quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

FELIZ NATAL PARA TODOS

NÃO HÁ VAGAS
Ferreira Gullar

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

- porque o poema, senhores,
está fechado:
"não há vagas"


Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

O poema, senhores,
não fede
nem cheira

A prova do retrovisor

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Nessa mesma época, um ano atrás, o Senado acabara de derrubar a renovação da CPMF e, junto com ela, o governo anunciava também o fim do mundo. O presidente Luiz Inácio da Silva acusava a oposição de inviabilizar sua administração com a retirada dos R$ 40 bilhões de arrecadação anual do imposto do cheque.

O cenário para 2008, no entanto, era de abundância absoluta: situação internacional confortável, inflação controlada, crescimento das despesas públicas preocupante, mas, no geral, tudo estava muito bem arrumado para um período de gastança e exuberância eleitoral no pleito municipal, que funcionaria como uma espécie de plebiscito em favor do projeto de sucessão do presidente Lula.

Um ano depois, verifica-se o equívoco das previsões. Aquele que parecia o assunto mais fundamental do planeta, a queda da CPMF, saiu da agenda e sequer é levado em conta em qualquer análise de conjuntura.

A gastança pública prosperou, mas não teve relação direta com o resultado da eleição nem confirmou a expectativa de que o quadro seria favorável em qualquer hipótese. De pé, e mais forte do que nunca, só ficou mesmo a popularidade do presidente da República.

A crise internacional chegou no segundo semestre, ainda não mostrou se seus dentes são mesmo afiados, mas deu uma meia-trava no horizonte de País das maravilhas. Nesse meio tempo as urnas municipais levaram ao Palácio do Planalto a notícia de que a popularidade e o poder de fogo do presidente Lula não são suficientes para ganhar uma eleição.

Houve abalos de autoconfiança no governo e na oposição, o que obrigou uma revisão de planos. Constatação óbvia: a conjuntura é fluida, as previsões são irresistíveis, mas frágeis ante a força dos fatos. Quer dizer, implicam necessariamente uma enorme margem de erro.

Donde a total impossibilidade de se satisfazer, desde já, a curiosidade nacional a respeito do que acontecerá em 2010. Mais não fosse, porque ainda falta acontecer 2009.

Segundo as pesquisas, os governadores José Serra e Aécio Neves ganham a eleição presidencial de qualquer candidato que não seja Lula. Isso significa que o PSDB está com os dois pés dentro do Palácio do Planalto?

Nem com os dois, nem com um, mas pode ficar no ora veja depositado nos quatro se repetir as bobagens de 2002, 2006 e 2008, aqui com bom resultado final, mas uma preliminar desastrosa.

Um dado novo da agenda de 2009 pode mudar tudo também: o início da tramitação da emenda que acaba com a reeleição e institui cinco anos de mandato para presidentes, governadores e prefeitos.

O governo faz de conta que não patrocina a proposta e apresenta como álibi uma sugestão de reforma política, cujo único ponto de consenso é a abertura de uma "janela" para o troca-troca de partidos.

O essencial é que o fim da reeleição ensejará a volta do debate sobre o terceiro mandato, ou até a prorrogação de um ano, para Lula. Uma proposta quase impossível de passar, mesmo com a popularidade do presidente nos píncaros.

Por muito menos o governo perdeu batalhas nas urnas e no Congresso. Portanto, as obras estão em aberto à disposição das querências dos personagens envolvidos, mas na dependência das "poderências" determinadas pelas circunstâncias.

De sólido em matéria de previsões, o ativismo do Judiciário foi a exceção confirmadora da regra.

Flor do recesso

Governos quando não sabem direito como lidar com um assunto de forma objetiva, mas precisam dar a impressão de providências, criam um grupo de trabalho ou fazem uma reunião.

É nesse quadro que se insere a idéia do Palácio do Planalto de convocar os governadores para um grande encontro em janeiro para de discutir medidas conjuntas de combate à crise.

A chance de entendimento entre governadores e presidente na distribuição de perdas e ganhos é a mesma do acordo em torno da reforma tributária, tal a diversidade de interesses em jogo.

A menos que, nesse caso, o presidente Luiz Inácio da Silva esteja disposto a desagradar, no papel de árbitro.

Poder dos partidos

O deputado Miro Teixeira apresentou uma série de consultas ao Tribunal Superior Eleitoral - a serem examinadas após o recesso -, cuja origem é a declaração de posse dos mandatos eletivos pelos partidos, não pelos candidatos, e o objetivo (grosso modo) é tentar desmontar a premissa de que os partidos podem tudo.

O assunto merece detalhamento mais bem explicado, mas por ora Miro resume o espírito da coisa na seguinte frase: "No Brasil nós fingimos ter uma democracia organizada por partidos, mas os partidos não se regem por práticas democráticas".

Até 2009

Que a virada do ano consiga virar suas excelências de frente para a sociedade.

Politicagem

Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


NOVA YORK. Nos Estados Unidos, cidades com menos de 150 mil habitantes não têm vereadores assalariados. Se esse critério fosse utilizado no Brasil, apenas 4% dos municípios teriam câmaras remuneradas. Existem 194 municípios com população entre cem mil e 500 mil habitantes, e apenas 32 com mais de 500 mil habitantes. São poucos os lugares no mundo onde se pagam subsídios aos vereadores, quase todos os conselhos locais são trabalhos voluntários. O aumento de número de vereadores, o último escândalo político do ano (será?), que é defendido como um fortalecimento do poder municipal, na verdade é uma distorção do que seja poder real.

Em todos os países em que o poder local não tem remuneração ou recebe apenas um pagamento simbólico, a cidadania se faz mais presente do que se eles fossem regiamente pagos, como no Brasil.

A questão não é o número de vereadores, mas a sua remuneração. O ideal é que apenas os municípios que tivessem arrecadação própria pudessem ter câmara de vereadores assalariada.

Diante da pressão popular, o Congresso pode voltar a discutir o limite dos gastos das câmaras municipais, e a criação das novas 7.343 vagas de vereadores em todo o país deve ficar adiada para 2009.

O corte de cerca de 14% das vagas de vereadores, decidido pelo Tribunal Superior Eleitoral para a eleição de 2004, poderia ter proporcionado uma economia entre R$250 milhões e R$700 milhões por ano, mas não foi isso o que aconteceu, pois o corte de verba não foi regulamentado.

Essas vagas que foram cortadas, por definição de critério do Tribunal Superior Eleitoral com base em decisão do Supremo Tribunal Federal, simplesmente não deveriam existir. Estavam sendo ocupadas ilegalmente, já que o critério de vagas para cada estado estava sendo definido de maneira arbitrária, fora das normas legais.

Desta vez, a emenda à Constituição que recriou 7.343 cargos de vereadores reduzia de 5% para 2% o repasse da receita líquida dos municípios destinado a financiar as câmaras municipais, uma economia em torno de R$1,5 bilhão, mas corria-se o risco de aprovar o aumento de vagas sem o corte de despesas.

Só o fato de não se saber o quanto a decisão resultará em economia já mostra o grau de descontrole dos gastos municipais, que são no total entre R$3,5 bilhões e R$4 bilhões ao ano.

O teto salarial de um vereador corresponde a 75% do subsídio dos deputados estaduais e, embora a lei preveja uma escala, que vai de 20% para os municípios de até dez mil habitantes, até os 75% para os de mais de 500 mil habitantes, o teto acaba se transformando em regra geral através de artifícios diversos.

Existe um projeto em tramitação no Senado que define o limite de 20 mil habitantes para o município pagar subsídios a seus vereadores.

Abaixo disso, o pagamento seria simbólico. Pelo censo dos municípios do IBGE de 2001, há 1.371 municípios com até cinco mil habitantes, e 2.688 de cinco mil a 20 mil habitantes. São 4.059 municípios, representando cerca de 80% dos municípios brasileiros, que não se enquadrariam no critério de pagamento.

Estudos mostram que 90% das câmaras de vereadores estão instaladas em municípios de menos de 50 mil habitantes, e que 35% dos municípios gastam com as suas câmaras de vereadores mais que sua receita própria, sendo que a grande maioria nem mesmo tem receita própria.

Da Constituinte de 1988 até 2004, a receita dos municípios aumentou, em termos reais, nada menos que 141%. O seu peso no PIB subiu de 2,4% para 5,8%. As transferências da União e dos estados representam o triplo do que arrecadam diretamente de tributos, e o dobro da receita própria, de modo que 65% da despesa municipal são financiadas por essas transferências.

Os gastos com o Legislativo superaram as despesas com saúde e saneamento em 8% das prefeituras do país, e 19% gastam mais com o Legislativo do que com habitação e urbanismo. A vasta maioria depende, portanto, da ajuda do governo federal.

As cidades mais carentes são as que gastam mais com suas câmaras. Municípios do Norte e do Nordeste gastam com as câmaras entre 30% e 40% mais que os municípios do Sudeste, por exemplo.

A opção política pela descentralização foi um marco no processo de redemocratização na Assembléia Constituinte de 1988. O esvaziamento fiscal e financeiro do governo central, e o fortalecimento dos governos estaduais e municipais, foram decisões políticas tomadas com o objetivo de equilibrar a federação.

Mas acabaram virando uma "politicagem", com o aumento do número de municípios - a partir de 1988, houve a criação de 1.100 novos - e o descontrole financeiro.

E o governo federal voltou a centralizar a arrecadação de impostos. Em 1985 os impostos compartilhados entre União, estados e municípios representavam 75% do total, enquanto 25% eram da União.

O equilíbrio feito pela Constituinte foi desfeito pelo governo federal, que passou a fazer uso das contribuições, uma figura criada pela nova Constituição, para não precisar dividir o imposto arrecadado com estados e municípios.

Com isso, em 2002 a União ficou com 69,2% da arrecadação, os estados com 26,4% e os municípios, com apenas 4,4%.

Ao desistir de tentar aprovar a reforma tributária em 2007, e acatar a reivindicação dos prefeitos brasileiros de aumentar em 1% o repasse do Fundo de Participação dos Municípios, injetando cerca de R$1,5 bilhão nos municípios, o presidente Lula segue a trilha de seus antecessores.

Continua querendo centralizar a arrecadação dos impostos, e fazer benesses quando o interesse político convier, razão pela qual a reforma tributária continua emperrada, e todos vão fazendo política às custas do erário público.

Feliz Natal para todos.

Conto-do-vigário na sucessão

Luiz Weis
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

A sucessão de 2010 começou cedo e começou mal. Cedo porque o horizonte de incerteza econômica levou o presidente Lula a pôr desde logo na avenida o bloco da candidatura Dilma Rousseff. Já não bastasse o fato de a ministra continuar desconhecida para quase a metade dos brasileiros, apesar da profusão de holofotes voltados para a sua figura, Lula não iria correr o risco de descortinar a sua campanha quando (ou se) o desemprego tiver se instalado nas manchetes - do primeiro trimestre de 2009 em diante, ao que se calcula.

Se não se instalar, sinal de que o temido contágio do colapso financeiro internacional se limitou a uma "gripe pequenininha", como prevê a ministra, tanto melhor para a operação Dilma-10: ela terá ganho tempo extra para corrigir os eventuais erros de implantação de um nome sem passagem prévia pelas urnas. O público, porém, tem mais com que se preocupar que com uma eleição a 22 meses de distância. E só lhe resta torcer para que a imersão do presidente na montagem do suporte político da candidata não embace sua concentração na crise.

Agora, a sucessão começou mal porque o PT armou um conto-do-vigário, querendo atar a eleição a uma cruzada contra o neoliberalismo. A deixa partiu do secretário nacional de Comunicação do PT, Gleber Naime, numa reunião de dirigentes partidários. "A crise tem pai e mãe", proclamou. "Ela é uma crise do modelo neoliberal, daqueles que no Brasil defenderam as idéias de desregulamentação do Estado, ou seja, o PSDB e o DEM. E esse debate o PT vai fazer. Os neoliberais perderam."

Seguiu-se, dias depois, a própria Dilma. "Nossa visão de Estado não é neoliberal. Somos governo com responsabilidade fiscal, mas também social", discursou ela para uma platéia de prefeitos petistas. "A diferença (em relação ao passado) é radical", emendou. É inconcebível que ela não saiba, antes de tudo, que o governo Fernando Henrique foi privatista, mas não neoliberal. Se fosse, o sistema financeiro nacional estaria tão desregulamentado como o dos EUA e, como este, em frangalhos.

Além disso, no atual governo, desde a hora zero, a ex-ministra de Minas e Energia não precisa que ninguém lhe ensine que Lula encampou a política econômica do antecessor, embora a desancasse como "herança maldita". Não só a encampou, mas soube tocá-la com uma competência que seus adversários, não fosse a baixaria da política, poderiam fazer a fineza de admitir, em nome da verdade. A mesma competência, por sinal, com que levou adiante o Bolsa-Família.

Este descende em linha direta dos vários programas de transferência de renda iniciados no segundo mandato de FHC, especialmente o Bolsa-Escola - cujos ancestrais, por sua vez, foram uma administração tucana (a do prefeito de Campinas já falecido José Roberto Magalhães Teixeira) e outra, petista (a do governador do Distrito Federal Cristovam Buarque).

O petismo fabrica uma diferença - "radical", ainda por cima - em relação ao PSDB para esconder as semelhanças recíprocas, para o bem e para o mal, que não tem como admitir de cara limpa. Até o primeiro caso documentado de mensalão é obra tucana (na campanha do atual senador Eduardo Azeredo ao governo de Minas em 1998).

Por último, falar em neoliberalismo no Brasil numa hora destas é de um anacronismo atroz. Qualquer que tenha sido seu apelo na década passada, hoje deve ter tantos adeptos quanto os da restauração da monarquia. E o provável adversário de Dilma, o ex-ministro e governador paulista José Serra, nunca deu nem sequer uma piscadela para a ideologia do absolutismo do mercado.

Está na cara a intenção de escamotear a inconveniente verdade da convergência de posições entre o PT - pelo menos o PT da Carta aos Brasileiros, de 2002 em diante - e o PSDB, no que toca aos problemas de fundo do País. O próprio Fernando Henrique, que também diz uma coisa para fora e outra para dentro, já deixou escapar que a disputa entre as duas legendas é puramente política.

Trata-se, pois, de uma disputa pelo poder, velha como as montanhas, entre confederações rivais de interesses cristalizados que compõem os respectivos partidos ou se exprimem por seu intermédio. Essa convergência básica não é uma jabuticaba - dá em qualquer democracia estável. Nelas, o tempo destila na sociedade e nos principais partidos um consenso sobre o núcleo essencial das políticas de Estado.

As divergências não se evaporam; ao contrário, tendem a se intensificar - mas na periferia das grandes questões em jogo. Nos EUA, por exemplo, o consenso em torno do New Deal de Roosevelt durou cinco décadas, dos anos 1930 até a contra-revolução conservadora inaugurada com a eleição de Ronald Reagan. Na Grã-Bretanha, o consenso em favor do Welfare State, a partir do primeiro governo trabalhista do pós-guerra, só se desfez com o advento do thatcherismo, em 1979.

Quando Dilma e Serra (ou, vá lá, Aécio Neves) enfim disserem a que vêm, ver-se-á que, removida a retórica, ambos estarão propondo, ao fim e ao cabo, o mesmo - desenvolvimento com justiça social, a ideologia brasileira por excelência desde a Revolução de 1930 (à parte as discordâncias posteriores sobre o papel do Estado como produtor de bens e provedor direto de serviços).

O resto - embora não seja pouco nem descartável - é questão de métodos. Métodos de construir maiorias parlamentares, métodos de ocupar e conduzir o Estado, métodos de conquistar popularidade, métodos de fazer política externa. Sem Lula a ofuscar as coisas com a sua exacerbada oralidade e seu inigualável carisma, isso ficará patente no próximo período de governo, com Dilma ou Serra.

Quantas vezes, enfim, será preciso repetir que, para os historiadores do futuro, a continuidade dará a marca do ciclo iniciado com a eleição de FHC e só terminará no dia ainda distante em que o Planalto não hospedar nem petistas nem tucanos?

Luiz Weis é jornalista

Só quem trabalha pode pagar o almoço

José Nêumanne
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva encasquetou com a idéia fixa de que ele vai livrar o Brasil da crise se fizer o brasileiro consumir. Por isso, fingiu descer do palanque eleitoral para trocar o papel de eterno candidato pelo de garoto-propaganda do consumismo redentor. A idéia parte do pressuposto aparentemente simples, mas na verdade apenas simplista, de que, se o consumidor comprar, o comércio venderá, levando a indústria a produzir, a empresa a empregar e o trabalhador garantirá, destarte, sua renda para assegurar o próprio poder de compra. Usando uma parábola futebolística da preferência presidencial, é como se uma partida começasse aos 90 minutos e o cronômetro fosse rodando para trás até chegar ao zero - com o resultado predeterminado pelo árbitro. Caberia aos jogadores dos dois times cumprirem as determinações prévias de fazer os gols necessários para a derrota, a vitória ou o empate determinados pelo supremo juiz.

A torcida do Corinthians, contudo, sabe que não se joga o jogo assim, mas na ordem inversa das coisas: ele começa no primeiro minuto e acaba no último; o destino das equipes é determinado por suas atuações; e, embora o juiz possa influir no resultado, não é esperado nem lícito que o faça. Pois dessa forma é também a vida real da economia: o campeonato começa com a disposição de produzir da sociedade, continua com a sua capacidade de poupar e se completa com a necessidade de consumir. Embora corintiano roxo, o presidente parece não ter percebido que os desmandos do clube levaram o time à Segunda Divisão do Campeonato Brasileiro. E foram o empenho e engenho dos jogadores, sob uma gestão adequada, que o levaram de volta à Primeira, não apenas a vontade suprema da diretoria nem o entusiasmo da torcida.

Sua Excelência Excelentíssima e seus áulicos poderão argumentar que a teimosa disposição dos japoneses para poupar não os salvou dos estilhaços da crise dos mercados financeiros internacionais. Japoneses são tão viciados em poupança quanto os brasileiros em gastança e tudo indica que estão sendo mais atingidos pelo tsunami de Wall Street que nós aqui nestes tristes trópicos. É fato também que os séculos de cultura e civilização vividos pelos europeus de nada lhes têm valido para livrá-los do pânico da recessão, que assombra o mundo. A antiga habilidade de produzir mais e melhor (inventando sistemas como a linha de montagem, por exemplo), que deu aos antigos colonos da Nova Inglaterra o domínio sobre o mundo, não impediu que a hecatombe fosse nutrida no seio de seu sistema financeiro. Mas isso não modifica leis fundamentais da sobrevivência humana que o apóstolo São Paulo resumiu numa frase genial, que o presidente Lula, mais que seus assessores, comunistas, et pour cause, ateus, deveria ter aprendido, após tantos anos de freqüência de missas: "Quem não trabalha não come."

Os economistas liberais da Escola de Chicago adaptaram a sentença curta, dura e sincera do primeiro teólogo cristão para "não há almoço grátis". E a bruta sentença paulina sobrevive nestes tempos bicudos de pós-capitalismo: não há produção sem consumo nem vice-versa. O trabalho precede a refeição e, em termos atuais, a paga. Pois a produção garante a remuneração, não cabendo nessa equação a velha dúvida entre a precedência do ovo sobre a galinha ou da galinha sobre o ovo. Talvez esta não seja a melhor hora para concentrar esforços na poupança, mas certamente comprar sem freios nada resolve, se não por qualquer outro motivo pelo menos pela óbvia razão de que só compra quem tem dinheiro no bolso e dinheiro, ao contrário do que Lula possa pensar, não é um papel pintado impresso na Casa da Moeda, mas um signo de troca resultante da capacidade de uma sociedade de produzir, poupar e consumir. Não se produzem riquezas só com vontade política e as complicadas malhas da economia real são impermeáveis às leis do marketing político, matéria na qual ele é mestre incontestável.

Lula é um gênio intuitivo fora do comum, muito acima da média, em matéria de comunicação política, por dominar como poucos a linguagem dos anseios populares de consumo e conforto: todos adoramos comer e comprar, mas quem gosta de trabalhar feito um mouro? Quando apela ao consumo, noçço líder atinge o que há de mais vulnerável no organismo humano: o estômago. Ele sabe o que faz: seu segredo de prestidigitador de massas é o cardápio do trabalhador, enriquecido de proteína pela oferta de emprego propiciada pela bonança internacional (que está, aliás, na raiz da crise, mas quem se importa com isso?) e pela mudança completa de seus hábitos de vida. O observador desapaixonado que for à periferia de qualquer cidade de qualquer região brasileira perceberá a olho nu essa conquista. O morador dessas "comunidades" de baixa classe atribui, com orgulho, o fato de poder possuir um televisor e trocar a geladeira - sem falar na rede elétrica que lhe chega, sem sequer a obrigação de pagar, graças aos "gatos" tolerados -, ao fato de ter, afinal, alguém de sua grei na gerência dos negócios republicanos. Daí, o prestígio do presidente subir sem parar feito um foguete sem rota de retorno.

Neste momento, os índices de desemprego não são assustadores, quem está desempregado come sua cota de Bolsa-Família e a alta burguesia financeira não se sente abalada pelo sismo de Wall Street. Enquanto essa satisfação generalizada perdurar, ninguém trará o foguete Lula de volta ao solo. Só que perdurar não é sinônimo de se perpetuar e não há dor perene nem glória perpétua. O castelo só não ruirá se a crise não cruzar seus muros e a arma para evitar isso é o trabalho árduo, tema inglório em comícios, e não o consumismo desenfreado, fácil de propor, mas difícil de cumprir sem a premissa da poupança e da produtividade.

José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde

O Brasil quer saber quem é essa gente

Augusto Nunes
DEU NO JORNAL DO BRASIL


Essa gente passou da conta, acaba de avisar o presidente da República. Desde a posse, essa gente torceu dia e noite para que não desse certo o governo do torneiro-mecânico que virou estadista. Em seguida, Lula informou que, sempre sonhando com o fracasso do migrante nordestino que desde 2002 se hospeda no Palácio da Alvorada, essa gente deu de acordar e dormir orando para que o país inteiro fosse para o buraco (sifu, diria em português-pra-trabalhador-petista o médico desalmado da metáfora infame). Pois agora essa gente partiu para a radicalização. "Tem gente que vai deitar rezando: ‘Tomara que essa crise pegue o Brasil pra esse Lula se lascar’", revelou o presidente num dos improvisos da safra de dezembro. Assim já é demais.

Tudo bem que um punhado de maus brasileiros torça contra Lula. Até que o Datafolha e o Sensus anunciem que a avaliação da performance do campeão chegou a 100% de ótimo ou bom (talvez 102%, já que a margem de erro é de 2% para cima e 2% para baixo), até que dê traço no Ibope o balaio de gatos pingados que insistem em fazer reparos a uma performance perfeita, Lula tem de aturar invejosos incuráveis e os demais inconformados com o desempenho do maior dos governantes desde a chegada das caravelas.

Tudo bem que essa gente viva exibindo olheiras de galã de cabaré por sonhar acordado com o fiasco daquele que se mostrou mais esperto que Getúlio Vargas, mais sedutor que JK, melhor que todos os antecessores desde a chegada das caravelas, incluídos os três governadores-gerais e os dois imperadores. O que não se pode tolerar é essa gente rezando pelo triunfo da crise econômica. Coisa de traidor da pátria, inimigo da nação, quinta-coluna de quinta categoria. Quem topa até morrer afogado desde que o timoneiro também afunde com o barco não merece o anonimato concedido por Lula.

Quem é essa gente?, perguntam milhões de brasileiros ao detentor do segredo. Só o presidente, pelo jeito, sabe o nome completo, data e local do nascimento, estado civil e signo de cada sócio do clube do contra. Publicamente, só parecem contentes com a crise ministros de Estado, figurões do PT e oficiais da tropa revolucionária bolivariana. Mas não torcem contra Lula, nem contra o país. Torcem contra o imperialismo ianque em particular e o capitalismo em geral, ambos condenados pela crise a morrer por afogamento.

Essa gente também não inclui os banqueiros, todos felizes com os lucros obtidos ou por obter e com o pronto-socorro montado pelo governo. Tampouco os empresários da indústria automobilística, cada vez mais animados com o gentil patrocínio dos cofres federais. Nem os chefões da telefonia, que Lula tem tratado com cuidados de pai. Muito menos os grandes comerciantes, satisfeitos com os sucessivos pedidos do presidente para que a freguesia gaste até o que não tem neste Natal.

Os pobres que ainda esperam a vez de subir para a classe média não enxergam uma só nuvem no céu de brigadeiro. Acham que 2009 será ainda melhor que 2008, que foi ótimo. A velha classe média nem quer ouvir falar em crise. Teme o desemprego, a inflação, a erosão do poder de compra, sobretudo a suspensão das viagens anuais a Buenos Aires. Os reacionários golpistas e os grã-finos paulistas estão concentrados em salvar o que restou de aplicações desastradas. Os suspeitos de sempre desta vez estão fora. Só Lula pode dizer quem é essa gente.

Num dos discursos da semana, o orador infatigável tornou a explicar que a economia brasileira cresceu nos últimos anos porque era ele o presidente, não porque o mundo andou bem, mas a economia brasileira está sujeita a abalos não porque é ele o presidente, mas porque o mundo anda mal. Noutro improviso, evocou de novo a misteriosa entidade: essa gente continua ajoelhada no altar dos santos milagreiros, à espera do desastre tremendo. Se algo der errado, os queixosos que procurem o guichê dessa gente. Não é muita, reiteram as pesquisas. Mas é poderosa. Consegue até transformar marolinha em tsunâmi.

Se descobrissem seu endereço, os brasileiros que pensam tratariam de pedir, no minuto seguinte, um presente de Natal. Em vez de usar tanta força para piorar o Ano-Novo (e castigar tanto culpados quanto inocentes), essa gente poderia melhorar 2009 com um pequeno milagre: obrigar o presidente a parar de dizer tanta bobagem.

11 vezes crise

Fernando Rodrigues
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


BRASÍLIA - Descontadas as preposições, "crise" foi a palavra mais usada por Lula no seu pronunciamento à nação anteontem na TV. O presidente usou o termo 11 vezes.

O objetivo era combater o pessimismo. Estimular os consumidores a irem às compras. Mas se era para inocular ânimo nos telespectadores, talvez o presidente devesse ter evitado pronunciar tantas vezes a palavra maldita "crise".

Lula parece não se preocupar com esse tipo de detalhe. Sua rotina é simples: 1) diz qual deve ser a idéia geral de seu discurso; 2) alguém escreve e 3) ele interpreta lendo diretamente no teleprompter -o equipamento que projeta em um espelho falso, em frente à câmera, o texto da fala presidencial. O petista, aliás, domina a engenhoca de leitura como nenhum de seus antecessores no Planalto. Lula tornou-se um craque nessa arte.

Em várias cerimônias públicas ou até em comícios ao ar livre, sempre que pode, leva o teleprompter a tiracolo. Eis aí um traço de modernidade quase nunca percebido ou reconhecido no presidente: ele lê muito bem seus textos na TV.

Ironia à parte, o clima geral em Brasília neste final de ano é de pânico moderado. Não existe o menor consenso no governo sobre como será exatamente o impacto da desaceleração econômica. Daí a razão de o presidente se esfalfar diariamente para tentar manter um certo otimismo no país.

O pior cenário para Lula parece ser também o mais provável. A carnificina ocorre no primeiro semestre de 2009. Demissões, queda nas vendas e nos níveis salariais. O restante do ano se arrasta. O Natal vem sem brilho. Por fim, 2010 começa com os eleitores querendo mudanças, favorecendo a oposição.

Para impedir a consumação dessa profecia quase auto-realizável, Lula terá ainda muitos discursos a fazer. E será cada vez mais difícil para ele evitar a palavra "crise".

Lula 2.0 tem a voz do velho sindicalista

Elio Gaspari
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

O problema é que ele chama de jogatina "desavergonhada" aquilo que o Copom vê como "mercados"

NA NOITE DE segunda-feira Nosso Guia fez ao mesmo tempo uma prestação de contas do governo Lula 1.0 e o discurso de posse de Lula 2.0. Um mostrou resultados, o outro ofereceu esperança.

Poucos presidentes puderam dizer como ele: "De 2003 para cá, o salário mínimo cresceu em termos reais, 51%, e o emprego também cresceu fortemente. Em 2007, batemos um recorde: 1,812 milhão de novos empregos com carteira assinada. Em 2008, novo recorde: até outubro, 2,148 milhões de empregos. Resultado: a taxa de desemprego caiu de 12,3% em 2003 para 7,6% em outubro de 2008. (...) Mudamos de cara e de astral".

Pode-se avaliar a distância que separa o Lula 1.0 do 2.0 quando se vê que, no mesmo dia em que sua fala foi ao ar, o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, o Caged, informou que em novembro passado perderam-se 41 mil empregos formais. Pior: enquanto Lula falava à tarde num crescimento de 4% para 2009, o Banco Central informava que a previsão de seus sábios baixa a bola para 3,2%.

Deixando-se de lado leviandades verbais como a "marolinha", Lula artilhou-se na estratégia certa de combate à crise: deve-se estimular o consumo e o governo deve ser o indutor do resgate. Se a banca internacional e seus fâmulos nativos não estivessem mudos e quebrados, esmolando na porta do companheiro Obama, essas posições de Nosso Guia seriam vistas como excentricidades populistas. Infelizmente, Lula 2.0 tem amarrada à perna esquerda a bola de ferro de um organismo extra-constitucional chamado Copom. Um dia alguém fará a conta e descobrirá que essa invenção do tucanato causou mais males ao Brasil que as tropas de Solano Lopez. Não contentes com a marca da maior taxa de juros do mundo, conseguiram também a excentricidade de terem sido os únicos a subir a Selic enquanto o resto do mundo reduzia suas taxas ao longo do ano.

Colocando-se acima do poder republicano do presidente (por abdicação do titular) os Copomitas refletem a anarquia financeira da mesma forma que, durante a ditadura, os superpoderes do Alto Comando do Exército refletiam a anarquia militar. Com uma diferença: a anarquia financeira derreteu a economia mundial. Nosso Guia diz muito bem quando fala em jogatina "desavergonhada". O doutor Henrique Meirelles e seus colegas de Copom chamam essa mesma coisa de "mercados".

O discurso de fim de ano de Lula 2.0 teve um grande momento: "É imprescindível que os trabalhadores defendam produção e emprego".

A frase é ambígua, mas na hora em que o presidente da Vale, doutor Roger Agnelli comemorou os 40 anos do AI-5 sugerindo "medidas de exceção" para as relações trabalhistas, nada melhor do que o discreto reaparecimento de um velho líder sindical. Se os trabalhadores não prestarem atenção, o mesmo empresariado que vai ao BNDES pegar o dinheiro do FAT a juros camaradas, haverá de tungar seus direitos trabalhistas. Acabarão retardando o recolhimento de impostos e antecipando a renegociação das horas extras. Agnelli gostaria que o governo passasse a faca na proteção que as leis dão ao trabalho, assim como a Fiesp gostou quando a ditadura passou a faca nas garantias individuais da patuléia. Depois, quando a história aparece com a conta, bota-se toda a culpa nos militares ou na reforma trabalhista do governo Lula.

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