sábado, 7 de novembro de 2009

Merval Pereira:: Protagonistas e coadjuvantes

DEU EM O GLOBO

Mais uma vez a compulsão ao golpismo, que parece atávica nas lideranças políticas de Honduras, pode colocar por terra a possibilidade de um acordo que leve o país a ter as eleições presidenciais que podem tirá-lo desta crise, sem permitir que mais um golpe bolivariano se consuma na América Latina.

A decisão do presidente “de fato”, Roberto Micheletti, de continuar à frente do governo de coalizão nacional montado por pressão dos Estados Unidos pode invalidar essa iniciativa, dando pretexto ao presidente deposto, Manuel Zelaya, de alegar que está sendo vítima de novo golpe, quando nem mesmo o primeiro houve.

Naquela ocasião, depois de querer fazer um plebiscito que abriria caminho para a tentativa de mudar uma cláusula pétrea da Constituição hondurenha que proíbe a reeleição, Zelaya foi deposto dentro das normas legais.

Depois de um longo processo, a Suprema Corte acolheu a denúncia formulada pelo Ministério Público, decretando a prisão preventiva do presidente da República.

Com a vacância do cargo, este foi preenchido pelo presidente do Congresso Nacional, Roberto Micheletti, de acordo com o disposto no artigo 242 da Constituição.

Uma análise dos procedimentos mostra que houve respeito ao princípio do devido processo legal, pelo menos quanto ao seu conteúdo mínimo. Mas, como se sabe, Honduras é o país inspirador do termo “República de Bananas”, cunhado pelo escritor americano O. Henry, pseudônimo de William Sydney Porter. No livro de contos curtos “Cabbages and kings” (Repolhos e reis), de 1904, Porter usou pela primeira vez a expressão, que define um país atrasado e dominado por governos corruptos e ditatoriais, geralmente na América Central.

O principal produto desses países, a banana, era explorado pela famosa United Fruit Company, que teve um histórico de intromissões naquela região, especialmente Honduras e Guatemala, para financiar governos que beneficiassem seus interesses econômicos, sempre com apoio do governo dos Estados Unidos.

A cláusula pétre a d a Constituição de 1982 de Honduras tinha justamente o objetivo de cortar pela raiz a possibilidade de permanência no poder de um presidente, pondo fim à tradição caudilhesca no país.

Mas a tal “compulsão ao golpismo” falou mais alto e, em vez de prenderem e julgarem Manuel Zelaya, puseramno em um avião de madrugada, ainda vestindo pijamas, e mandaram-no para o exílio forçado, de onde começou sua campanha pela volta, apoiado pelo esquema político de Hugo Chávez, que incluiu até mesmo o governo brasileiro.

Agora, em vez de renunciar, como se comprometera, Micheletti pretende permanecer à frente do governo de unidade nacional, formado sem a presença de seguidores de Zelaya, que rompeu o acordo firmado dias antes.

Acontece que Zelaya contava com sua volta à Presidência à frente do governo de unidade, circunstância que não era obrigatória pelo acordo, mas estava implícita.

A resistência do Congresso em decidir imediatamente a favor do presidente deposto só mostra que ele não tem apoio político, e que seu suposto apoio popular é mais fraco do que ele procurava fazer crer.

Thomas Shannon, futuro embaixador no Brasil e subsecretário de Estado dos Estados Unidos, que costurou o acordo para a formação do governo de unidade nacional, deixou claro, em diversas declarações, que o regresso de Zelaya ao poder e o governo de unidade são coisas distintas, e que uma não depende da outra.

Segundo a visão do novo governo dos Estados Unidos, “nenhum governo de fora” pode decidir o que é melhor para Honduras, e a solução definitiva, inclusive sobre a volta de Zelaya, deverá ser dada pelos organismos constitucionais hondurenhos, ou seja, o Congresso Nacional, o Supremo, a Justiça de Honduras.

O fato de Manuel Zelaya ter desistido de indicar integrantes para o governo de unidade nacional porque o Congresso não decidira sobre sua volta ao poder não desautoriza o governo que foi formado, mas a permanência de Micheletti pode dar pretexto a que Zelaya fale novamente em golpismo.

Não há qualquer indicação, no entanto, de que o governo dos Estados Unidos vá aderir à proposta de Zelaya e do movimento bolivariano de não reconhecer a eleição programada para o fim deste mês.

Na verdade, o desenvolver da crise enfraqueceu Zelaya e os governos que o sustentavam na tentativa canhestra de regressar ao governo nos braços do povo.

Faltaram braços para tirálo do quase autocativeiro em que se meteu na embaixada brasileira, cujo governo perdeu a condição de negociador neutro ao se deixar levar pela estratégia chavista de criar um fato consumado com o retorno clandestino de Zelaya ao país.

O único país que tem importância na região, além do México — que, espertamente, está desaparecido das negociações desde o primeiro momento —, são os Estados Unidos, que, depois de estar junto com Venezuela e Brasil na pressão pelo retorno de Zelaya, convenceu-se das peculiaridades da situação e decidiu entrar na negociação para viabilizar as eleições presidenciais, e não para exigir a volta de um golpista ao poder.

Mesmo que voltasse — e ainda pode ser que volte ao governo até o final de seu mandato —, pelo acordo Zelaya teria perdido qualquer poder que pudesse levá-lo novamente a contestar a Constituição de seu país.

Mais importante do que qualquer solução política negociada é a manutenção das regras democráticas, que permitirão ao futuro governo a ser eleito comandar o país para longe das falsas divisões.

Por isso, o papel de Roberto Micheletti não pode ser o de protagonista, mas o de coadjuvante da democracia.

Que, se for preciso, deve sair de cena para que a eleição seja realizada sob um clima insuspeito.

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