domingo, 13 de dezembro de 2009

J. A. Guilhon Albuquerque:: Protagonismo inconsequente

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Pouquíssimos países, como o Brasil, terão passado por mudanças tão rápidas e radicais em seu perfil externo nos últimos 20 anos. Acossado pelo pesadelo da dívida externa e pela inflação descontrolada, nosso país era, até meados dos anos 80, um pária na comunidade internacional, em dívida com a democracia, os direitos humanos, a proteção ambiental, os direitos dos povos e das minorias. Não era considerado um país confiável.

Hoje tem assento obrigatório em qualquer fórum em que as questões mais relevantes para o destino do planeta sejam discutidas. E esse processo, construído ao longo de quatro governos, sofreu uma aceleração significativa no governo Lula, é justo que se anote. O número, a diversidade e a relevância das oportunidades que se abrem diante do Brasil - políticas, econômicas, morais - são difíceis de estimar, mas não são infinitas nem à prova de retrocesso.

Todo exercício de poder tem custo. O exercício de poder no contexto internacional tem sempre um custo elevado e a liderança internacional tem um custo diretamente proporcional ao preço de seus objetivos. Por isso é indispensável medir a necessidade e a viabilidade das ações de política externa, não pelo alto perfil que elas podem emprestar ao País, muito menos a um ator político, mas por sua posição na hierarquia dos interesses vitais da Nação.

Minha diferença com relação à política externa do governo Lula não é porque ela seja "de esquerda" - não é -, ou porque seja audaciosa - não é -, ou porque seja protagônica, o que pode ser ocasionalmente conveniente, desde que não vire obsessão. A política externa do atual governo é conceitualmente pobre - o que dificulta o diagnóstico correto dos desafios e oportunidades do contexto internacional. É operacionalmente chã - o que a leva a colocar todos os objetivos e atores no mesmo saco. É economicamente irracional porque não leva em conta nenhuma noção de custo e imagina que o capital de prestígio e influência de Lula, sua universal moeda de troca, seja inesgotável.

Tudo isso converge na noção, que os áulicos não cessam de confirmar no presidente, de que, quanto maior o número de ações protagônicas de política externa, mais aumenta o capital de "liderança global" de Lula, e quanto mais oportunidades de exibir o presidente em alto perfil, maior será o poder internacional do País, e maiores os benefícios para o Brasil. Haverá exemplo melhor em contrário do que o fiasco daquela reunião de países amazônicos, em que tivemos o dissabor de ver esse expoente do reacionarismo europeu, Sarkozy, pontificar sobre nosso maior patrimônio natural, como único interlocutor relevante de nosso presidente? Será que os estrategistas do Planalto e do Itamaraty aprenderão a lição? Não é o que indica seu retrospecto.

Primeiro, porque não sabem distinguir divergência de traição, e a tratam com arrogância. Em sua defesa da visita ao Brasil do presidente Ahmadinejad, do Irã (Folha de S.Paulo, 26/11), o assessor internacional do presidente Lula, Marco Aurélio Garcia, dedica seis de uma dezena de parágrafos não a apresentar seus argumentos ou refutar os contrários, mas a ofender aqueles que divergem, segundo ele, "subservientes", "vira-latas", "eleitoreiros", pescadores de "águas turvas". Isso tudo porque algumas vozes independentes se levantaram para manifestar sua divergência a que o governo brasileiro recebesse, com pompa e circunstância, o representante de um governo totalitário, suspeito de desenvolver um programa nuclear com objetivos bélicos, ele mesmo envolvido em maciça fraude eleitoral e responsável por cruel massacre de seus opositores.

Segundo, porque os parcos argumentos do assessor em prol dos lucros da visita do líder do regime xiita se resumem a apresentar uma lista de governantes que teriam demonstrado apreço ou manifestado altas expectativas com relação às iniciativas externas de Lula. Como se atender às expectativas dos poderosos bastasse para legitimar o papel de um chefe de Estado. Se não é subserviência, é um argumento obsequioso. Mas nem sequer verdadeiro: enquanto com uma mão Lula afiançou os planos nucleares do regime xiita desde que "dentro dos compromissos internacionais", com a outra determinou que o Brasil se abstivesse de aprovar o voto de censura da Agência Internacional de Energia Atômica contra violações de Teerã, decisão endossada até mesmo pela Rússia e pela China. Alentado por esse apoio sem contrapartida, no dia seguinte Teerã desafiou o Conselho de Segurança das Nações Unidas, anunciando uma expansão sem precedentes de seu programa nuclear, com a construção de dez novas refinarias de urânio.

Lula foi mais longe em visita a Berlim, insurgindo-se contra nossos principais parceiros estratégicos: desqualificou quatro anos de negociações entre o sexteto (Estados Unidos, Reino Unido, França, Rússia, China e Alemanha) e o Irã, com vista a limitar as ambições nucleares daquele país, e negou legitimidade à Rússia e aos Estados Unidos, para exigir que qualquer país renuncie a seus objetivos bélicos, já que não promoveram o desarmamento.

Quem governa o Brasil há tantos anos deveria saber que o protagonismo externo pode ser inútil e nocivo, porque oneroso. O Mercosul, o Grupo do Rio, a Unasul e agora também a OEA e o Pacto Amazônico vêm sofrendo, um depois do outro, o desgaste e as divisões decorrentes da obsessão de Lula pela liderança e sua inclinação para o maniqueísmo. Desde a fundação da ONU o Brasil vem sendo reconduzido, regularmente, ao Conselho de Segurança, no qual goza de merecido prestígio pela qualidade de sua participação. Que isso não se ponha também a perder por um ativismo inconsequente, a serviço de um indisfarçado culto à personalidade.

J. A. Guilhon Albuquerque é professor titular de Relações Internacionais da FEA-USP

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