domingo, 23 de novembro de 2008

O drama civilizatório

Rubens Figueiredo
DEU NA FOLHA D S. PAULO / MAÍS!

Em tradução direta do russo, "Os Irmãos Karamázov" é cindido pela mistura de gêneros e por projetos antagônicos de modernidade

Os Irmãos Karamázov" -agora em ótima tradução de Paulo Bezerra- foi publicado em 1880, um ano antes da morte de Dostoiévski. Aos olhos do Ocidente, a Rússia ainda era uma "terra de ursos", e a expressão "literatura russa" ainda soava como algo inconcebível ou, no máximo, exótico.

Como que cientes disso, os autores russos escreviam tendo em mente apenas o seu país. Em 1900, Tchékhov não mostrou entusiasmo ao ver seus livros traduzidos na França, explicando que seus contos foram escritos para os russos.

Os escritores tinham em mira o rico debate em curso acerca do destino do país e essa pode ser a chave da vitalidade da literatura criada na época e também mais tarde.

Pois tal debate tinha canais de expressão diversos dos conhecidos nos países ocidentais, e a literatura era um dos canais mais importantes.

Se os personagens de "Os Irmãos Karamázov" nos surgem com um vigor exaltado e febril, isso se deve menos aos abusos melodramáticos do autor do que ao caráter vital, para Dostoiévski e seus leitores, da polêmica subjacente ao romance. Mas, como não raro acontece, as questões russas eram menos russas do que os próprios russos supunham.

De um lado, o confronto entre os projetos da modernidade liberal e de modernidades alternativas (como o historiador Daniel Aarão Reis define a situação) não era uma condição exclusiva da Rússia.

De outro lado, a abrangência do esforço dos intelectuais imprimiu às suas polêmicas uma força provocadora capaz de renovar o sentido das obras literárias russas em outros países, mesmo depois que tais polêmicas já estavam esquecidas.

No caso de "Os Irmãos Karamázov", Dostoiévski deu expressão a um nacionalismo intensificado até um páthos místico. Em síntese: o camponês russo era o portador da fé pura; a autocracia russa era a concretização dos sentimentos desse camponês; a religião ortodoxa era a guardiã do cristianismo genuíno; a Rússia era a potencial redentora espiritual da Europa, no papel de Terceira Roma (após as quedas de Roma e de Bizâncio).

Claro, isso supõe o repúdio do movimento revolucionário socialista.

A ênfase de Dostoiévski nesse ponto, patente mais no narrador do que nos personagens de "Os Irmãos Karamázov", deu margem a que o crítico George Steiner classificasse o autor como "democrata".

Mas esse filtro ideológico, que o crítico Joseph Frank também impõe em suas análises, é seletivo demais para dar conta do espectro das recusas de Dostoiévski.

Trata-se, a rigor, da recusa da modernidade ocidental em si. O socialismo apenas faz parte de um pacote, que inclui o capitalismo, a ciência, o catolicismo, a cidade, a razão separada da fé, a igualdade da mulher, o governo laico.

Ciência e religião

Vejamos como o monge Zozima, mentor de Aliocha Karamázov, pivô do romance, retrata o mundo moderno. "Eles têm a ciência e na ciência só aquilo que está sujeito aos sentidos. Já o mundo do espírito foi rejeitado inteiramente, expulso com certo triunfo, até com ódio. O mundo proclamou a liberdade e eis o que vemos dessa liberdade: só escravidão e suicídio! [...] Vivem apenas para invejar uns aos outros, para a luxúria, a soberba. Dar jantares, viajar, possuir carruagens, posição social e criados eles já consideram uma necessidade, e para saciá-la sacrificam até a vida [...] e se matam, se não conseguem saciá-la."

Não é à toa que este seja o romance de Dostoiévski que mais se afasta dos modelos literários ocidentais. O enredo se limita à disputa entre o pai e um dos irmãos Karamázov pela afeição da mesma mulher, em meio a presságios de um parricídio.

Unem-se a isso relatos extraídos do noticiário, de autos judiciais, além de narrativas e prédicas cunhadas nos moldes dos textos bíblicos e das vidas de santos.

Essas formas pré-modernas corporificam, na estrutura do romance, a posição de resistência do autor diante da pressão modernizadora.

O teórico russo Mikhail Bakhtin apontou Dostoiévski como o expoente do romance polifônico, no qual diversas vozes se relacionam em igualdade, e não sujeitas a uma voz central.

No caso de "Os Irmãos Karamázov", a tese se mostra inviável. De fato, os personagens falam muito e com grande alarde.

Na maior parte, a estrutura do livro é antes dramática do que narrativa.

Porém todas as vozes estão subordinadas à voz do monge Zozima, às reações do seu discípulo Aliocha Karamázov e aos ecos dessa voz em diversos personagens e situações. Esse é o centro de autoridade do romance, que controla o alcance das demais vozes, em especial a do intelectual ateu Ivan Karamázov.

Face pouco visível

Contudo não é necessária a teoria de Bakhtin para rejeitarmos a redução do romance a um panfleto reacionário.

A despeito de Dostoiévski, o páthos do livro, mais do que as suas intenções, questiona a nossa aceitação de um padrão de civilização como algo natural e inevitável.

O ângulo histórico e geográfico de onde Dostoiévski fez questão de focalizar a expansão capitalista -a portadora de tal padrão, na época- põe em relevo uma face pouco visível desse processo.

RUBENS FIGUEIREDO é tradutor e escritor, autor de "Contos de Pedro" (Cia. das Letras).

OS IRMÃOS KARAMÁZOV
Autor: Fiódor Dostoiévski
Tradução: Paulo Bezerra
Editora: 34
(tel. 0/xx/11/3816-6777)
Quanto: R$ 98 (1.040 págs.)

Missão presidencial


Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Data marcada (terça-feira última), convites despachados, horas antes do jantar em que o presidente Luiz Inácio da Silva tentaria convencer os senadores do PMDB a desistir da presidência do Senado e deixar a vaga para o PT, o encontro foi cancelado.

Por orientação da própria cúpula pemedebista, que mostrou a Lula o tamanho da enrascada: terreno conflagrado, público astuto e jogo para lá de ambíguo. Por isso, não convinha contrariar a regra segundo a qual presidente da República só entra em conflito depois de tudo resolvido.

O caso, porém, é tão delicado que Lula precisará, mais cedo ou mais tarde, ele mesmo resolver a questão. Não daquele jeito de sempre, vendendo autoconfiança em público. De uma forma mais jeitosa, discreta, ritualística.

O roteiro da solução do atrito entre PT e PMDB na disputa pelas presidências do Congresso está sendo escrito na Esplanada dos Ministérios e já tem pronta a primeira cena: uma conversa de presidente para ex-presidente entre Lula e o senador José Sarney.

Segundo seus autores, Sarney compreenderia a dimensão do problema, pois conheceu ao longo da vida e durante o período na Presidência da República os caminhos, as pedras e as cobras.

Sabe que Congresso tumultuado e base de apoio parlamentar desorganizada é complicação na certa. No último período do último mandato pode ser fatal, custar a entrega do poder ao adversário.

Aconteceu com Fernando Henrique Cardoso em 2001, quando PMDB e PFL se desentenderam por motivos outros, a briga repercutiu na eleição para as presidências da Câmara e do Senado, o PSDB tirou do pefelê a vez na presidência da Câmara (foi eleito Aécio Neves) e, no ano seguinte, a aliança entrou no processo de sucessão toda desarrumada.

Lula não deve só a isso sua eleição, mas deve também. Portanto, foi aconselhado por personagens que acompanharam bem de perto aquela confusão a tomar agora suas precauções.

Não deixar o embate correr frouxo, como fez Fernando Henrique na época. Acompanhar de perto o suficiente para não perder o controle, mas de longe o bastante para não parecer interferência excessiva nem sofrer os efeitos de possíveis balas perdidas.

Entrar naquele jantar marcado para terça-feira passado munido apenas de uma dose cavalar de auto-estima seria um risco desnecessário. Daí o cancelamento.

A retomada do domínio seria a conversa entre Lula e Sarney. Nela, o presidente procuraria levar o senador Sarney a pôr na mesa algumas cartas. Suficientes para que possa compreender ao menos o nome do jogo.

Até agora o Palácio do Planalto só conseguiu vislumbrar por trás da insistência do PMDB em ficar com as presidências das duas Casas as digitais do senador Renan Calheiros.

Oficialmente, corre a versão de que Calheiros faz carga contra a candidatura do senador Tião Viana por mágoas restantes do processo que resultou na renúncia ao cargo de presidente do Senado. Renan Calheiros estaria inconformado com a posição excessivamente imparcial de Viana na época.

Não há, contudo, um só dirigente do PMDB ou uma só pessoa que conheça razoavelmente o senador alagoano que acredite nessa versão. Por absoluta impossibilidade de Renan Calheiros agir movido a sentimentos. Bons ou ruins. Sendo seu motor o interesse, a mágoa é motivação insuficiente.

Mais provável, se conclui, é que esteja atrás do prestígio perdido, da capacidade de movimentar pressões ao ritmo de sua vontade. Mas, como já não tem força própria para tanto, escora-se em José Sarney.

E o objetivo deste na história é o que interessa ao Palácio do Planalto esclarecer a fim de apartá-los e, assim, deixar Renan Calheiros se movimentar com seu próprio combustível.

Como Sarney não abrirá a guarda com ninguém do partido, a cúpula do PMDB não vê outra saída, a não ser Lula tentar diretamente, numa conversa franca, saber aonde quer chegar o ex-presidente: se pretende mesmo ser ungido à presidência do Senado como se diz, ou se isso já é página virada em sua vida, como ele diz.

Mas como abordar o assunto sem dar margem a tergiversações?

A sugestão é que Lula faça um apelo candente a Sarney para que pacifique o PMDB, leve o partido a aceitar a partilha do comando do Congresso ficando com a Câmara, deixando o Senado para o PT.

No lance definitivo, pediria a Sarney que assumisse a coordenação da campanha de Tião Viana. A suposição é a de que não poderá se recusar sem dizer o motivo ou assumir que defende o rompimento do equilíbrio de poder entre os dois parceiros.

Na hipótese de assumir a própria candidatura, assunto encerrado. Se hesitar, fica aberto o caminho para que diga, então, qual é mesmo o problema, cuja solução só Lula dispõe de instrumentos para encontrar.

Se aceitar, estará resolvido o primeiro dos três pré-requisitos - os outros dois são o andamento da crise econômica e a escolha da candidatura - para o PMDB decidir de que lado fica na sucessão presidencial.

FHC quer PSDB duro contra Lula


Clarissa Oliveira
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Ex-presidente diz, em encontro tucano, que partido deve escolher em seis meses o seu candidato à sucessão

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso deu ontem a largada nos preparativos do PSDB para a eleição de 2010 e deixou claro o discurso que espera do candidato que for escolhido para tentar a sucessão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Avisando que quer a definição de um nome dentro de aproximadamente seis meses, ele disse que é preciso apontar rapidamente “a voz” capaz de expor os ideais que levarão a sigla de volta ao comando do País.

“Não precisamos ser agressivos pessoalmente com ninguém. Mas nem por isso vamos dizer: ‘tudo o que seu mestre fala está certo’. Não está. Temos que dizer: ‘o rei está nu, aqui, ali, acolá. Põe a roupa, presidente’”, afirmou FHC, arrancando aplausos de uma platéia de prefeitos e vereadores tucanos eleitos em outubro, organizado pelo PSDB paulista.

“Não diga bobagem, presidente. Seja mais coerente com sua história. Não seja tão rápido no julgamento do que os outros fizeram. Perceba que uma nação se faz numa seqüência de gerações. Não seja tão pretensioso. Seja um pouquinho mais humilde”, prosseguiu. Após a abertura do evento, em entrevista, FHC minimizou as críticas. “Eu disse que todos temos que ser humildes. Ele, como ser humano, é bom que seja”.

Além de cobrar um discurso incisivo contra o governo e o presidente, o tucano disse querer que o partido escolha seu candidato, no máximo, até o início do segundo semestre do ano que vem. Se em seis meses a sigla não chegar a um entendimento, ele acredita que os cotados - até agora os governadores José Serra, de São Paulo, e Aécio Neves, de Minas Gerais - devem disputar em convenção. “Não temos medo. Se tiver divisão, faça convenção. Escolha. Mas temos de ter o candidato.”

FHC, que contou ter jantado na noite anterior com Serra, não economizou nos elogios ao governador paulista. Mas não falou sobre quem prefere para o posto: “Os dois são bons. Mas eu sou presidente de honra do partido. Não posso, antes da hora, antes de conversar com os dois, antecipar”.

O próprio Serra também participou do evento, realizado para subsidiar prefeitos e vereadores com uma linha de ação para o novo mandato. O governador falou na cerimônia de encerramento, quando FHC já havia deixado o local. Líderes tucanos também se dividiram entre a manhã e o fim da tarde, entre eles o vice-governador Alberto Goldman, o secretário da Casa Civil no Estado, Aloysio Nunes Ferreira, o presidente municipal da sigla, deputado Antonio Carlos Mendes Thame (SP), e o presidente nacional, senador Sérgio Guerra (PE). Este último evitou endossar a tese de que a escolha do candidato poderá ser decidida em disputa preliminar. “Não creio que essa questão vá ser levada à convenção ou prévias do partido. Se cultivarmos a união, é possível que isso esteja resolvido até o ano que vem.”

Em meio à sucessão de críticas ao presidente Lula e ao seu governo, FHC disse que a atual administração traiu o eleitorado brasileiro. “O governo atual disse uma coisa para o País e fez outra”, afirmou. “Não podemos aceitar essa história de que todos os gatos são pardos. Nós não somos gatos pardos. Somos outra coisa. Somos tucanos.”

Ele também não poupou o PT. Disse que as últimas eleições serviram de prova de que a sigla de Lula, derrotada em grandes centros, está sendo empurrada para os grotões. Agora, completou, a legenda ainda se mantém como reflexo da Presidência da República. Mas, na prática, deixou de ter uma presença ativa junto à sociedade.

Tucano anuncia Serra como 'novo presidente'

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Enquanto o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso cobrava ontem rapidez na escolha do candidato tucano para 2010, representantes do PSDB paulista já se antecipavam em anunciar o governador José Serra não apenas como candidato, mas até como eleito para o posto de presidente da República. Fazendo as vezes de mestre de cerimônias, o secretário-geral do PSDB paulista, César Gontijo, recebeu Serra no auditório do Jockey Club ontem com o grito: “Está aqui o nosso futuro presidente da República”.

A frase gerou aplausos entusiasmados da platéia de prefeitos e vereadores que participavam do encontro. Horas antes, quando Serra sequer havia chegado ao local, Gontijo já fazia declarações descartando o governador de Minas, Aécio Neves, para a vaga. “O Aécio é jovem. Tem perspectiva de uma vida pública muito grande”, afirmou. “Mas, na política, existe momento. E este momento é o de José Serra ser presidente.”

Dirigentes nacionais da sigla, como o presidente Sérgio Guerra (PE) e o próprio FHC foram cautelosos. Referiram-se a Serra como uma das possibilidades para a vaga. O governador, por outro lado, não falou sobre 2010 em todo o seu discurso, no qual se estendeu por quase uma hora em conselhos de gestão. Questionado sobre as manifestações de apoio, ele disse que é cedo para falar no assunto. Sobre a possibilidade de ir à convenção, ele se limitou a dizer: “Tudo depende de como as coisas se encaminharem”.

As forças regionais


Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


NOVA YORK. Ao analisar os reflexos dos resultados da eleição municipal deste ano na sucessão presidencial de 2010, os cientistas políticos Octavio Amorim Neto, da Fundação Getulio Vargas, e Cesar Zucco, do Iuperj, fizeram um balanço de seus efeitos sobre a política interna de PT, PSDB e PMDB, partidos de onde provavelmente sairão os principais candidatos, e identificaram os estados-chave para a disputa de 2010. Eles lembram que a viabilidade da oposição em 2010 depende da sua capacidade de diminuir a vantagem governista em algumas regiões, e compensá-la em outras. A vitória da oposição nos estados do Sul e do Sudeste e em dois dos estados do Centro-Oeste (MS e MT) na eleição presidencial de 2006 ocorreu por uma diferença de 4,5 milhões de votos, pequena se comparada com os 10,5 milhões de votos de diferença no restante do país.

A votação de Lula em 2006, lembram os autores, atingiu "níveis sem precedentes no Norte e no Nordeste", parecendo difícil a eles que, no Centro-Sul, um eventual candidato da oposição consiga vantagem muito maior do que obteve em 2006, ou mesmo que supere o desempenho obtido no Rio Grande Sul.

O Estado do Rio, que deu mais de dois milhões de votos de vantagem para Lula, poderia propiciar ganhos para a oposição, mas a vitória de Eduardo Paes, e o conseqüente fortalecimento do popular governador Sérgio Cabral, sugere aos autores que quaisquer avanços do PSDB, principal articulador da campanha de Fernando Gabeira, serão muito limitados.

Sobraria Minas, que, apesar da popularidade do já então governador Aécio Neves, deu um milhão de votos de vantagem para Lula em 2006. Segundo o estudo, reside em Minas o maior potencial de crescimento da oposição na região. Por isso, para os autores, continua em aberto a escolha do candidato do PSDB, uma vez que, sem o apoio entusiástico de Aécio, dificilmente a candidatura de Serra poderá decolar no segundo maior colégio eleitoral da federação e no estado considerado o centro geopolítico do país.

Analisando mais detalhadamente a situação do PSDB, eles destacam que, embora sabidamente dominado por sua ala paulista, os grupos mineiro e cearense sempre foram importantes no partido.

Para eles, no entanto, a "vitória esmagadora" de Serra na cidade de São Paulo, bem como o considerável desempenho do partido no estado, colocaram Serra em posição de vantagem. E a vitória estrondosa de Beto Richa em Curitiba e o relativo declínio da seção cearense deslocaram de vez o eixo do partido para o Sul e Sudeste do país.

Os autores admitem que a atual configuração das forças internas do PSDB é, a princípio, amplamente favorável a José Serra, mas se mostram ainda em dúvida quanto à sua eventual candidatura ser viável em termos nacionais.

Outro fator que poderá contribuir para o fortalecimento de Aécio, segundo os autores, é a busca de apoios para além do DEM. Embora a oposição precise se fortalecer no Nordeste, o PSDB, por conta própria, não tem muitas perspectivas nesta região, necessitando, portanto, de um aliado, analisam eles.

Esse papel foi desempenhado em eleições passadas pelo ex-PFL, mas os autores duvidam que o partido possa continuar ocupando tal posição, pois na análise deles, o DEM deverá ser um parceiro ainda mais minoritário na aliança de centro-direita, por conta da perda de força na Bahia e em Pernambuco.

Assim, se o PSDB ficar restrito a uma aliança somente com o DEM, dizem os autores, terá muito poucas chances de reduzir a vantagem governista no Nordeste, uma vez que, combinados, os dois partidos têm uma presença importante (porém declinante) no Ceará e na Paraíba, presença moderada em Pernambuco, e uma força muito limitada nos demais estados da região.

O PMDB continuará sendo o partido-pivô, na avaliação do estudo. Não bastasse o crescimento da legenda em termos absolutos, ela se fortaleceu particularmente na Bahia e no Ceará, principais eleitorados do Nordeste, mantendo também presença considerável, e sempre maior que a do PSDB, nos demais estados da região, com exceção de Pernambuco.

Os autores ressaltam, porém, que, apesar de ter se beneficiado muitíssimo do alinhamento com o governo, a adesão de importantes segmentos do PMDB ao governo não será automática em 2010. Eles lembram que, em seis dos onze maiores estados do país, o PMDB e o PT estiveram em lados opostos nas eleições nas capitais em 2008.

Em três das mais importantes disputas, o PMDB e o PT foram protagonistas de acirradas disputas: Minas Gerais, Bahia e Rio Grande do Sul. Apesar destas disputas, importantes nomes do PMDB mineiro, gaúcho e baiano presentes no ministério - assim como as negociações com a sua ala paulista para a presidência da Câmara - serão peças-chave para consolidar o apoio de grande parte da agremiação.

Caso o governo consiga manter a fidelidade desses setores do PMDB, a competitividade de uma candidatura de oposição ficará comprometida, analisa o estudo.

No campo governista, Lula preferiu a manutenção de alianças a um fortalecimento irrestrito do PT. Os resultados não foram ruins para o partido, mas foram, na avaliação dos autores, muito melhores para o governo, uma vez que ele conseguiu evitar rachaduras explícitas na sua base de apoio, apesar de complicadas disputas regionais. Para os autores, a derrota do PT paulistano pode, paradoxalmente, ter fortalecido a posição de Lula com respeito à sua própria sucessão.

Eles avaliam que com as vitórias na periferia da capital e uma pequena expansão do partido no interior de São Paulo, Lula passa a ter um controle maior sobre a principal seção do PT, controle que será essencial seja para emplacar um candidato de outro estado, seja para oferecer a cabeça da chapa para um partido aliado - hipótese, segundo os autores, remota, porém não impossível.

Tarda, não chega, mas pode chegar

Suely Caldas
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Antes tarde do que nunca, diz o provérbio. Mas quando o tempo tarda e nada acontece, o nunca triunfa. Assim foi o governo Lula com as reformas estruturais: o tempo passou, o governo se acovardou e o nunca saiu vencedor. Se elas já faziam falta antes, fazem muito mais agora com a crise econômica que se aproxima. Mas na terça-feira o ministro da Justiça, Tarso Genro, fez um estranho mea-culpa: foi um erro incluir direitos trabalhistas na Constituição, arrependeu-se.

“A reforma trabalhista é muito importante. Não se trata de flexibilizar direitos. Há novas formas de trabalho e de produção. Sem mudanças a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) será cada vez menos aplicável e ao lado dela se criará um vácuo”, argumentou, para espanto de empresários que foram ouvi-lo em debate promovido para Confederação Nacional da Indústria. Com menor espanto, no mesmo dia, o presidente do Banco Central (BC), Henrique Meirelles, também defendeu a aprovação das reformas tributária e trabalhista como armas para enfrentar a crise econômica global.

A tributária está no Congresso e o governo batalha por sua aprovação. Mas dois ministros de Estado defenderem a reforma trabalhista no mesmo dia só pode conduzir a uma intrigante dúvida: expressam idéias pessoais, isolados do resto do governo, ou estariam disparando balão-de-ensaio combinado com o presidente Lula para introduzir o tema em debate e testar reações?

Herique Meirelles não surpreende. Afinal, ele não é petista e, como presidente do BC, é sua obrigação defender o que é melhor para o País, e não sair por aí fazendo proselitismo político.

Mas Tarso Genro é um disciplinado quadro do Partido dos Trabalhadores (PT), líder de uma corrente à esquerda que vê os direitos trabalhistas como intocáveis. Por que reintroduzir no cenário um tema já morto, sepultado por sindicalistas da CUT e pelo PT no natimorto Fórum Trabalhista? Estaria atuando a mando de Lula?

Antes mesmo de assumir o governo, em 2002 o ex-ministro Antonio Palocci convenceu Lula da necessidade das reformas. Como a previdenciária era a mais difícil, Lula tratou de conceber logo a proposta sem maiores discussões, mas confiou-a à pessoa errada: inábil e fraco, o ex-ministro da Previdência Ricardo Berzoini construiu um projeto tímido, capenga e até hoje não aplicado porque depende de regulamentação. Errou novamente ao criar um fórum com empresários e trabalhadores para discutir as reformas sindical e trabalhista. Resultado: perdeu tempo em desentendimentos intermináveis, o fórum foi desfeito e as duas reformas fracassaram.

Começou o segundo mandato e pôs em pauta um segundo projeto para a Previdência, desta vez focado nos trabalhadores regulados pelo INSS. Mas como Lula e companheiros demoram a aprender com os erros, reprisou o fracassado Fórum Trabalhista para debater e formular a proposta. Resultado: novo fiasco, o fórum foi desfeito sem acordo e Lula desistiu da idéia de reformar a Previdência e dar racionalidade aos seus gastos.

Depois de seis anos de mandato, o governo Lula não fez nenhuma das reformas estruturais. Desistiu, confiando no inconfiável: que a insustentável corrente da felicidade, que levou prosperidade ao mundo nos últimos anos, seria interminável. O crescimento econômico se daria mesmo sem reformas.

Agora que chegou a hora da verdade e, no mundo, bancos quebram, bolsas despencam, o desemprego se alastra e a recessão leva à falência monstros sagrados como a GM americana, Tarso Genro (ou seria Lula?) faz sua autocrítica, fala em arrependimento por não ter enxergado o que há anos está escancarado: as relações de trabalho mudaram, a automatização trouxe formas novas de produção, empresas ignoram a CLT e aplicam sua própria lei, metade dos trabalhadores atua sem nenhuma proteção legal e o governo não fiscaliza, porque descumprir a CLT virou regra, deixou de ser exceção.

Uma reforma trabalhista só não interessa a sindicalistas pelegos sustentados com dinheiro público do Ministério do Trabalho. Ela é necessária para atrair investimentos, reduzir o custo de produzir no Brasil, atualizar regras de relações de trabalho e incluir trabalhadores excluídos da lei.

Lula tem à frente dois anos de mandato, uma crise econômica que promete ser longa e cacife político de sua popularidade em alta. Três ingredientes que deveriam estimulá-lo a sair da inércia e não delegar a Tarso Genro, mas chamar a si a responsabilidade de liderar e conduzir a reforma trabalhista.

*Suely Caldas é jornalista e professora de Comunicação da PUC-RJ

A polêmica que aqui não haveria


Clóvis Rossi
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

SÃO PAULO - É impensável, no Brasil, uma polêmica como a que houve nos Estados Unidos a respeito da escola das filhas do presidente eleito Barack Obama, se deveria ser pública ou privada.

No Brasil não há a mais remota hipótese de que uma autoridade graduada escolha para os filhos a escola pública. Aliás, mesmo as autoridades não tão graduadas mandam os filhos para a escola particular -e ninguém discute se é certo ou errado.

Até acho que é certo. Conhecidas as deficiências da escola pública, o governador, o prefeito, o presidente, o senador etc. não têm mesmo o direito de criar problemas futuros para suas crianças só para emitir um sinal político-eleitoral que seria demagógico.

Equivaleria ao presidente Lula abandonar o Palácio do Planalto e passar a morar em alguma cidade-satélite de Brasília. Resolveria algum problema? Nenhuma autoridade precisa morar no Morro do Alemão, por exemplo, para saber que o Rio (e o Brasil todo) vive um grave problema de segurança. Não ser diretamente afetado por ele não é causa da falta de soluções.

O que incomoda é a aceitação passiva de que filho de autoridade, de rico, da classe média até um limite "xis" de renda, têm de estudar em escola particular. Equivale a dar o ensino público como causa perdida e, mais grave, equivale a aceitar como natural um apartheid na origem: a uma minoria concede-se a chance de dar certo na vida, via estudo; à maioria fica a obrigatoriedade de concorrer em condições desvantajosas, dada a precariedade comparativa do ensino público, conforme todas as avaliações.

Sei que a escola pública nos EUA tem sérios problemas. Mas o simples fato de ter havido a possibilidade de Obama escolher a escola pública para suas filhas indica que não há, por lá, o consenso de que se trata de caso perdido.

As veias abertas


Nas Entrelinhas :: Luiz Carlos Azedo
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE


Nos Estados Unidos, a integração racial começou para valer com a doutrina Sullivan, que obrigou as empresas norte-americanas a ter um diretor negro na África do Sul e implodiu o apartheid.

Acabo de ler, emocionado, um artigo do escritor moçambicano Mia Couto intitulado “Se Obama fosse africano”. O tema desta coluna é correlato, mas optei por um título inspirado em Eduardo Galeano, estudioso do colonialismo e da dependência na América Latina. Vamos, pois, ao sarapatel histórico-político-antropológico.

Africanos

O que disse Mia Couto? Fez uma reflexão sobre a repercussão da eleição de Barack Obama na África, intensamente comemorada, seja em manifestações espontâneas do povo africano, seja em pronunciamentos e atos oficiais. Passada a euforia, da qual Mia Couto fez parte (diz que chorou tanto quanto na posse de Nelson Mandela na Presidência da África do Sul), pôs-se o escritor a imaginar o que aconteceria com Obama na África.

Primeiro, teria que esperar muito, porque os governantes costumam prorrogar seus mandatos e se reeleger seguidamente, em eleições fraudulentas. Seriam 41 anos no Gabão, 39 na Líbia, 28 no Zimbabwe, 28 na Guiné Equatorial, 28 em Angola, 27 no Egito, 26 em Camarões. Robert Mugabe, no Zimbabwe, terá 90 ao terminar o atual mandato. Segundo, na oposição, não teria espaço para fazer campanha. Com sorte, não seria assassinado. Terceiro, poderia ter a nacionalidade contestada, pois é filho de norte-americana. É o que acontece com Keneth Kauda, líder na independência da Zâmbia, país que já governou (ops!) por 25 anos. Quarto, Obama só é negro no Ocidente; se fosse africano, seria mulato, representante de “outra raça”, a do colonizador. Seria vilipendiado por sua condição racial. Quinto, segundo ainda Mia Couto, as posições de Obama em relação às mulheres e ao homossexualismo jamais seriam aceitas pela “pureza africana”.

Brasileiros

O Brasil é um país continental por causa da esperteza da nossa antiga elite branca escravocrata. O direito à propriedade privada — um dogma liberal — foi introduzido por D. Pedro I na Constituição de 1824, outorgada por ele, depois de fechar a Constituição de 1823, para salvaguardar os proprietários de escravos. Na Independência, para proteger o tráfico negreiro, tentou anexar Angola ao Brasil Imperial, mas os ingleses não deixaram. A então colônia africana, após a expulsão dos holandeses do Nordeste, foi recuperada muito antes de Moçambique, pela esquadra armada por proprietários fluminenses sob comando de Salvador de Sá.

Havia — e ainda há em alguns lugares — escravidão doméstica na África, por causa das guerras, desequilíbrios demográficos e fome. O que os portugueses fizerem no Brasil foi resgatar a velha escravidão romana e transformá-la na forma mais abjeta e brutal de acumulação pré-capitalista do mercantilismo. O Estado brasileiro consolidou nossas fronteiras graças ao extrativismo e à pecuária, mas foi com a escravatura que se sustentou durante o Império.

Com a América espanhola esquartejada pelo manto libertador em repúblicas instáveis, dominadas por suas elites “crioulas”, nenhum país da América do Sul foi páreo para o Brasil, nem mesmo a aristocrática Argentina. O Paraguai bem que tentou, com Solano Lopes, ao ensaiar uma revolução industrial. Mas ameaçou interesses da Inglaterra e foi massacrada pela Tríplice Aliança (Argentina, Brasil e Uruguai). A consolidação de nossas fronteiras por Rio Branco pode ser considerada juridicamente perfeita, porém, deixou ressentimentos. Que o digam o Paraguai, a Bolívia e, agora, para nosso espanto, o Equador, com o qual não temos fronteiras.

Somos um país de mestiços, apesar de “embranquiçado” por D. Pedro II na segunda metade do século 19. A imigração européia sedimentou uma divisão geopolítica que às vezes opõe o Brasil meridional ao setentrional. É mais fácil a política oficial de cotas raciais — com a qual não concordo, apesar de ser pardo – agravar essa divisão do que acabar com a discriminação. Ainda mais porque não vai ao fundo da questão: a desigualdade social. Restringe-se às decadentes universidades públicas, dominadas pela classe média, enquanto a “elite branca” manda os filhos estudarem nas melhores universidades norte-americanas e européias. Nos Estados Unidos, a integração racial começou para valer com a doutrina Sullivan, que obrigou as empresas norte-americanas a ter um diretor negro na África do Sul e implodiu o apartheid. O resto foi conseqüência. Hoje, Obama é o presidente eleito e a política de cotas nas escolas norte-americanas está sendo revista pela Suprema Corte.

Que raça de povo é esta?


José de Souza Martins*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS

Em nossa mestiçagem, brancos resultam de diferentes brancuras, índios, de tribos diversas e negros, de várias etnias

Muitos de nós aprendemos na escola a inverdade de que somos um povo que reúne três raças: a branca, a negra e a indígena. Os antropólogos já se cansaram de nos dizer que cor não é raça. E a “raça” da maioria nem é mencionada nessa classificação cromática: a dos mestiços. Além do que, antes de tudo, brancos, aqui, são mestiços de branco e branco, se levarmos em conta as enormes diferenças de brancura que há entre imigrantes que vieram do norte da Europa, como suíços, alemães e escandinavos, e os imigrantes que vieram da Itália, de Portugal e da Espanha. Negros, aqui, são mestiços de negro e negro, das várias etnias e diferentes culturas da África, que aqui chegaram como escravos. Índios são, no mais das vezes, mestiços de índios e índios, de diferentes tribos e nações, não raro filhos de mulheres de tribos inimigas, capturadas para compensar a falta de mulheres para procriação e trabalho, com a peculiaridade de que os nascidos na mestiçagem ficavam em categorias sociais separadas, de “impuros” e não autênticos. Sem contar a captura de mulheres e crianças brancas com o mesmo propósito.

Reuni e analisei, em meu livro Fronteira, algumas dolorosas histórias dessas crianças, reencontradas depois de adultas e entregues a suas famílias de origem: não se reconheciam, já não falavam a mesma língua nem podiam se comunicar. Os valores eram outros. Estavam sociologicamente mortas umas para as outras. Um dos mais dolorosos casos foi o de Helena Valero, adolescente que estudara em missão católica, falava português, espanhol e nheengatu, filha de mãe brasileira e pai espanhol. Flechada e raptada em 1937 pelos índios ianomâmis, quando estava com sua família na roça, só conseguiu escapar em 1957, já adulta, com marido e filhos ianomâmis. Ao reencontrar a família branca foi repudiada porque tivera relação carnal com o gentio e com ele procriara. Seria encontrada por dois repórteres de O Estado de S. Paulo, em 1997, às margens do Rio Orinoco, vivendo com nora indígena. Cega e já no fim da vida, tornara-se um ser humano sem sociedade, sem raça e sem identidade.

A mestiçagem oscilou e vacilou ao longo da história brasileira. No século 18, os livros brasileiros de genealogia mostram que o Brasil era um país de mamelucos empenhados na busca das raízes de sua brancura. Coisa curiosa aconteceu em São Paulo nessa mesma época. Até então, no geral, escravos eram os indígenas capturados no sertão. Em meados daquele século foi abolida a escravidão indígena e aumentou o fluxo de escravos africanos, em decorrência da difusão da economia do açúcar na região de Campinas. Deu-se, então, um deliberado enegrecimento da população. O cruzamento racial entre antigos escravos indígenas e as novas escravas africanas foi meio para nas crias fazer o índio retornar ao cativeiro, já que a escravidão se dava pela linha materna. E o mais espantoso foi o enegrecimento do Saci-pererê.

Ente mítico indígena e tupi, durante o século 18 torna-se negro, com traços africanos, nas feições em que chegou aos causos caipiras e às histórias infantis e aí permanece. No entanto, comunidades negras tornaram-se culturalmente caipiras, isto é, assimilaram a cultura dos mestiços de branco e índia, provavelmente como forma de encontrar uma referência cultural de comunicação em face da sua própria diversidade étnica e lingüística. Diversamente do que ocorreu nas regiões canavieiras do Nordeste, de densa concentração de africanos, em que línguas e culturas originárias foram preservadas como componentes culturais de uma religiosidade ancestral protegida na dissimulação e na duplicidade do sincretismo religioso.

Negra não era a cor de uma raça, mas a cor do cativeiro: índios e africanos eram definidos como negros. A negritude, até forçada, tornou-se expressão cultural e política de uma violência.

Quando em meados do século 19, com a cessação do tráfico negreiro ficou evidente que o fim da escravidão negra era questão de tempo, o Brasil optou por uma política de imigração seletiva da Europa que foi interpretada, nem sempre de maneira correta, como política de branqueamento da população brasileira. Branca não era a cor de uma raça, mas a cor da liberdade, sobretudo a cor do trabalho livre. Na época da implantação da República, a elite curiosamente partiu em busca de uma identidade mestiça e indígena, na pintura, na música. Em São Paulo, um Almeida Prado tornou-se Jorge Tibiriçá Piratininga e foi governador do Estado.

Mas também um escravo negro, Nicolau, descendente de uma escrava africana chegada a São Paulo em 1700, nascido na Fazenda de São Caetano, amigo de Luís Gama, ao ser libertado, em 1871, adotou o nome de Nicolau Tolentino Piratininga, bem branco e bem indígena. As décadas finais do século 19 foram claramente décadas de construção de uma nacionalidade e de uma identidade nacional e não de busca de identidades raciais, a raça diluída numa ideologia política da mestiçagem, a consciência de que a raça dividia e a mestiçagem, sobretudo simbólica, unia e criava as bases da nacionalidade.

A chamada grande imigração inundou o Brasil, sobretudo o Sul e o Sudeste, com estrangeiros. Eles encontraram aqui uma cultura de assimilação que teve no mestiço o sujeito de sua ideologia racial. A valorização que ricos e pobres já faziam de uma supostamente heróica ancestralidade indígena fez da cultura caipira a referência comum de uma identidade na terra de adoção. A chamada música sertaneja, que se difundiu a partir dos anos 30, tornou-se a memória sonora de descendentes de espanhóis, de árabes, de alemães, de italianos. A dupla sertaneja de mais duradouro sucesso, a dos irmãos Tonico e Tinoco, é de filhos de espanhóis, colonos de café numa fazenda de São Manoel.

Só os anos recentes nos puseram em face de uma nova era na questão das diferenças de cor, a era da invenção de identidades raciais, garimpadas nos resíduos muito antigos do que um dia foram as etnias de origem de imensos contingentes do povo brasileiro.

*José de Souza Martins é professor titular de sociologia da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros títulos, de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34)

A loteria do amanhã


Alberto Dines
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

O preço do barril de petróleo fechou na quinta a US$ 49.62, mas no dia 3 de julho chegou ser cotado a US$ 145.29. Em pouco mais de quatro meses o ouro negro perdeu 63% do seu valor. Na época do pico considerava-se a hipótese de que chegaria aos 200, agora já se admite um recuo para 30 dólares.

Quem pressentiu a disparada? Quem augurou a queda? Em sua ansiosa busca pela perfeição o ser humano ainda não conseguiu conformar-se com dois notáveis fracassos: não alcançar a imortalidade e sentir-se incapaz de prever o futuro. No primeiro caso, contenta-se modestamente com o aumento dos índices de longevidade. Mas no segundo resiste em reconhecer que a futurologia não é ciência exata.

A teoria dos jogos, a lei das probabilidades, a própria estatística e a matemática oferecem ferramentas capazes de minorar a impotência humana diante do inesperado e imprevisível. Teimoso, obcecado com a figura do profeta (mesmo sabendo que na antiguidade eram marginais que ousavam dizer a verdade aos poderosos), o homem moderno insiste na devoção à bola de cristal. Ainda prefere antever a conhecer.

Exemplo desta inclinação divinatória está na evolução da palavra cenário que designava os ambientes (ou paisagens) onde se desenrolavam ações ou representações e que agora significa também um conjunto de prognósticos. Uma exibição de profetismo foi oferecida na quinta-feira pelo Conselho de Inteligência Nacional dos EUA (NIC, na sigla em inglês), que reúne as agências de inteligência e prepara a cada quatro anos, justamente no intervalo que antecede a posse do novo presidente, um documento onde se cruzam as tendências e projeções de médio prazo.

O prognóstico divulgado vai até 2025 e descortina um mundo multipolar ainda com os EUA exercendo o papel de superpotência no campo econômico e militar. Além de novos atores estatais – os conhecidos "emergentes" como China, Índia e Brasil – a boa notícia é que o estudo prevê o aparecimento de atores não-estatais, uma espécie de 3º Setor Globalizado com a participação de empresas, tribos, comunidades, entidades religiosas, ONGs, associações internacionais e tribos. A má notícia é que neste elenco será impossível evitar o aparecimento de organizações criminosas de grande porte.

Nenhuma novidade. Qualquer seminário, colóquio ou congresso sobre os próximos 10, 15 ou 17 anos seria capaz de fazer as mesmas prospecções com base nos desdobramentos da atual conjuntura. Mais complicado será determinar o momento em que as mudanças climáticas começarão a produzir as anunciadas calamidades, quando é que a proliferação nuclear escapará do controle internacional e como serão formatados e acionados os dispositivos para reverter a atual crise do sistema financeiro acordados na reunião do G-20 do passado fim de semana. Isso ninguém sabe.

Mais importante do que malabarismos futurísticos são os exercícios de realismo e eficácia. No lugar de imponderáveis previsões para enfrentar situações aleatórias e imaginárias, melhor optar por decisões corretas para fazer face ao presente. Os autores da Constituição dos EUA sabiam que não poderiam fazer uma carta magna definitiva, intocável, então a redigiram de forma compacta, mais atenta aos princípios do que ao casuísmo e até dotaram-na de emendas anti-emendas que a desvirtuassem.

Quando as lideranças do Velho Mundo, em meio aos escombros da Segunda Guerra Mundial pensaram num modelo de reconstrução dos seus países, escolheram um sistema de cooperação supranacional que tornou-se emblema dos novos tempos a União Européia.

Ao criar um Ministério de Assuntos Estratégicos, o atual governo embarcou na mitologia do porvir, esquecido do devir, a transformação constante, continua. Cada decisão precária torna o futuro mais distante. Se o presidente Barack Obama não criar um sistema de atendimento médico universal, os EUA sequer chegarão a 2025 como potência mundial. O futuro faz-se agora. Com competência. Os estragos institucionais que testemunhamos têm algo em comum: todos resultam de opções recentíssimas, porem toscas, desenhadas para serem descartadas. Na loteria do amanhã, ganha quem aposta no hoje.

» Alberto Dines é jornalista

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