não está visível na plataforma da maioria dos candidatos atuais. O que se complica quando examinamos as biografias e propósitos dos candidatos a vereador, no portal estadão.com.br: com óbvias exceções, um melancólico cenário de pobreza de perspectiva, de alienação em relação à cidade que querem governar, um triunfo da periferia contra a própria idéia de urbano e metrópole.

*José de Souza Martins, professor de Sociologia da Faculdade de Filosofia da USP, é autor de O Sujeito Oculto (Ordem e transgressão na reforma agrária), Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2003; A Sociabilidade do Homem Simples (2ª edição revista e ampliada, Contexto, 2008) e A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34, 2008).

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