quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Velho inimigo

Miriam Leitão
DEU EM O GLOBO


A América Latina está de novo ameaçada pelo autoritarismo. Nesta ameaça, o golpe em Honduras é apenas um caso. A Argentina está tentando aprovar num Congresso moribundo uma lei de tendência claramente autoritária para controlar os meios de comunicação. Em outros países da região os governantes tentam suprimir pilares importantes da democracia.

Nas minhas férias em Nova York dei uma passadinha no Centro de Estudos Brasileiros na Universidade de Columbia. O economista Tom Trebat me perguntou: — A censura está voltando no Brasil? Em seguida falou da sua preocupação com a suspensão judicial da publicação de reportagem no “Estadão”.

Ele sabe a diferença do que está acontecendo em outros países, mas acha que a região está passando por um momento estranho.

O caso da Argentina é preocupante. Conversei sobre isso com o jornalista Ariel Palácios no prêmio Comuniquese. A manobra do casal Kirchner é aprovar a Lei dos Serviços Audiovisuais no Senado antes de dezembro. Na Câmara já foi aprovada. A lei é ruim e essa pressa é pior. Na Argentina, há uma distância de seis meses entre eleição do Congresso e sua posse. A eleição já aconteceu, o governo perdeu a maioria, muita gente não teve o mandato confirmado. Ou seja, deputados e senadores já quase sem mandato vão decidir um assunto dessa relevância.

A lei impede a formação de redes nacionais de TV, mas abre exceções para o governo, os sindicatos e a Igreja Católica.

É esse monstrengo que o governo que tem baixa popularidade tenta aprovar num Congresso com os dias contados para acabar. Se houvesse alguma dúvida sobre o caráter autoritário das intenções dos Kirchner bastaria lembrar a tentativa de intimidação do jornal “Clarín”.

Na Venezuela, inspirador dos governos neopopulistas, o projeto de desmonte da imprensa já está bem mais adiantado; no Equador o caminho traçado é o mesmo.

O princípio da alternância do poder está demolido na Venezuela e sob ameaça na Colômbia, Bolívia e Equador.

Foi uma tentativa do presidente Manuel Zelaya de ameaçar esse princípio que detonou o desmoronamento institucional de Honduras.

Nada justifica os atos dos atuais governantes, mas o que está ocorrendo tem que ser visto pelos dois lados: os neopopulistas avançam sobre as instituições, solapando a democracia, e a direita reage à velha moda.

Os golpes, como o de Honduras, têm uma dinâmica conhecida.

Ao tomarem o poder, os ditadores usam pretextos.

No Brasil foi o de que o presidente João Goulart incitara os militares de baixa patente e planejava instituir uma república sindicalista.

Em Honduras foi a tentativa de Zelaya de fazer uma consulta popular inconstitucional.

A declaração do governante de Honduras ontem parecia saída do túnel do tempo. “Zelaya foi deposto por ser esquerdista”, disse.

Aqui, possíveis excessos e erros de Jango seriam corrigidos pela eleição presidencial prevista para 1965. Lá as eleições já estavam marcadas para novembro.

Normalmente os golpes têm apoio em vários setores da sociedade, do contrário não ocorreriam e isto também não os legitima. Em Honduras empresários, Igreja e uma parte da sociedade apoiam o governo. No Brasil, em 64, os militares tiveram o apoio da classe média e de vários outros setores. Ocorre depois uma fase em que os golpes escalam. Aconteceu no Brasil no AI-5. Acaba de acontecer em Honduras esta semana. O que levou 21 anos para acabar no Brasil pode acabar em pouco tempo em Honduras, se acontecer o cenário benigno.

Mas o episódio, seja qual for o desfecho, traz lições preciosas para o Brasil. A diplomacia brasileira tem sido tão criticada internamente porque o caso Honduras exibiu uma síntese dos defeitos da política externa dos últimos anos. O Brasil quebrou o princípio da não ingerência, deixouse liderar por Hugo Chávez, improvisou em assunto sério, exibiu um julgamento com dois pesos e duas medidas e fez pouco da inteligência dos brasileiros.

É difícil escolher qual das duas versões é mais desonrosa para a mais profissional diplomacia da América Latina. A oficial, de que o país nada sabia; ou a que parece mais óbvia que é ter concordado com o plano de Chávez.

A política de não-intervenção em assuntos internos não significa um simples lavar as mãos. Há muito tempo evoluiu para uma defesa de princípios. É correto o Brasil fazer o que fez no início: não reconhecer o governo resultado da quebra da ordem institucional, manter o embaixador no Brasil, esfriar as relações, defender nos organismos internacionais a volta do presidente eleito e cortar programas de ajuda. Nada disso é intervenção, mas ao mesmo tempo não é lavar as mãos.

O erro foi entrar na refrega política interna deixando a embaixada virar centro de agitação partidária. O mais sensato seria ter feito esforços com outros países para garantir uma eleição de um novo governo que unisse os hondurenhos.

A indignação do governo Lula com o governo Micheletti é justa. Só não é coerente com o silêncio que o Brasil fez diante das sucessivas investidas contra os princípios democráticos.

Na América Latina todo o cuidado é pouco. Esta é uma região que já errou demais.

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