sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Um elogio à divergência

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Se o PMDB estivesse nessa história à vera, primeiro não teria feito a escolha mais polêmica, legal e politicamente falando; segundo, teria sacramentado a candidatura de Garibaldi Alves à reeleição na presidência do Senado muito antes, como fez o PT com o senador Tião Viana e o PMDB na Câmara, com Michel Temer.

Logo, vale a velha norma: em matéria de partidos (especialmente o PMDB), de políticos, de eleições e dos três juntos, duvide do que os olhos vêem, desconfie dos que os ouvidos ouvem. Quando uma coisa não combina com a outra e nenhuma delas bate com a lógica, é mentira na certa.

Nessa apresentação do nome do senador Garibaldi como a solução do PMDB para a presidência do Senado, nada combina com nada.

O partido é, junto com o PT, o maior aliado do governo Luiz Inácio da Silva, cujo apreço pelo escolhido é zero menos 20; entre várias possibilidades, escolhe-se logo a única passível de contestação na Justiça; ninguém no PMDB nunca deu a menor pelota para o desejo de Garibaldi de se reeleger.

De repente, ele que vinha se escorando em pareceres de juristas amigos - entre outros motivos para não pagar uma fortuna - aparece com três opiniões técnicas diferentes, uma delas pelo menos de profissional sabidamente caro e reconhecidamente enfronhado no mundo político.

Garibaldi Alves saiu-se bem melhor que a encomenda nesse um ano na presidência do Senado, em substituição a Renan Calheiros. Se se fizer uma enquete na rua é possível que seja citado como um dos mais - se não o mais - bem avaliados dos parlamentares.

Mas a mola do Congresso não são os gestos de grandeza, as ações ousadas, os atos admirados. Lá o critério é o do acerto, do arranjo, cuja matéria-prima base é a convergência.

Pois a candidatura de Garibaldi, noves fora a legitimidade do desejo pessoal de cada um, é um verdadeiro elogio à divergência.

O governo é contra, o PT avisa que vai contestar na Justiça, a oposição não fecha toda com Garibaldi e nem no PMDB há unanimidade. Ao contrário, também nessa questão o partido está a léguas de distância da unanimidade.

Isso, deixando de lado o questionamento jurídico.

Está tudo muito esquisito. Muito mais com cara de manobra do que com jeito de solução. A dúvida é: o PMDB manobra para quê?

Por enquanto, muito se suspeita, mas pouco se sabe. No momento, o partido parece mais interessado em embaralhar as peças e confundir quem assiste ao jogo.

Da forma sinuosa de quem quis uma coisa querendo outra, o partido explicita um problema qualquer. É nítida a existência de intenções subjacentes, mas a vista não consegue distinguir exatamente quais sejam.

No máximo vislumbra-se a vontade do PMDB de ter uma conversa com o presidente Luiz Inácio da Silva. Dá para perceber também que a idéia é que o interlocutor direto seja o senador José Sarney.

Além desse ponto, porém, não é possível ver mais nada com clareza: é fisiologismo misturado com briga interna, junto com movimentos antecipados de 2010, associados a interesses individuais, acoplados a planos mais ou menos coletivos, tudo envolto em gestos, palavras e atos fictícios, pérfidos e traiçoeiros.

Trata-se por ora de pura embromação, pois o desfecho mesmo só começa a se desenhar no horizonte lá por meados de janeiro quando a proximidade da escolha (início de fevereiro) dos novos comandantes do Congresso obrigar os interessados a deixar de lado a problemática para tratar da solucionática.

Cru e quente

A recusa da Mesa da Câmara em aceitar a emenda constitucional que aumenta em 7.343 as vagas de vereadores em todo o País, aprovada pelo Senado, não foi “hostil” como qualificou o presidente da Casa, Garibaldi Alves.

A Câmara simplesmente não tinha outra saída. Se o Senado alterou a proposta - e alterou ao retirar um artigo que reduzia os porcentuais de receitas dos municípios para as Câmaras Municipais -, a emenda não poderia mesmo ser promulgada.

O Senado atropelou-se na pressa de atender à pressão dos vereadores e a Câmara cumpriu o regimento. Nada além disso.

Trama

O ex-deputado Walter Brito foi eleito por um partido de oposição, mudou para a situação, uma vez desembarcado em Brasília - vindo da Paraíba -, fez isso depois do prazo estipulado pela Justiça para mudanças injustificadas de partido, confrontou as decisões de dois tribunais superiores, mas se acha vítima de uma insidiosa conspiração.

Urdida nas entranhas do Supremo, naturalmente, dada a comparação que ele faz da cassação de seu mandato por infidelidade partidária com julgamentos do caso Daniel Dantas. “Vale a pena uma reflexão a respeito”, diz o rapaz, cuja suspeita é a de que tenha “contrariado interesses”. Poderosíssimos, claro.

Mais ridículo impossível. [ ]

Papéis trocados

Villas-Bôas Corrêa
DEU NO JORNAL DO BRASIL


A disparada do presidente Lula nas pesquisas, léguas à frente da maioria absoluta, saltando acima do sarrafo dos 80%, carimba a sua liderança com as marcas de autenticidade da sua origem humilde do filho da dona Lindu, nascido na zona da seca nordestina do município pernambucano de Garanhuns e que viajou para São Paulo, aos cinco anos, nos galeios de um caminhão, o típico pau-de- arara.

O mais é sabido, tantas vezes tem sido recontado pela mídia. Mas, nem tão nítida a excepcionalidade do único, ou do primeiro líder que emergiu das camadas mais pobres da população para chegar ao pódio da Presidência da República. Fenômenos eleitorais, como o embirutado Jânio Quadros ou o meteoro Fernando Collor de Mello emergiram da larga faixa da classe média.

Lula esconde o seu deslumbramento, que confere no diálogo mudo com o espelho, cultivando a popularidade com inegável garra e competência e a obstinação de quem olha para as lonjuras do futuro.

Com as mãos ardidas pelos bolos da palmatória, sem falsos arrependimentos ou recuos do estilo petista, tento o dever profissional da especulação para entender o paradoxo dos papéis trocados no enguiço da candidatura da ministra Dilma Rousseff, lançada pelo presidente e por ele paparicada com o desvelo com que cerca a sua cria em fase aziaga.

Se Lula necessita da popularidade para enfrentar a crise da economia do mundo e que arranha a nossa porta com o risco de derrubá-la, a ministra-candidata não ata nem desata e entrou na área cinzenta do vai ou racha. Há tempo para a reação até meados do próximo ano, quando a campanha esquenta e começa a apartar os favoritos ou o favorito da turma que vai ficando pelo caminho.

Por enquanto, os sinais são de advertência, não de alarme. A tragédia da enchente que registrou mais de uma centena de mortes, destruiu casas e derrubou morros, desfigurou cidades inteiras nos estados de Santa Catarina, Espírito Santo e Rio de Janeiro abriu outra frente de emergência que impõe a divisão de verbas destinadas às obras do PAC. E não se enxerga mais do que alguns palmos adiante com o agravamento dramático da quebradeira pelo mundo afora, manchando as expectativas com a eleição de Barack Obama para a Presidência dos Estados Unidos e com as muitas reuniões de dirigentes, como a que reúne na Bahia a cúpula do Mercosul, com o presidente Lula a todo pano nas articulações para recompor divergências e aparar arestas com os vizinhos continentais.

A ministra-candidata desta vez ficou em Brasília, com a responsabilidade de substituir o presidente num dos mais embaraçosos momentos dos seus seis anos de mandato. Com o Congresso em fim de sessão legislativa e passando a impressão que tenta superar a sua marca de recordista como o pior desde o fim da ditadura militar.

O descaro com que suas excelências sustentam que a criação de mais 7.343 vereadores em todo o Brasil não implicará em aumento de despesa porque as câmaras municipais vão continuar a receber os mesmos repasses é uma potoca que desconcerta o mais cínico dos mentirosos. Para encerrar a choradeira dos candidatos a vereador sem votos, basta a pergunta: alguém neste país está sentindo falta de vereadores? Lá é verdade que também não há notícia de reclamação pela escassez de senadores, deputados federais e estaduais.

A crise no Legislativo, como nos demais poderes é ética. A gastança é um dos seus aspectos mais visíveis e cada vez mais ostensivo. E o governo puxa a fila com criação de cargos para distribuir com os cupinchas e o aumento das despesas, como milionário perdulário e irresponsável.

Chovendo no molhado

Fernando Gabeira
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

RIO DE JANEIRO - Fiz uma rápida viagem a Santa Catarina e Campos (RJ) para aprender como estamos reagindo às enchentes. Ainda há muito que estudar.

Em Campos, soube que 119 casas populares, inacabadas, foram invadidas pelos desabrigados. Acontece que foram construídas para os que perderam suas casas nas enchentes anteriores.

Tanto em Santa Catarina como em Campos o problema é comum: a ajuda federal custa tanto a chegar que só consegue alcançar o próximo desastre. Qual o caminho para superar este problema? Uma das fórmulas é criar um fundo nacional, evitando responder com medidas provisórias cada vez que caem as grandes chuvas.

Tanto Santa Catarina como Campos têm tradição de desastres naturais. Os catarinenses produziram um atlas das principais catástrofes.

Mas em nenhum lugar onde houve grandes chuvas vêem-se obras planejadas de prevenção. Uma lacuna. Outra lacuna: as forças políticas continuam considerando um humanismo lutar para que as famílias continuem morando em lugares perigosos.

No auge das chuvas aqui, foi criado na Polônia um fundo internacional para adaptação das mudanças climáticas. Será gerido pelo Banco Mundial e é uma fonte para planos nacionais.

Só em fevereiro/março teremos um balanço completo do que se passou no país. Uma coisa ficou clara em Campos. Quando não crê nos políticos, a população se distancia. O prefeito desapareceu e a sucessora teve suas contas bloqueadas.

Sem governos respeitados, será difícil um plano nacional de adaptação e mitigação. Na verdade, tudo será difícil, pois a maioria acha essa conversa sobre prevenção uma nova versão da ecochatice. As chuvas de verão são a chance de colocar o problema na agenda. Antes do próximo desastre.

Joga pedra!

Eliane Cantanhêde
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


BRASÍLIA - Há aquela velha provocação, que se pretende engraçada, mas é profundamente machista e de mau gosto, de que "mulher gosta de apanhar". Pois, se algo ou alguém gosta mesmo de apanhar, é o Congresso Nacional. Uma vocação para Geni incrível, jamais vista.

Deixar todas as votações para a última hora já é de praxe, mas empurrar noite adentro uma decisão que, estava na cara, iria irritar brasileiros pobres e ricos de norte a sul é de arrepiar os cabelos. No fim, dar à luz 7.343 novos vereadores não só irritou a plebe rude e nem tão rude como também produziu um racha entre o Senado, que votou o projeto de madrugada, e a Câmara, que decidiu à luz do dia não assiná-lo. Ou seja, não ser cúmplice.

O mundo está em crise, o crescimento do Brasil no ano que vem tende a ser metade do previsto inicialmente, o pavor das empresas e o recuo das exportações começam a devorar sabe-se lá quantos milhões de empregos. E os senadores aumentando o número de vereadores... Façam o favor!

As pessoas querem cada vez mais empregos e cada vez menos políticos, ou menos politicagem.

Mas os senadores, além de inflarem as Câmaras de Vereadores, ainda fatiaram a proposta da Câmara para retirar uma espécie de salvaguarda: a redução do limite de repasse de verbas das prefeituras para as Câmaras Municipais. Era uma tentativa -matreira, é verdade- de evitar que ao aumento de vereadores correspondesse um aumento de despesa. Mas nem isso sobrou. Os senadores multiplicaram os vereadores e deixaram a conta pra lá.

É por essas (e por muitas outras) que os jovens brilhantes, estudiosos, bons oradores e com um mínimo de espírito patriótico nem pensam em disputar mandato político. Para se contaminar com esse tipo de coisa? E com esse tipo de gente?

Cria-se um círculo vicioso. Os quadros políticos vão ladeira abaixo e, com eles, a própria política. O que dizer? Feliz Natal!

Sair da sombra para mostrar poder

Maria Cristina Fernandes
VALOR ECONÔMICO


Na primeira terça-feira do mês, o gerente de uma fábrica de portas e janelas de Chicago comunicou aos seus 240 operários que as portas estariam fechadas em três dias. Lideranças sindicais haviam pressentido o movimento quando, semanas antes, equipamentos desaparecidos da fábrica tinham sido vistos num vagão de trem. Descobririam mais tarde que o maquinário tinha ido parar numa nova fábrica adquirida pelo grupo, em Iowa, sem trabalhadores sindicalizados. Assim que o anúncio do fechamento foi feito, colocaram em prática o plano de ocupação da fábrica. Reivindicavam os 60 dias de aviso prévio negados pelo fechamento repentino.

Durante oito dias, os trabalhadores se revezaram em turnos para manter a fábrica ocupada. Receberam a visita de dezenas de parlamentares. Saíam criticando o Bank of America que, aquinhoado com milhões de dólares de recursos públicos, havia suspendido a linha de crédito à indústria. O governador do Estado suspendeu os negócios com o banco para pressioná-lo a rever a decisão. No quinto dia da ocupação, até o presidente eleito Barack Obama declarou solidariedade aos trabalhadores, a maior parte dos quais latinos e negros.

Como resultado da pressão, o Bank of America cedeu e o JP Morgan ofereceu crédito para que a empresa pudesse pagar os direitos trabalhistas dos demitidos. O resultado da mobilização surpreendeu os próprios trabalhadores e o caso transformou-se em símbolo de resistência num país de baixo grau de sindicalização que já acumula mais de 2 milhões de desempregados este ano.

Não há quaisquer previsões de que o desemprego no Brasil atinja as proporções que vem assolando a economia americana. Mas a onda já começou e não há dúvidas de que vá se espraiar no primeiro trimestre do próximo ano. Encontrará um movimento sindical que tem obtido acordos coletivos acima da inflação graças à economia em expansão. E que precisará provar se esses seis anos de ocupação do poder não o acomodaram a ponto de minar seu poder de mobilização numa conjuntura economicamente desfavorável.

O avanço da agenda sindical no governo Luiz Inácio Lula da Silva acompanhou a velocidade das crises políticas. No início do segundo ano de seu primeiro mandato, o presidente chegou a defender, em conversa informal com jornalistas, a revisão da multa de 40% do FGTS e o adicional de 30% sobre as férias. Era a mesma época em que núcleos importantes de poder no Palácio do Planalto defendiam a aproximação entre PT e PSDB.

Dias depois, eclodiu a primeira das grandes crises de seu governo, a que atingiu Waldomiro Diniz, assessor do ex-ministro da Casa Civil José Dirceu. As crises se sucederiam com o mensalão, a saída de Dirceu e Antonio Palocci, e os malfeitos dos aloprados. O movimento sindical botou a boca no trombone para defender o presidente politicamente fragilizado e ganhou espaço. Até os comandados do deputado Paulo Pereira da Silva (PDT-SP), rachados na eleição presidencial de 2002, juntaram-se à república sindical no segundo mandato.

A reforma trabalhista saiu de pauta e, em seu lugar, pontos da reforma sindical foram avançando. No ano passado, o governo mobilizou sua base para aprovar o reconhecimento das centrais, ponto da reforma que mais lhes interessava.

As críticas do presidente à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) são antigas. É conhecida sua posição em favor de uma relação em que o negociado prevaleça sobre o legislado. Mas é só olhar a bomba-relógio em que se transformou o PMDB hoje para se concluir que o presidente dificilmente brigará com sua base mais fiel.

Da Bahia aos corredores do Congresso, são cada vez mais concretas as evidências de que o eterno fiel da balança ameaça a base política do presidente. O governador do maior Estado comandado pelo PT rompeu com o prefeito aliado do ministro mais poderoso do PT. E, enquanto Jaques Wagner e Geddel Vieira Lima se enfrentam na Bahia, o PT assiste ao PMDB ficar maior que a encomenda na disputa pelas Mesas da Casa.

Seria portanto esperado que o presidente não embarcasse na onda da supressão dos direitos trabalhistas como meio de enfrentar a crise. Vide a veemência com que ontem rejeitou a proposta feita pelo governo de São Paulo - uma versão ampliada de seguro desemprego que livraria as empresas de verbas recisórias às custas do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). O que ainda está por se provar é se os sindicatos, mantidos à sombra do poder, serão capaz de resistir ao crescimento do desemprego.

Maria Cristina Fernandes é editora de Política. Escreve às sextas-feiras

Feliz ano-novo. Para alguns

Alberto Carlos Almeida
DEU NO VALOR ECONÔMICO

Alguns temas exigem muitos dados para que sejam tratados. Outros exigem pouquíssimos. É o caso do tema de hoje, o 13º salário. Fim de ano, momento de comemoração para o mundo cristão e de felicidade adicional para os trabalhadores brasileiros empregados no setor formal. Estimativas do Ministério do Trabalho consideram que 40% da população são assim beneficiados. Mais importante que isso, esses 40% ganham mais durante todo o ano do que os aproximadamente 60% que não recebem o 13º. Quem não recebe o 13º teria renda média familiar em torno de R$ 850,00 e quem o recebe, na casa dos R$ 1.300,00.

A cada ano isso varia, mas o que importa é que a minoria dos trabalhadores ganha o 13º e essa minoria tem renda mais elevada do que quem não o recebe, obviamente porque está empregada no setor formal da economia, aquele que gera maior valor agregado e por isso pode assinar a carteira de trabalho.

Eis o xis da questão: o caráter elitista de nossa legislação trabalhista e, mais do que isso, a natureza elitista dos argumentos daqueles que a defendem. Em qualquer lugar do mundo as pessoas naturalizam aquilo que é muito presente. Diz-se que quanto maior é a presença de algum atributo social, menos nós o notamos. Como o racismo é muito presente, não o vemos. Como o elitismo está em todos os lugares, não o percebemos. Os exemplos podem ser multiplicados.

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) foi gestada e aprovada em 1943, época na qual o Brasil era um país fundamentalmente rural; o 13º veio décadas depois, em 1962, mas o Brasil ainda era rural. Getúlio Vargas a fez para atender - e domesticar - às demandas urbanas de uma minoria de trabalhadores empregados ou no setor público ou em poucas grandes empresas fortemente dependentes do Estado para sobreviver.

O país mudou muito no período e a legislação não acompanhou as mudanças. Precisamos explicar hoje para os nossos filhos por que alguns trabalhadores recebem 13º salário e outros não. No passado tratava-se de uma explicação mais simples, uma vez que a desigualdade era mais facilmente aceita do que hoje. A ética da igualdade se disseminou muito no Brasil, quando se compara a era Vargas com a era FHC ou Lula.

O argumento básico em defesa da CLT e conseqüentemente do 13º salário é o seguinte: a nossa legislação trabalhista é muito boa e protege os trabalhadores. O problema é que a economia brasileira não é desenvolvida o suficiente para incorporar toda a População Economicamente Ativa (PEA) na CLT. Portanto, à medida que nossa economia se tornar maior, mais pujante, todos serão beneficiados pela proteção da CLT. Basta uma frase de Keynes, que voltou ao debate econômico mundial, para derrubar esse argumento pseudodemocrático: no futuro todos estaremos mortos.

O que acontece hoje com aqueles que não recebem o 13º? Terão de esperar pelo sucesso futuro do Brasil. E se vier uma crise que interrompa a trajetória de crescimento? Paciência, isso acontece, terão de esperar um pouco mais. É interessante que o argumento em defesa da CLT anule a existência da sociedade e consagre o saber do legislador (elitista e socializado na década de 30). Não é a lei que se ajusta à sociedade, mas, ao contrário, a sociedade precisa ficar mais rica para se encaixar em uma lei justa e boa, que dá muitos direitos aos trabalhadores.

Há dois argumentos contrários à nossa legislação trabalhista. O mais disseminado é o econômico e empresarial: essa lei aumenta os custos da produção e assim encarece o preço final dos produtos e reduz a capacidade de geração de empregos. O outro, muito pouco falado, é o argumento democrático e universalista: o 13º consagra tratamento desigual aos desiguais - quem está em uma posição melhor no mercado de trabalho recebe um prêmio, quem está pior continua onde está.

Ao elaborar e aprovar a CLT, os legisladores decidiram favorecer um grupo pequeno de trabalhadores em detrimento da maioria do povo brasileiro. Ao manter o instituto do 13º salário, os legisladores aprovam essa realidade dos fatos.

O 13º salário e outros benefícios da legislação trabalhista brasileira configuram, na verdade, uma peça jurídica elitista travestida de uma capa protetora, democrática e inclusiva. Os efeitos da exclusão estão aí: pobreza, violência, falta de confiança entre as pessoas etc. São muitas as causas desses fenômenos, mas certamente o tratamento desigual submetido às pessoas é parte desse processo.

É possível fazer um exercício imaginando que não tivéssemos lei trabalhista alguma, que todos os contratos fossem negociados diretamente entre patrão e empregado e houvesse um tribunal para decidir acerca de eventuais conflitos, além, é claro, dos respectivos sindicatos de cada categoria. Nesse caso, todos seriam tratados igualmente: não haveria nenhum benefício, não haveria FGTS, 13º salário ou o que fosse para ninguém; todos seriam igualmente sujeitos ao fato de não ter nenhum benefício trabalhista. Algo revolucionário para o Brasil, não a ausência de direitos, mas o tratamento igualitário.

Isso é em tudo oposto ao que ocorre hoje com a CLT: muitos direitos para alguns e nenhum direito para a maioria, imperando o "salve-se quem puder".

Quem toma táxi no Rio e em Curitiba neste mês, a qualquer hora, tem de pagar a tarifa correspondente à bandeira 2. Já em São Paulo isso não ocorre. Eis um exemplo cruel do "salve-se quem puder". Há outros, o mais disseminado são as caixinhas de fim de ano para carteiros, lixeiros, entregadores de jornais, porteiros e zeladores. É a mentalidade do 13º salário. No Brasil de hoje, passados em torno de 40 anos do instituto do 13º, todos se sentem no direito de recebê-lo, mas poucos têm o poder de barganha para tal. Qual de nós recusa sem culpa a oferta para a caixinha de fim de ano? Eu mesmo, no condomínio onde fica meu escritório, dei de livre e espontânea vontade R$ 200,00 para o pessoal que trabalha no prédio. Soube que muitos condôminos não o fizeram. O que, então, motiva a oferta?

No meu caso, não foi o direito quase adquirido (para alguns) do 13º, mas a velha e boa patronagem brasileira ou, ao menos, a crença de que ela ainda funcione no coração econômico e financeiro do país. Acreditamos que os serviços no prédio e a boa-vontade do seu pessoal será maior para os que deram a caixinha de fim de ano do que para os que não o fizeram. Além disso, quem fez essa doação tem "um coração bom" e quem se recusou a fazê-la é "mal-agradecido", "frio" e não reconhece o empenho daqueles que cuidam do condomínio.

Tudo se encaixa: elitismo, CLT, 13º salário, patronagem, bom coração, desigualdade etc. São todos elementos de uma sociedade que se moderniza de maneira muito lenta e tem grandes dificuldades em lidar com o seu passado (e presente) elitista e hierárquico. Todos nós, sem exceção, somos parte desse fenômeno. Voltando ao parágrafo que deu início ao artigo: seríamos capazes, se fosse parte da agenda da realpolitik, de apoiar a abolição pura e simples do 13º salário, uma vez que ele não beneficia a maioria das famílias e é recebido justamente pelos que já têm uma renda mais elevada? É bem possível que não.

Para viabilizar essa reforma (ou revolução) na legislação é preciso que a sociedade brasileira aceite o caráter elitista do 13º e busque saídas legais igualitárias para a desigualdade social que nos acorrenta ao passado. Na medida em que isso não é feito ou é adiado, a sociedade busca alternativas ao engessamento legal. O que não é o pagamento por meio de pessoa jurídica senão a fuga a esse engessamento? Se o governo não faz, a sociedade age.

Feliz Natal e bom ano-novo para todos, especialmente para os que não vão receber o 13º salário.

Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário, é autor de "A Cabeça do Brasileiro" (Record).

Infâmia

Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


NOVA YORK. Uma das questões mais emblemáticas da mudança de comando no governo dos Estados Unidos, o fechamento da prisão de Guantánamo e o fim da tortura como método oficial de interrogatório a presos da guerra ao terror, tornou-se ponto central da discussão política nos últimos dias, com a divulgação de um documento de uma comissão do Senado americano. O documento contém acusações frontais de que o desrespeito à Convenção de Genebra foi aprovado pelo presidente George W. Bush, e a autorização para que técnicas de afogamento fossem usadas nas prisões de Guantánamo e Abu-Grahbi partiram diretamente do ex-secretário de Defesa Donald Rumsfeld.

Ao mesmo tempo em que o relatório foi divulgado, dois outros posicionamentos vieram a público. O presidente eleito, Barack Obama, reafirmou a disposição de fechar Guantánamo e proibir a tortura, enquanto o vice-presidente Dick Cheney defendeu em um programa de televisão a tortura como maneira eficiente e rápida na luta contra o terrorismo.

Também o presidente Bush, em outra das muitas entrevistas que vem dando, tentando reescrever uma história que tudo indica será desfavorável ao seu período de governo, disse que o fato de não ter havido mais nenhum ataque terrorista ao território americano desde 2001 é prova de que o país está mais seguro e que a política antiterror de seu governo está correta.

Assim como o presidente Bush - e durante a campanha presidencial, também a candidata republicana, a vice Sarah Palin - avocou a si em diversas ocasiões a representação da vontade divina na luta contra o terror, o presidente eleito Barack Obama declara-se admirador do teólogo protestante Reinhold Niebuhr, um de seus "filósofos favoritos".

Considerado um dos mais importantes intelectuais religiosos, ligado ao grupo evangélico Igreja Unida de Cristo, ensinou durante mais de três décadas em um seminário em Nova York e hoje é nome de rua na cidade.

Fundador de um grupo anticomunista chamado Ação Democrática de Americanos, ele apoiou a intervenção dos EUA na Segunda Guerra Mundial, condenou o bombardeio sobre Hiroshima e Nagasaki, mas depois admitiu que a ação fora necessária para conter a União Soviética.

Niebuhr foi um ativista contra a atuação americana no Vietnã. Seu "realismo cristão" o levava a reconhecer o que chamava de "a persistência do pecado" e criticava quem "usava o mal para evitar o mal maior". Para Obama, lendo Niebuhr, aprende-se que, se é verdade que o mal está sempre presente, sua persistência não pode servir de desculpa para não agir.

Em comentários que parecem dirigidos a Bush, Niebuhr dizia que "pretender interpretar a vontade de Deus é presunção". E advertia que "causas nobres provocaram conseqüências cegas e resultados moralmente problemáticos".

É o que o relatório do comitê bipartidário sobre assuntos militares do Senado confirma, afirmando que os abusos aos direitos humanos dos prisioneiros em Guantánamo, Abu-Ghraib, no Afeganistão e nas prisões secretas da CIA foram diretamente decididos pela alta cúpula do governo, a começar pelo ex-secretário de Defesa Rumsfeld.

As técnicas de interrogatórios utilizadas teriam sido ensinadas por agentes chineses durante a Guerra da Coréia, e foram utilizadas pela primeira vez de maneira sistemática e oficial, pelo menos até 2004. Nesse ponto, o relatório ajuda o presidente eleito Obama, que escolheu para permanecer no cargo o atual secretário de Defesa Roberto Gates, que assumiu em lugar de Rumsfeld no segundo mandato.

Toda essa operação já havia sido denunciada em um livro que foi escolhido pela "New York Times Book Review" como um dos dez melhores do ano. "The Dark Side" ("O lado escuro") da jornalista Jane Mayer da "New Yorker", já foi citado aqui na coluna quando de seu lançamento e é realmente formidável trabalho de investigação jornalística, agora confirmado pelo relatório do Senado.

Ele conta como a guerra ao terrorismo se voltou contra os próprios ideais democráticos dos Estados Unidos. A tortura como tática de obtenção de informações mais rápidas que ajudassem no trabalho de inteligência militar, defendida estes dias por Cheney.

O livro ressalta que somente em junho de 2004, por decisões da Suprema Corte, a lei americana passou a ser válida também para o território de Guantánamo, e os prisioneiros passaram a ter o direito de serem representados por advogados diante de um "julgador neutro".

O livro de Jane Mayer tem uma passagem que mostra bem como a distorção das palavras pode ser a base de uma ação do governo para se defender, confirmada pelo relatório do Senado. E a que ponto de esquizofrenia chegaram algumas autoridades ligadas diretamente à Casa Branca

Ao assumir o posto de principal conselheiro legal do presidente no Office of Legal Counsel, o segundo cargo na hierarquia do Ministério da Justiça dos Estados Unidos, o jovem advogado Dan Levin foi obrigado a justificar legalmente os interrogatórios, descaracterizando a tortura.

Um documento anterior ampliara tanto o conceito de tortura que a legitimara, tornando-se um escândalo. Procurava-se agora um trabalho mais "profissional". Levin se dedicou a tentar encontrar nuances semânticas entre palavras como "dor"ou "sofrimento", para definir até onde os interrogatórios poderiam ir.

E, numa atitude extrema, decidiu se submeter aos mesmos tratamentos dados aos presos de Guantánamo, para avaliar na própria pele até onde poderia chegar "o sofrimento" humano.

Agora, o futuro ministro da Justiça, Eric Holder, terá pela frente a delicada tarefa de desmontar toda a parafernália jurídica criada no governo Bush para justificar os abusos aos direitos humanos, e decidir se processa criminalmente as autoridades que comandaram essa situação infamante na maior democracia do mundo.

Falar e fazer nas Américas

Clóvis Rossi
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


COSTA DO SAUÍPE - Apenas para que o leitor saiba com quem está falando, já fui um entusiasta da integração latino-americana, já achei bacana a canção de Caetano Veloso "Soy loco por ti, América".

O tempo de estrada na "Nuestra América", que é muito mais do que gostaria de lembrar, introduziu, no entanto, uma pitada forte de ceticismo. Nada contra a integração, que fique claro. Já que falei de canções, acredito em um verso cantado pela mexicana Amparo Ochoa (1946/1994) que diz: "Juntos, codo a codo, somos mucho más que dos" (codo é cotovelo).

O problema é o excesso de retórica. Escutar os presidentes da América Latina e do Caribe discursando interminavelmente nas multicúpulas da Bahia termina sendo um tormento, mesmo quando se trata de uma líder articulada como Cristina Fernández de Kirchner. Ela abriu sua fala dizendo, com toda a razão, que era preciso "um sistema de decisões" para o grupo, em vez de apenas um espaço de reflexão.

Mas girou em torno da frase interminavelmente sem sair do lugar.De todo modo, o excesso de retórica, raramente transformada em ação, é um mal menor ante a idéia de líderes como Hugo Chávez de buscar soluções latino-americanas (e caribenhas, claro) para os problemas da região.

Não existem problemas latino-americanos. Existem problemas universais (fome, miséria, violência, desigualdade, devastação ambiental e uma vasta lista de etc., aos quais se soma agora a crise econômico-financeira também global).

Podem ser problemas mais graves em "Nuestra América", mas continuam sendo universais.Nada contra que as soluções sejam de esquerda, embora seja cada vez mais difícil definir o que é esquerda, desde que consigam convencer o mundo, não só a América, de que são as melhores. Do contrário, vai-se ficar eternamente reinventando a roda -e falando.

A discussão sobre os juros


Luiz Carlos Mendonça de Barros
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


Os juros cairão em janeiro, e o ciclo de afrouxamento monetário pode se mostrar maior que o esperado

A CONTRAÇÃO do crédito que nos atingiu a partir de outubro passado é uma das principais responsáveis pela mudança brusca no ritmo de crescimento da economia brasileira. Não por outra razão o governo vem tomando em cascata várias medidas para tentar reverter esse movimento. Nesta semana, o CMN aprovou mais uma mudança na contabilidade dos bancos com o objetivo de abrir espaço para mais empréstimos. É preciso cuidado com esse tipo de medida, cujo uso em excesso pode comprometer a segurança do nosso sistema bancário. Além disso, os efeitos na oferta de crédito são duvidosos e devem ocorrer principalmente nos bancos públicos, com os riscos que conhecemos.

No caso dos grandes bancos privados, não deve haver grande mudança, já que não se trata de falta de capacidade, mas de menor disposição para emprestar, e sobre esta o governo tem pouca influência. Outra frente importante nessa batalha, para evitar uma contração maior do ritmo da economia, é a condução da política monetária do BC. Em sua última reunião, o Copom claramente mudou sua posição ao informar ao mercado que discutiu a possibilidade de iniciar o tão esperado -e necessário- processo de redução da taxa Selic. A decisão de manter os juros foi tomada para acomodar os membros que ainda relutavam em aceitar uma inflexão abrupta na política monetária.

Para entender a dinâmica desse conflito, o mercado esperou com ansiedade a divulgação -que aconteceu ontem- da ata completa dessa reunião. A mensagem clara do Copom é que a decisão de reduzir a taxa Selic já está tomada e deve ser efetivada em sua reunião de janeiro próximo. Fica em aberto a dimensão dessa redução ao longo das próximas reuniões. São várias passagens na ata que permitem essa leitura antecipada. A primeira diz respeito a uma das questões que têm dividido a opinião do mercado: o impacto da desvalorização do real na inflação. No passado, uma desvalorização da magnitude da ocorrida nos últimos três meses sempre pressionou a inflação de forma importante. Esse padrão levou um grupo de economistas até a pedir uma aceleração da velocidade de aumento da Selic. Hoje, estão todos amuados com os termos da ata.

Estive sempre do lado dos que pediam reflexão e alertavam de que, desta vez, a perda de valor do real ocorria no momento de uma recessão global, com queda brutal nos preços de commodities e produtos intermediários. A combinação desses dois movimentos reduziu muito o impacto da desvalorização do câmbio nos preços internos, como mostram os últimos indicadores no atacado. Ainda há riscos, mas eles parecem menores do que nossa experiência histórica indicaria. Por outro lado, a incrível e brusca descontinuidade da oferta de crédito e da atividade reduz sensivelmente a pressão futura sobre os preços. Não por outra razão, o Copom mencionou que houve queda na sua projeção de inflação para 2009, mesmo considerando a forte alta do câmbio.

A combinação dessas duas forças abre um cenário novo para a ação do Banco Central. E essas mudanças não passaram despercebidas pela maioria dos membros do Copom. Apesar do uso de qualificativos, tão ao uso dos bancos centrais, a mensagem é clara. Os juros serão reduzidos em janeiro como passo inicial para um ciclo de afrouxamento monetário que pode se mostrar maior que o esperado pela maioria dos analistas.

Luiz Carlos Mendonça de Barros , 66, engenheiro e economista, é economista-chefe da Quest Investimentos. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações (governo Fernando Henrique Cardoso).

O QUE PENSA A MÍDIA

Editoriais dos principais jornais do Brasil
http://www.pps.org.br/2005/index.asp?opcao=editoriais&portal=#