quinta-feira, 26 de março de 2009

Ocupação indígena de uma terra

Mercio Gomes
Antropólogo e ex- presidente da FUNAI

A primeira grande questão trazida pela votação do STF sobre a homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol é a que determina a data da Constituição como marco definitório da ocupação indígena em determinada terra.

O termo "ressalva nº 20" é invenção minha. Ela não existe como tal. Entretanto, uma parte substantiva do debate entre os ministros do STF sobre a criação de novos parâmetros de demarcação de terras indígenas, a partir das ressalvas apresentadas pelo ministro Menezes Direito, se deu em torno da fixação desse data -- 5/10/1988 -- para definir se uma comunidade indígena ocupa tradicional e legitimamente uma determinada terra para fins de reconhecimento legal.

Isto quer dizer que, se um comunidade indígena ou um grupo familiar de índios estivesse ocupando alguma terra antes dessa data e se na data não mais estivesse lá, por força de migração, mudança, expulsão ou esbulho, não teria mais direito sobre ela.

Especificamente, nos últimos momentos da sessão do dia 19 de março, o ministro Lewandowski disse que essa data representaria uma espécie de "fotografia" do momento. O próprio Ayres Britto chamou-a de "chapa radiográfica". Quer dizer, as terras indígenas legitimamente demarcáveis são aqueles em que, naquele dia, tenha havido presença de uma comunidade indígena. Nem antes, nem depois.

Eis como explicitou esse ponto o ministro Ayres Britto em seu pronunciamento original, considerado brilhante por muitos:

80. Passemos, então, e conforme anunciado, a extrair do próprio corpo normativo da nossa Lei Maior o conteúdo positivo de cada processo demarcatório em concreto.

Fazemo-lo, sob os seguintes marcos regulatórios:

I – o marco temporal da ocupação. Aqui, é preciso ver que a nossa Lei Maior trabalhou com data certa: a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) como insubstituível referencial para o reconhecimento, aos índios, “dos direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Terras que tradicionalmente ocupam, atente-se, e não aquelas que venham a ocupar. Tampouco as terras já ocupadas em outras épocas, mas sem continuidade suficiente para alcançar o marco objetivo do dia 5 de outubro de 1988. Marco objetivo que reflete o decidido propósito constitucional de colocar uma pá de cal nas intermináveis discussões sobre qualquer outra referência temporal de ocupação de área indígena.
Mesmo que essa referência estivesse grafada em Constituição anterior. É exprimir: a data de verificação do fato em si da ocupação fundiária é o dia 5 de outubro de 1988, e nenhum outro. Com o que se evita, a um só tempo: a) a fraude da subitânea proliferação de aldeias, inclusive mediante o recrutamento de índios de outras regiões do Brasil, quando não de outros países vizinhos, sob o único propósito de artificializar a expansão dos lindes da demarcação; b) a violência da expulsão de índios para descaracterizar a tradicionalidade da posse das suas terras, à data da vigente Constituição. Numa palavra, o entrar em vigor da nova Lei Fundamental Brasileira é a chapa radiográfica da questão indígena nesse delicado tema da ocupação das terras a demarcar pela União para a posse permanente e usufruto exclusivo dessa ou daquela etnia aborígine.

Com essas palavras, Ayres Britto deu o tom e marcou o compasso dos demais votos. Alguns explicitaram essa data, outros simplesmente acataram-na. Apenas o ministro Joaquim Barbosa não concordou absolutamente com nenhuma ressalva. Mas, sobre a questão da data, não há declaração dele. Talvez até ele esteja de acordo.

Na minha análise, essa "20ª ressalva" é a mais prejudicial de todas. No meu entendimento não há na Constituição nada explícito sobre essa data ser o marco definitório da ocupação tradicional. Ela é simplesmente uma interpretação de Ayres Britto e dos demais ministros do STF. Não obstante, ela foi proferida como tal pelo STF, salvo melhor juízo, e não há modos de contornar essa assertiva interpretativa.

Porém, o fato é que essa assertiva vai inviabilizar qualquer possibilidade de recuperação de terras que foram esbulhadas por outros, seja pela expulsão forçada de índios, como ocorreu com a chegada de fazendeiros e grileiros em diversos estados, seja pela retirada persuasória, como ocorreu pela intermediação do SPI e da Funai, em tempos recentes.

Essa ressalva é portadora intrínseca do vício da anti-historicidade das relações humanas. Ao fixar uma data arbitrária, embora com certo simbolismo, ela reifica a Constituição brasileira. Concede-lhe um status quase divino, o que é inaceitável num regime republicano. Nisso, aliás, o ministro Ayres Britto segue muitos advogados e procuradores (inclusive do Ministério Público Federal) que elaboram argumentações pró-indígenas considerando que a Constituição de 1988 é o primeiro grande documento brasileiro que redimiu os índios de sua situação de inferioridade.

Eis que, pela interpretação dos ministros supremos da Justiça brasileira, essa Constituição vira o algoz, o empacador de qualquer possibilidade de remissão das falhas históricas do indigenismo brasileiro e das injustiças perpetradas contra os índios.

É impressionante notar que esses advogados e procuradores aludidos não atentaram para essa parte do voto de Ayres Britto exatamente porque hipostasiam a Constituição de 1988, desconsideram o valor do Estatuto do Índio, sua historicidade e sua carga de tradicionalidade positiva, e soberbamente diminuem o valor do passado indigenista brasileiro. Especialmente as ações do SPI no tempo de Rondon, na década de 1950, o papel de indigenistas como Orlando Villas-Boas e de antropólogos como Darcy Ribeiro, Eduardo Galvão e Carlos Moreira Neto.

Agora, Inês é morta. Terra demarcável é tão-somente aquela que o índio tenha estado ocupando em outubro de 1988, e de modo efetivo, conforme o voto de Ayres Britto. A revisão dessa ressalva, se puder ser feita, levará anos. Talvez só quando o valor da terra cair novamente e os fazendeiros resolverem se desfazer delas é que os índios que precisam recuperar alguma de suas terras perdidas em épocas pretéritas terão alguma chance.

De cara, todas as tentativas de demarcar terras no Mato Grosso do Sul, seja dos índios Terena, seja dos Guarani, nas terras de Santa Catarina e Paraná estão empacadas. Agora não só por pressão política, mas, pior, por injunção jurídica.

A atual administração da Funai, junto com alguns antropólogos, Ongs neoliberais e o próprio CIMI instilaram irresponsavelmente nos índios daqueles estados a ilusão de que iriam demarcar suas terras como se tivessem uma varinha de condão, por mágica, por vontade. Ignoraram a história do indigenismo brasileiro, o modo e o processo como terras indígenas são demarcadas, a sabedoria que existe nisso. Foram rechaçados pela reação agressiva dos fazendeiros e dos políticos regionais que conseguiram até o consentimento do presidente Lula e da ministra Dilma Roussef para obstar essa pretensão. Levantaram uma sublevação política que, seguramente, foi um dos fatores desses votos tão draconianos, dessas interpretações tão anti-indígenas que vieram do STF.

Que os índios saibam quem os levou à situação atual. Que os antropólogos e indigenistas da atualidade compreendam o a origem, o sentido, a dimensão e o futuro dessa situação. Que os advogados e procuradores ponham a mão na consciência e saiam de sua reificação jurídica e entendam que a história se faz pelo processo social, não por firulas jurídicas. Que o Brasil possa recuperar aquilo que é do índio para o índio. Algum dia.

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