segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Entrevista – Luís Werneck Vianna

Por Andrei Koerner e Giselle Citadino

Entrevista concedida por Luiz Jorge Werneck Vianna ao Boletim da Associação Brasileira de Ciência Política. Professor titular do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), coordena o Centro de Estudos Direito e Sociedade (CEDES) daquela instituição e integra o Conselho Consultivo do Departamento de Pesquisas Judiciárias, do Conselho Nacional de Justiça. Sua vida acadêmica tem sido dedicada a uma temática múltipla, que inclui democracia, judicialização da política e das relações sociais, sindicalismo, corporativismo, intelectuais brasileiros e pensamento social brasileiro.

Como o senhor chegou ao doutorado na USP? Gostaríamos de ouvi-lo sobre sua trajetória universitária, os caminhos de sua dupla formação, em Direito e Ciências
Sociais.

Sou como todos da minha geração. A primeira marca, para quem nasceu em 1938, é ter vindo ao mundo em meio a um conflito mundial daquelas proporções. Começo a perceber o mundo de forma consciente e que ainda tinha ruídos da Segunda Guerra. Havia blecaute, e, na minha vizinhança, uma pessoa, provavelmente de origem alemã, que ouvia em volume alto entrevistas radiofônicas alemãs. Era um ambiente em que havia presente este elemento de suspeita, de risco, de guerra. Além desta situação houve também o processo de democratização do país em 1945. Tudo isso, portanto fez parte da minha vida. Eu diria que, primeiro, esse foi um acontecimento que exerceu influência sobre mim, e que venho ao mundo muito orientado pela política.
Há também a política de Getúlio, e até mesmo a própria literatura infantil da época,que era altamente politizada, como Monteiro Lobato, de quem eu era um leitor absolutamente voraz. São dele alguns valores, dos sistemas de orientação que foram tomando forma em mim, como o horror à burocracia, ao Estado, àquilo que nos impede de entrar no território da liberdade. E um pouco mais à frente, o tema do petróleo e o segundo governo de Getúlio Vargas vão me encontrar adolescente. Estes são fatos que marcaram muito a minha geração.
Eu era de Ipanema, bairro de classe média para alta, dependendo das ruas e dos lugares,embora minha família certamente não fosse de classe média alta. Nós tínhamos certas dificuldades financeiras, meus pais eram separados, e minha mãe teve que enfrentar a vida sozinha. Mas Ipanema era sobre tudo um lugar anti-getulista, militantemente anti-getulista.
Este era o sentimento daquela população e eu adolescente, com essa inclinação natural para a política, que não vinha de fato da minha família, já que na minha casa ninguém era orientado tão fortemente. Meu pai havia sido militante do Partido Comunista, mas eu não vivia com ele.
Lembro-me do suicídio do Vargas, que foi um divisor. Eu me recordo exatamente a hora que liguei o rádio e comecei a ouvir a carta testamento deixada por ele e como aquilo me deixou marcas profundas. Conversando, mais tarde, com colegas, descobri que esta experiência foi a mesma, todos eles sentiram que alguma coisa tinha mudado em suas vidas a partir daquele acontecimento. Então, por um lado, tinha esta prática de ficar colado no rádio ouvindo o noticiário político; por outro havia as leituras, erráticas, sobretudo de ficção.
Era uma literatura libertária que exerceu enorme influência sobre mim. Autores que ninguém mais lê, mas que tinham grande expressão na época, como Erich Maria Remarque, Roger Martin du Gard, com suas histórias da guerra, com seus heróis libertários e opiniões anti-guerra. O herói do romance-fleuve, Les Thibaud, de Roger Martin du Gard, morre jogando panfletos pacifistas nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Eu andava com essa fabulação na cabeça. E também de outras leituras. Eu lia muito também os autores russos, eu tinha uma paixão enorme pela literatura russa, principalmente por Dostoievski. Ele, e Monteiro Lobato, foram as duas traves da minha formação, ele foi para a minha adolescência o que Lobato foi para a minha infância. Depois de adulto não li mais Dostoievski, eu o reli há pouco tempo, mas não gostei tanto. Na época ele me punha num mundo que eu sentia como meu. Essa identidade não era apenas pessoal. Havia uma forte proximidade da intelligentsia brasileira com a literatura russa, como em Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz.
Essas, mais algumas outras leituras e o clima da época me fizeram um jovem romântico, intelectual de esquerda e, logo, de adesão comunista. Eu me tornei comunista antes mesmo de conhecer o partido ou qualquer comunista, por uma “partenogênese” pelos livros e pela cultura da época, a libertação do nazi-fascismo, e todas aquelas informações difusas que existiam.

Na época o consenso internacional da esquerda era em torno do Partido Comunista?

Era, mas na coleção de adolescentes a que eu pertencia, meu comportamento era absolutamente atípico A atipicidade se manifestou quando o colégio que eu estudava se recusou a renovar minha matricula. Ao indagar sobre os motivos, foi-me dito que os pais dos meus colegas haviam se reunido e achado que eu era uma influência negativa para seus filhos. Eles não gostariam que seus filhos convivessem comigo. Fui lá contestar, com o diretor do colégio, suas razões, e ele me indagou: “você é ou não comunista?”. Eu disse que era, na verdade eu não era de fato, pois eu tinha 15 anos, mas era. Não conhecia muito e depois desse episódio comecei a procurar a conhecer, conheci e acabei me vinculando. Fiz minha história pública no interior do Partido Comunista, que foi a minha grande universidade, a universidade de fato, a que me forjou como intelectual.

Com quantos anos o senhor foi para o Partido Comunista?

Eu fui mais tarde, com 18, 19 anos porque ele não existia, principalmente em Ipanema.

Com 17, 18 anos o senhor já estava na Universidade?

Não, eu entrei um pouco depois, com 19 anos. Eu fiz o CPOR... Eu cheguei à academia par défaut, porque não havia lugar na vida pública para a minha inscrição. Eu não chegaria à academia por vocação.

Então a militância política antecede o compromisso acadêmico?

Antecede. Eu entrei na vida acadêmica porque tinha que ter uma profissão e escolhi Direito por uma razão muito simples: porque pertencia ao gênero masculino. Eu queria era fazer Letras, mas na época essa era uma carreira feminina. Eu precisava enfrentar a vida. Precisava de uma profissão que me garantisse um lugar afirmativo no mundo. Fui fazer Direito para ter uma profissão e passei a exercê-la muito precocemente.

O senhor se formou na Faculdade Nacional de Direito?

Não, eu me formei na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

O senhor exerceu a profissão em qual área?

Advocacia na área penal. No primeiro ano da faculdade, comecei como estagiário em um escritório, onde fiquei os cinco anos de formação, o que me desencantou com o Direito, especialmente nessa área. Nessa época, se praticava o Direito com a legenda de que “advocacia é talento”, uma profissão “poética”, “boemia”. Eram pessoas que rondavam a noite. Cheguei a ter alguma circulação entre eles, eram homens cultos e talentosos, sem dúvida. Mas era uma atividade artesanal, narcísica, especialmente porque o Direito penal era basicamente júri. Eu fiz muitos júris, desde quando era estudante, como estagiário. Naquela época havia uma fase na carreira, a partir do quarto ano, em que você era “solicitador”, e podíamos participar de uma série de atos. Mas enfim, logo que saí do escritório onde trabalhei na minha graduação, montei outro, com uns colegas. Então comecei a me ver, durante as tardes, lendo sobre temas sociais, interpretações do Brasil, que eram os temas da época. E não trabalhando.

E quando o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) entra na sua vida?

O ISEB exerceu grande influência sobre minha geração. Eu acabei indo estudar lá. O ISEB se constitui na época do Juscelino Kubitschek, em que o Ministro da Educação era Cândido Mota Filho, um ex-integralista. Era a realização de um velho ideal dos integralistas, que era derivado de uma idéia de Alberto Torres, de mudar o país pela educação, por uma intelligentsia de escol que iria descobrir os caminhos.

Qual era a sua percepção do meio jurídico, como estudante e depois profissional do Direito, e comunista? Como a faculdade e os profissionais do Direito viam o pensamento de esquerda e a militância?

Não havia muita, não. Eu tinha colegas que compartilhavam comigo um apoio, mas era uma seção do partido.

Havia alguma influência ou referência intelectual?

Não, a grande referência intelectual da minha faculdade era um homem pelo qual eu tinha profunda distância; que era Roberto Lyra, cujas aulas sempre terminavam em ovações.
Entretanto, eu não gostava de seu estilo e do seu tipo de análise, era um positivista.Mas eu me desencantei com o Direito e fiz fui fazer Ciências Sociais no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mas voltemos ao ISEB...
O ISEB foi decisivo. Eu tive dois encontros intelectuais muito significativos: um foi com o ISEB. O outro, com o Centro Popular de Cultura (CPC). No ISEB, fomos motivados a estudar o Brasil e a confiar na história brasileira, nas suas singularidades e possibilidades. As aulas eram numa sala grande, na sede da rua das Palmeiras. Mas se você não chegasse na hora, tinha que ouvir a aula no jardim, transmitida por alto-falantes. Os estudantes assistiam aquelas aulas num clima de unção, eram aulas dadas por Werneck Sodré, Vieira Pinto. Mas o Hélio Jaguaribe, o Guerreiro Ramos e o Cândido Mendes já não estavam mais no ISEB, quando eu fiz o curso, em 1961. Estavam ainda lá o Roland Corbisier e o Cândido Motta. Havia um projeto de intelligentsia cultivada para mudar o Brasil.
Com o CPC, quando eu os conheci, eles estavam começando as atividades, vi a
possibilidade de traduzir para as coisas concretas, práticas e vitais, todo o sistema de orientação e de valores que eu tinha na cabeça. Tínhamos o espaço, o dinheiro e a juventude. Em três anos, o CPC fez uma revolução no Brasil. Fomos criando núcleos por todo o país, eu era um dos responsáveis pela difusão do projeto do CPC. Criei núcleos em várias faculdades e sindicatos, como o Sindicato dos Metalúrgicos e o dos Têxteis. E também o projeto de alfabetização para as favelas. Naquela época favela era um lugar inteiramente pacificado, não havia domínio de crime, e havia organizações de esquerda atuando lá. O Partido Comunista tinha bases nas favelas, nós chegávamos com toda uma
articulação partidária. A igreja também chegava, através da AP. Éramos os “rapazes do PC” e as “moças da AP”, elas eram mais numerosas que nós, e muito ativas, e elas continuaram atuando junto com a teologia da libertação, como quadros da Igreja católica. A mais célebre era a Ana Guerra, ela era a referência, mas eu não sei onde ela se encontra hoje. Enfim, a nossa geração, que tinha uma história recém-saída da Segunda Guerra, do getulismo, das lutas nacionais e das reformas, foi talhada em 1964.

Mas e antes dos acontecimentos de 1964? O senhor possui uma trajetória marcada por aliar teoria e prática. Essa ação acadêmica e a intervenção política no partido. Esse duplo compromisso era uma característica dos intelectuais da sua época?

Não. Acho que na minha geração esse perfil começou a se instituir, no CPC por exemplo.

Era uma aposta partidária ou iniciativa mais ampla?

Não vinha do partido, mas convergia com ele. Minha geração estabeleceu uma relação curiosa com o partido. Nós achávamos o partido fraco, pois em vez do partido exercer uma ação tutelar, orientadora, sobre nós, ele era o lugar que nós confiávamos como a nossa representação, pela sua história e pela sua luta, mas não confiávamos como orientador político. A orientação política era nossa. Essa era uma marca da minha geração, de outros colegas, é só pensar em alguém muito representativo, como o Oduvaldo Vianna Filho.

Qual literatura lhe encantou no início da sua formação em Ciências Sociais?

A gente lia muito Celso Furtado, Nelson Werneck Sodré, Rui Facó, Vieira Pinto, que foi a grande referência intelectual da época. Embora nós pudéssemos discordar totalmente dele, dada a sua perspectiva intelectual “idealista”, como dizíamos na época. Enfim, era uma literatura sobre Brasil.

E Marx?

De Marx não se lia “O Capital”. Mas o “18 Brumário”, “Luta de Classes na França”, “O Manifesto Comunista”.

Quando o senhor diz que o partido foi sua verdadeira universidade, está falando no sentido figurado ou no sentido de formação de leituras?

De leituras, não. O partido era o lugar de um seminário permanente, no sentido de que se procurava traduzir, em práticas, aquilo que se pensava. O tempo todo, nós procurávamos identificar os caminhos para a realização daqueles objetivos.

No sentido de uma influência intelectual?

Não. O único que talvez começou a exercer certa influência intelectual sobre mim foi o Mario Alves, que era uma pessoa muito preparada, um estudioso, mas isso logo foi interrompido porque ele passou a ter uma adesão muito esquerdista e isso foi isolando-o, até que ele sai do partido para formar o PCBr e vai morrer na tortura, de maneira atroz. Ele era uma pessoa muito particular, vivia estudando, e procurava nos mobilizar muito para o estudo. Não era a alta cultura, que, aliás, era vista como uma coisa “burguesa”. É só ver a ópera, “O Auto dos 99%” do CPC da UNE, que satiriza a alta cultura da época, a psicanálise, a arquitetura (“A arquitetura? A arquitetura é uma loucura!”). É uma obra muito curiosa.
Essa busca por uma inserção na cultura popular é relacionada com a teoria de Gramsci.

Nesse momento o senhor já tinha lido Gramsci?

Não. Gramsci não tinha chegado, ele chega a nós após o golpe. A primeira vez que eu ouvi falar dele foi de um intelectual do partido, negro e favelado, cujo nome era “Edgar”, que viveu anos na clandestinidade e começou a usar umas explicações “estranhas”, baseadas na leitura de Gramsci. Ele frequentemente trazia outras obras, como o Ocaso do Império, do Oliveira Vianna e insistia para que lêssemos.

A leitura daqueles considerados os clássicos brasileiros também começou nessa época?

Não, fomos ler tudo isso mais tarde. Fomos repaginar depois de 1964, especialmente aqueles que considerávamos na mesma posição.

Então, pensar o golpe 1964 representa um momento crucial?

É. Nós ficamos aturdidos, sem entender, vagando, procurando uns aos outros, tentando formular explicações, compulsivamente. O mundo caiu, inteiro, e a questão era como viver neste mundo que apareceu e nós não sabíamos explicar o que tinha acontecido. Sobretudo nós não tínhamos ainda lucidez, coragem, capacidade de análise para dizer que fomos nós que armamos aquele desastre; este desastre não veio sem nós. Isso demorou, mas é neste processo de descoberta dos nossos erros, que eu faço minha identidade intelectual, como filho de mim e não das minhas circunstâncias, eu nasci aí. Basicamente, a minha data de nascimento está na reunião em que, 40 anos atrás, eu disse: “vem um novo Ato e é necessário tomar providências para nos defendermos desse plano”. Dias depois veio o AI-5.
Nesse momento, eu havia entendido a trama do que estava acontecendo. Ficava claro que tínhamos que começar a interpretar, de verdade, o que tinha acontecido em 1960. No meu caso, isso me levou a uma outra missão, a de interpretar 1930. Os dois momentos, o do primeiro Estado Novo e este “novo” Estado Novo, que estava ali. Esta necessidade acudiu a intelligentsia, de liberais a marxistas. Foi o caso do Simon Schwartzmann, no “Bases do Autoritarismo Brasileiro”, do Raymundo Faoro, no segundo momento da sua obra e da Elisa Reis. O problema não era entender as circunstâncias de 1964, mas compreender as circunstâncias da formação do capitalismo autoritário no Brasil. Vai se estabelecer uma grande clivagem onde uns vão identificar a gênese dessa questão no Estado, como Faoro e Simon, e outros que vão olhar mais e melhor para o tema da sociedade, em particular, o tema agrário – como a Elisa, eu, Otávio Velho e Luciano Martins. Este é o momento da plena conversão daquele político mais ligado à prática da vida para o intelectual orgânico. Mas onde a atividade intelectual se constitui como um instrumento político mais eficaz. Eu fiz a minha tese escondido...

O senhor chegou a ir para o Chile?

Vou, volto e sou preso. Da prisão vou para São Paulo. Lá, me vinculo ao doutoramento da USP e depois fui ser professor na Unicamp, em 1974, 1975. Então sou surpreendido com a repressão de 1974 em São Paulo, que pegou todo mundo. Eu tive sorte, porque não sei se eles iam me matar. Na primeira vez, fui preso uma semana depois de eles terem matado o Stuart Angel. Foi minha sorte, pois eu não sabia que o Stuart estava preso, não sabia quem era ele e nem que tinha falecido, mas percebi um clima de nervosismo, especialmente quando eles estavam “mexendo” comigo e desconfiaram que estava passando mal. Notei muita preocupação. Se eu tivesse sido preso pela segunda vez, não sei o que ia se passar comigo. O fato é que tive que correr com as primeiras sete páginas da minha tese, com os meus livros numa sacola de feira.
Neste momento fui acolhido na casa do Paulo Pontes, que naquele momento estava redigindo a peça Gota d´Água. Ele tinha construído no apartamento dele um quarto falso especialmente para receber pessoas neste tipo de situação. E eu comecei a trabalhar. Eu pensava que eles queriam acabar comigo, pois de certo modo tinha reconstruído minha vida, estava dando aula em Campinas. Mas decidi “eles não podem acabar comigo”, eles não vão conseguir. Naquele momento, em 1975, eu achava que a ditadura iria durar muito tempo, “até o fim do milênio”. Em fevereiro de 1976 defendi minha tese.

Mas como o senhor defendeu? Estava escondido? Teve alguma garantia?

Não, depois da morte do Herzog, em 1975, a coisa mudou. E o Francisco Weffort, que era meu orientador, montou uma banca de defesa com Celso Lafer e outros intelectuais liberais, para mostrar que não era uma banca de esquerda. É claro que, por não ser uma banca de esquerda, a coisa complicou na hora da argüição.

Depois de 1976 o senhor não teve mais de ficar na clandestinidade?

Não. Fui, a partir de então, recuperando a vida. E o país começou a distensão.

Na sua tese já existe a necessidade de compreender as transformações de longa duração, ou seja, esta constituição de um corporativismo, da regulação autoritária do mercado de trabalho? O conceito de revolução passiva o senhor já utiliza plenamente, não é mesmo?

Sim, começamos a captar o argumento do Gramsci no final dos anos 60. A primeira leitura do Gramsci era um deslumbramento. Conforme ia lendo, ia se concordando. Foi uma persuasão imediata.

Ao longo de 25 anos existe um processo de reconversão da maneira como o senhor vê a revolução passiva. Em que momento o senhor percebe a transformação molecular, vinculada ao processo da democratização das instituições políticas?

Para mim era a mesma coisa. No curso da luta pela abertura havia duas estratégias muito bem definidas. Primeiro, era a da auto-reforma do antigo regime. A outra era a de uma reforma de verdade, era fazer com que o processo, que estava em curso, significasse uma erosão, um desmonte, uma derruição da ordem autoritária. Para isso o Gramsci servia como uma luva, era o tema da “sociedade civil”, de “agências privadas de hegemonia”. Era a consciência da importância da luta eleitoral, institucional, a valorização do MDB, o significado que foi a vitória eleitoral do Quércia, nas eleições de 1974, disputada com Carvalho Pinto, em São Paulo. E também havia a nossa contraposição com a esquerda que defendia a luta armada. O nosso projeto era “o povo organizado derrota a ditadura”, não era a derrubada, mas a derrota da ditadura, de clara inspiração gramsciana.
Conquistar boas instituições era dar passagem a este processo societal que germinava, era ele que devia passar, era ele que ia mudar, transformar. Nossa grande expectativa residia na democracia representativa e nas instituições político-liberais, que nós íamos encher de vida com a mobilização latitudinária que tinha ocorrido nas décadas recentes, culminando com as “Diretas Já”. Além disso, já estava presente o sindicalismo forte, como o do ABC – houve greves dos trabalhadores agrícolas em Itanhaém, no interior de São Paulo, na construção civil em Belo Horizonte e em Brasília. Era um despertar, toda uma energia que era necessária levar para o interior da esfera pública, uma estratégia habermasiana de adensar e fazer avançar.
Há um elemento de revolução passiva nessa concepção habermasiana da soberania como procedimento. Contudo, fomos surpreendidos pela solução que o constituinte deu, onde ele deixou tudo isso presente, fortalecido, mas abriu outra alternativa, que foi a da via judicial – um espaço publico que o país não conhecia. E mesmo as lideranças políticas, como Ulysses Guimarães e Tancredo não ambicionavam.

Qual era sua atuação neste momento de transição para a Constituinte? O senhor estava no partido, atuava como jornalista?

Eu atuava como publicista. Tínhamos uma revista que procurava ser um lugar de vocalização dessa esquerda gramsciana, que éramos nós e havia sido derrotada. Mas isso leva a um tema paradoxal que merece que a gente se estanque e reflita. Por que a formação política que foi responsável pela estratégia vencedora – que foi a do Partido Comunista Brasileiro contra o regime militar – derrui? Essa é a questão que nós estávamos vivendo. Participamos juntos nesse processo, construindo esta política, a luta pelas liberdades, a afirmação do processo eleitoral, a luta política e não a luta militar, o caminho de massas, e não o caminho do pugilo de heróis. As coisas florescendo e possibilidades abertas para diante de nós com um discurso afinado para as circunstâncias e somos alijados do partido. Os eurocomunistas são alijados e houve abandono de lideranças significativas do próprio PCB. Davi Capistrano, que era uma liderança emergente da geração dele, foi para o PT levando com ele toda a sua geração, a da revolução sanitarista. O Davi foi uma das maiores lideranças da esquerda neste período. Enfim, o partido derrui, nós sobramos e vem o PT, com uma cultura declarada antípoda àquela que a esquerda realizava, que o Partido Comunista realizava, e que era contrária à era Vargas, à legislação sindical trabalhista, à questão nacional. Nós sabemos como estas coisas andam evoluindo e que hoje o PT é o partido que continua a era Vargas, a legislação sindical trabalhista e que levanta a questão nacional.
Ótimo que tenha sido assim, mas os indivíduos foram liquidados e isso leva a pensar “que país é esse em que para passar os processos é preciso liquidar aqueles que os conceberam, que começaram a ativá-los?”, “que máquina de moer carne que é este país?”. Os processos não são escorreitos, porque eles não passam por partidos definidos ou por movimentos definidos, eles são erráticos e isso tem a ver com a natureza da revolução passiva, se você olha e explora bem o significado desse movimento, essas decapitações, essas cooptações de massa que os processos passivos de revolução proporcionam em que os indivíduos são impiedosamente liquidados. Agora mesmo, no próprio PT, lideranças são liquidadas impiedosamente, enquanto o processo passa, mas passa sem a energia, sem a riqueza, sem a sedimentação. E, nessa forma de andamento, perdendo cada vez mais energia. Este problema tornou-se um problema do país.
Aliás, não estou falando mais em revolução passiva sozinho há muito tempo. Enfim, o tema da revolução passiva no Gramsci é absolutamente enigmático. Literalmente, ele condena a revolução. Este é o sentido da operação dele. Porém, ele chama a atenção para um outro lado, que não teve como explorar pelos próprios limites da sua própria posição – ele é um homem da Terceira Internacional. Como a ordem burguesa se impôs no mundo? Pela restauração, ele vai dizer. A Revolução Francesa começou de uma forma catastrófica, mas com o processo, ela se universalizou de forma passiva. Em 1917, ele deixa cair, preguiçosamente, sem explorar “não será mais um desses momentos em que dada a força dos sindicatos no mundo hoje, a força do Parlamento, dos setores subalternos, as novas expressões, será que isso aponta para um processo afim àquele do domínio burguês?” Este é um ponto. O outro é quando ele, analisando o Risorgimento, diz que quem ganhou foi o Cavour. Ele foi suficientemente hábil e clarividente para assumir o ponto do outro, o ponto do Mazzini. Este restou apenas um apóstolo iluminado. O que o Mazzini não soube fazer? Ele não soube aproveitar as circunstâncias que eram efetivamente adversas para montar um sistema de recuo de defesa que lhe permitisse impor determinados limites à vitória de Cavour. Cavour não precisava ganhar tanto se Mazzini não fosse um apóstolo iluminado.
Então eu pensava no caso do MST, e dizia que o movimento é o melhor praticante da forma de revolução passiva que existe no Brasil. Primeiro, só atuava, na época, diante de propriedade fraca, diante de propriedade vulnerável. Atua no marco legal, num movimento de avanço e recuo e com avanços graduais, jogando sempre “no campo do adversário”.
O salto mortal é bom, mas, e daí? E o caminho do Direito, das instituições do Direito, de seus procedimentos, o que têm a ver com isso? É um mapa novo para o qual temos história...

O senhor começou com o convite da AMB para fazer a pesquisa sobre o Judiciário. Foi aí que o senhor voltou a se interessar pelo Direito?

É. Já tinha explorado o Direito em 30, quer dizer, olhando bem eu estou trabalhando com o Direito há muito tempo. Antes de Liberalismo e Sindicato no Brasil, está um artigo chamado “Sistema Liberal do Direito do Trabalho” que saiu na revista do CEBRAP, onde está a prefiguração teórica da tese.

No último capítulo de “Liberalismo e Sindicato no Brasil”, o senhor fala do liberalismo comunitário após 1946, que atribui uma função social ao empresário para alcançar o bem comum. Então, tanto o trabalhador quanto o empresário são instituídos com funções públicas, e, em seguida, afirma que “ não seria mais o Estado, mas o Direito que irá regular essas relações na nova ordem”. Porém, na seqüência do livro o senhor faz uma leitura da desmontagem desse sistema – pós 64. Parece que existem nesse seu livro pontos que poderiam remeter à formação de uma tradição comunitária do Direito brasileiro já a partir daquela época?

Eu acabei fazendo uma linha reta no meio de um ziguezague. Quando você olha o fim do processo, se torna uma linha reta. Só consegue se perceber no final. O tema do Direito, a esta altura, não é apenas de relevância nacional e sim mundial.

Foi uma surpresa para o senhor o contato com os Juízes?

A minha estratégia com eles foi a de fazer junto. Então, nós nos reuníamos semanalmente, durante dois anos, e nos tornamos amigos. Mantivemos uma relação próxima com eles, que nos permitiu fazer prospecções de natureza intimista, em que fomos entendendo que tipo particular de burocracia eles são. Então, quando fizemos o questionário e começamos a analisar, nós tínhamos também uma etnografia vivida. Tivemos também a felicidade de encontrar a pesquisa de um francês, Jean-Luc Bodiguel sobre o magistrado francês, que nos ajudou muito. Aliás a conclusão que ele chega sobre a magistratura francesa foi a mesma que chegamos sobre a brasileira, de que é um personagem comum, um burocrata, com virtudes, defeitos... Mas que agora envolvido numa situação ruim. O Judiciário foi o último poder a passar pelo processo de transição da ditadura para a democracia. E isso foi feito a ferro e fogo pela mídia, pelas denúncias e pelos escândalos. E também, na época, com uma direita procurando cercear o Judiciário, especialmente como o tema das privatizações, controle externo. Meu convencimento é que precisamos de um Judiciário autônomo de verdade, essa é uma conquista “inarredável”, como acho também uma conquista “inarredável” o tema da integridade dos direitos, não podemos abrir mão disso, não tem direito achado na rua, não tem direito alternativo...
Mas a discussão sobre o direito achado na rua e o direito alternativo é da época da ditadura. Depois da Constituinte, essa discussão torna-se marginal nas Faculdades de Direito...
O Direito é esse que esta aí, que vem dos gregos, dos romanos, das revoluções de 1789 de 1917, dos tratadistas, das práticas sociais vencedoras. Enfim, o que foi selecionado pela história do homem. Esse é o Direito.

A imagem que se tem desse Judiciário é que ele se tornou rígido, fechado sobre si mesmo, mais aristocrático, no mau sentido. Cheio de formalismos. Quando faz a pesquisa, o senhor pega exatamente o momento do início de transição. Foi surpreendente ter encontrado estas figuras?

Foi, a gente teve várias surpresas. E também a convicção de que eles precisam se resguardar, seu papel implica num personagem em particular.

O seu trabalho alia uma interpretação do Brasil a uma concepção normativa de democracia, da Constituição e do papel dos juízes e do prática do Direito. Este é um argumento muito forte para o seu principal destinatário, que é o próprio profissional do Direito, esse indivíduo que não tem uma percepção da sua importância nesse processo. O senhor hoje, de alguma forma, resgata aquele trabalho do CPC? Porque, além da pesquisa sobre Judiciário, a publicação dos trabalhos e livros, há uma certa militância política, junto aos juízes, que tem feito nesses últimos anos, que é um pouco o CPC renovado.

Sem dúvida, junto aos movimentos sociais também. As atividades têm tido uma boa recepção pelos profissionais do Direito e dos juízes, com efeitos multiplicadores nas suas regiões. E mesmo receptividade por parte de membros de tribunais superiores. Nós procuramos alcançar também movimentos sociais, líderes comunitários. Fizemos vários seminários, de que participaram muitas pessoas. Recentemente, fizemos uma discussão sobre o tema do usucapião coletivo. E essas ações tem tido algum êxito, o tema do Direito está no debate atual, sobre o estatuto da cidade.

Poderia falar um pouco sobre o CEDES (Centro de Estudos Direito e Sociedade)?

Ele nasceu primeiro da tentativa de continuar a fazer política com a corporação. Segundo, de aproximar a corporação de outros personagens da Ciências Sociais e da vida popular, enfim um objetivo ambicioso. No começo, tivemos algumas iniciativas bem sucedidas, mas de forma minimalista conseguimos estabelecer uma rede, que a gente consegue ver pelo tipo de recepção que temos, e em que cidades somos lidos. Fazemos reuniões com juízes e líderes, publicamos um boletim.

Reflexões para avançar o Partido Democrático

Massimo D’Alema
Tradução: Alberto Aggio
DEU EM GRAMSCI E O BRASIL

Pensei em reunir neste livro os escritos e as intervenções mais significativas dos últimos três anos [1]. Um período crucial na vida do nosso país: da vitória eleitoral da centro-esquerda em 2006, passando pela experiência de governo até a derrota do Partido Democrático (PD) e a afirmação do poder de Silvio Berlusconi. Todavia, a crônica da política italiana não é o centro da atenção e do esforço de reflexão dos escritos que se encontram nesse volume. O livro oferece, antes, indicações para uma avaliação em curso da extraordinária mudança do cenário internacional assinalado pela grande crise financeira e, portanto, econômica e social do mundo global, desde o declínio da era neoconservadora até o advento de Barack Obama à presidência dos Estados Unidos da América.

A minha convicção é que se deve partir também deste ponto para definir o horizonte estratégico, os valores constitutivos e as razões do novo partido que fundamos. Esta é a condição para oxigenar o nosso projeto, para falar às novas gerações e construir verdadeiramente um grande partido que vá além das razões contingentes do embate com Berlusconi. E é também a condição para vencer este embate.

Está nascendo um mundo novo. Acabou, num despertar brusco, aquele que foi definido como “o sonho dogmático da perfeição do mercado”. A crise do selvagem capitalismo global ou, como outros preferem chamar, do “mercadismo”, é uma crise política e cultural antes de ser econômica, da qual, estou convencido, emergirá um mundo completamente mudado. Qual será o lugar da Europa e da Itália no novo mundo? Parece que estamos diante de um paradoxo: há uma necessidade forte de política depois de anos nos quais o domínio da economia foi acompanhado pela antipolítica, pelo desprezo em relação às instituições internacionais, consideradas um inútil apêndice burocrático, e pela doutrina do declínio dos Estados nacionais. Volta hoje à cena a ideia kantiana de uma ordem jurídica internacional: uma grande ideia “europeia” que se encontra na base da própria construção da unidade da Europa. Mas a Europa parece titubear diante desse desafio, ao passo que o impulso para a inovação vem do país que foi o promotor do domínio neoliberal e é o epicentro da crise: os Estados Unidos da América. Voltando a pensar nisso hoje, ocorre-nos que já nos anos trinta do século passado, diante da grande crise, a América soube reagir com o New Deal, enquanto na Europa prevaleceram o nacionalismo, os regimes autoritários e a inclinação para a guerra. Hoje os cenários não são assim tão dramáticos, mas os riscos do populismo e de um entrincheiramento conservador em torno dos Estados nacionais estão bem presentes, num cenário europeu dominado mais pelo egoísmo e pelo medo do que pela esperança e pela coragem. Abre-se um grande desafio, decisivo para os democratas e para os reformistas. Qual deve ser a nossa resposta à crise? Como impulsionar um novo projeto? A minha convicção é que uma grande perspectiva de mudança se deva mover em torno de três ideias-força fundamentais: a democracia, a igualdade, a inovação.

Democracia, porque a ausência de regras, de controles, de transparência e de legalidade, que a tempestade financeira colocou em dramática evidência, nasce sobretudo da assimetria entre o crescimento de um capitalismo global e a ausência de instituições com capacidade de regular seu desenvolvimento e de equilibrar seu peso e seu poder. Este papel foi assumido no século passado pelos Estados nacionais, que — como escreveu Ralf Dahrendorf — souberam fazer a quadratura do círculo, estabelecendo a compatibilidade entre desenvolvimento capitalista, democracia política e coesão social. Hoje nos encontramos diante de um vazio de democracia. Não será o retorno aos Estados nacionais que irá preencher esse vazio de democracia. Os Estados não exauriram sua função; continuam a ser nós essenciais das redes institucionais. Mas o verdadeiro desafio é o da construção de uma dimensão democrática supranacional. No fundo, esse tem sido o caminho da Europa, mesmo que hoje a Europa pareça frágil diante da crise, prisioneira de lideranças míopes e conservadoras, estando entregue substancialmente às escolhas de cada país e renunciando a fazer da crise uma ocasião para dar um salto de qualidade no terreno das políticas comuns de desenvolvimento, finanças e coesão social.

O segundo tema central é o da igualdade. Igualdade de oportunidades, por certo. Mas também uma necessária ação pública para reequilibrar a distribuição da riqueza. O crescimento selvagem dos últimos anos gerou crescente desigualdade não só entre países ricos e países pobres; não só entre continentes vencedores — como a Ásia — e continentes marginalizados pela globalização econômica — como a África —, mas também dentro dos próprios países mais ricos. Estados Unidos e Itália estão entre os países nos quais o crescimento da desigualdade social foi maior nos últimos quinze anos. A excessiva desigualdade não é somente injusta; ela se torna também um impedimento ao crescimento econômico: concentrando a riqueza em poucas mãos, paralisa-se o crescimento do consumo e mina-se a coesão social. Frequentemente, como no caso da Itália, o crescimento da desigualdade é acompanhado de uma queda na produtividade do trabalho e da competitividade da economia. Mesmo porque, numa sociedade na qual existem pouquíssimas oportunidades de ascensão social e o trabalho não vem sendo valorizado e retribuído de modo adequado, desaparecem os estímulos à concorrência e à promoção dos talentos e da qualidade de cada qual. Em torno de novas políticas de welfare, de novas estratégias de luta contra a pobreza e a exclusão, que sejam capazes de se inspirar igualmente em valores de justiça social e de promoção da qualidade individual, se travará um importante embate para a cultura política de uma renovada força reformista.

Por fim, a terceira condição para abrir uma nova fase é a que diz respeito à inovação. Nesses anos, o crescimento foi sustentado pela disponibilidade de uma massa enorme de trabalhadores com baixos salários nas economias emergentes. Nos países ricos, o mundo financeiro gerou o enriquecimento dos grupos dominantes independentemente da capacidade competitiva da economia. Hoje, o desafio decisivo volta a ser o terreno da competitividade e da inovação. Em particular, buscando — como fez Barack Obama nos Estados Unidos — a tecnologia ambiental, as fontes alternativas de energia, reduzindo a dependência do petróleo, a pesquisa biomédica voltada para o combate às doenças e a melhora da vida das pessoas. Em suma, o desenvolvimento se orienta para objetivos de qualidade, com a perspectiva de proteger o ambiente natural devastado pelo crescimento selvagem dos últimos anos e de melhorar a vida das pessoas, combatendo a fome e as doenças. Para fazer isso, é necessário dedicar grandes recursos para a inovação, a formação e a cultura.

A crise pode e deve ser, portanto, uma ocasião para uma grande mudança. Uma ocasião para reformas corajosas ainda mais necessárias num país como o nosso, há muitos anos bloqueado, incapaz de crescer no nível dos outros países europeus, de se expressar plenamente e de liberar suas potencialidades e suas energias.

Ao contrário, para a direita italiana e para Berlusconi, a crise é substancialmente uma ocasião para consolidar o poder. A Itália é, entre as nações mais desenvolvidas, a que menos recursos emprega para responder à situação de emergência econômica e abrir uma nova fase de crescimento, contando com a possibilidade de que a retomada mundial nos leve a reboque. É o país que nada faz para reequilibrar a iníqua distribuição de riqueza entre os diversos estratos sociais. É o país que menos inova e, inclusive, reduz os recursos para a formação e a pesquisa, e no qual, não por acaso, mais acentuadamente se apresentam a queda da economia, o agravamento estrutural das contas públicas, o crescimento do mal-estar social e da pobreza. Ao contrário, reforça-se o poder político. Uma economia enfraquecida reduz a autonomia dos grupos financeiros e industriais, que passam a se apoiar nos poderes públicos. Reforçam-se, em consequência, a influência sobre a sociedade e o controle da informação, tornando assim mais aguda a concentração anômala de poder que caracteriza o caso italiano no quadro das democracias modernas.

Assim, enquanto crescem a insegurança, os sentimentos de medo e de fechamento, as tendências contra os imigrantes ou as veleidades protecionistas, uma parte grande dos italianos parece cerrar fileiras em torno a uma liderança protetora. Mesmo que se trate mais de um símbolo de decadência da Itália do que de uma esperança de renascimento.

Mas seria um erro considerar a Itália um país “berlusconizado”. A sociedade o é muito menos do que os jornais e os telejornais. E não só porque no auge da sua glorificação a centro-direita italiana alcança talvez quase a metade dos votos válidos, enquanto a outra metade do país fica desconfiada e hostil. Mas também porque a Itália não se resume à quotidiana fiction do chefe de governo ou às tenebrosas ou desastradas “rondas” contra os imigrantes. Há uma vitalidade de parte do mundo da pesquisa, da cultura, do trabalho e da empresa que enfrenta, sem temor e com sucesso, os desafios da globalização. Existe uma sociedade que, em parte, infelizmente, vê a política com desconfiança, distanciamento e intolerância, e não se sente mais representada. Uma Itália que não se reconhece na direção política atual, mas não vê em campo uma alternativa forte e confiável para governar o país. Aqui certamente pesam os erros da centro-esquerda, mas também a obra irresponsável de autodemolição, a expectativa de improváveis milagres geracionais, a espera messiânica dos novos “jovens” providenciais. Ao contrário, é preciso, de forma mais simples e com mais humildade, mas com orgulho da nossa história, partir mais uma vez das forças que estão em campo. Uma nova classe dirigente também não nascerá sem um partido operativo e com raízes na sociedade, capaz de selecioná-la, formá-la e de colocá-la à prova.

A partir desta consciência, deve-se mover o Partido Democrático no seu nada fácil caminho.

De resto, não tem sido cômodo o início de uma experiência marcada pela derrota eleitoral e pela penosa busca de um caminho na estreita faixa entre o preponderante populismo berlusconiano e o minoritarismo justicialista a la Antonio Di Pietro e seu partido pessoal [Itália dos Valores]. O que se apresenta incerto neste primeiro ano de vida é o fundamento do novo partido: o conjunto de valores e princípios que o constituem numa identidade compartilhada. E é precisamente essa incerteza que tornou mais difícil a convivência das diferentes almas dentro do PD, o que, por temor de abusos, levou cada qual antes a cristalizar a própria identidade do que a buscar uma síntese capaz de voltar-se para o futuro.

Mas o projeto do PD permanece essencial para abrir uma perspectiva nova para a Itália.

Este livro quer ser também uma contribuição ao Partido Democrático. Uma contribuição em termos de cultura política, em particular no que se refere à visão do papel da Europa e da Itália no mundo, mas também um convite para uma reflexão mais profunda sobre as características e os limites do bipolarismo italiano; sobre a necessidade de uma visão da evolução democrática do país que seja efetivamente alternativa ao plebiscitarismo e à simplificação personalista do embate político. Uma nova centro-esquerda deve deixar para trás a precariedade e a confusão da União [coalizão de centro-esquerda, reunindo não só a Oliveira como partidos da esquerda radical, nas eleições de 2006], assim como toda pretensão de autossuficiência do Partido Democrático. Uma nova centro-esquerda deve ser capaz de unir progressistas e moderados (como foi escrito), porque a sociedade italiana é mais complexa e as linhas de disputa são mais articuladas e não se reduzem à fratura direita-esquerda. Mas isso não significa que os partidos devam ser a nomenclatura das diversas inclinações existentes na sociedade ou dos interesses fragmentados de uma sociedade tão complexa. Certamente, é possível existir um grande partido como o PD que tenha a ambição de unir no seu seio — sem nenhuma pretensão de exclusividade — progressistas e moderados em torno de um corajoso projeto de reforma para a Itália.

Deste projeto é parte integrante aquela ideia de uma Itália empenhada na defesa dos direitos humanos nos Bálcãs, mesmo com o ônus das escolhas difíceis; uma Itália comprometida com a ONU na afirmação e proteção da paz entre Israel e Líbano e na proposição de novas esperanças para o Oriente Médio; uma Itália protagonista na batalha de civilização contra a pena de morte, na Assembleia das Nações Unidas. Esta foi e é a Itália da Oliveira [a coalizão Ulivo, da qual surge o PD] e da centro-esquerda, cujos resultados e cujo papel devemos reivindicar talvez com maior consciência. É a Itália que, não só no passado longínquo, mas também nestes anos com Romano Prodi, Carlo Ciampi e Giorgio Napolitano tem sido a portadora da visão ambiciosa de uma Europa unida, federal e democrática, que não se reduza à busca de um equilíbrio e de uma mediação entre os governos. A Europa de que necessitamos hoje, mais do que nunca, diante das agitações políticas e econômicas do mundo global.

Espero que destas reflexões nasça um impulso no sentido de que a centro-esquerda retome consciência das suas razões e volte a exercitar plenamente a sua função para o futuro da Itália.

Massimo D’Alema é presidente da Fondazione Italianieuropei. Entre 1998 e 2000, foi presidente do Conselho de Ministros; entre 2006 e 2008, foi ministro do Exterior dos governos da coalizão Oliveira.

[1] Trata-se do livro Il mondo nuovo – riflessioni per Il Partito Democratico, de Massimo D’Alema (Roma: Fondazione Italianieuropei, 2009). Esse texto é o prefácio do livro.

O trapalhão

Ricardo Noblat
DEU EM O GLOBO


“O Lula é o Forrest Gump brasileiro” (Hugo Leal, deputado do PSC-RJ, sobre a imagem de político de sorte do presidente)

Lula e Dilma têm muitas coisas em comum, mas falta uma capaz de fazer toda a diferença: nada pega em Lula. Tudo pega em Dilma. Mensalão? Lula jura que não sabia. Compra de dossiê contra adversários nas eleições de 2006? Ignorava. A ex-secretária da Receita Federal diz, mas não prova, que se reuniu com Dilma. Pois as pessoas acreditam nela.

Dilma angariou justa fama de autoritária. Lula é um autoritário sem fama. Dilma trata mal até ministros de Estado.

Lula está cansado de fazer o mesmo, mas ninguém em torno dele sai espalhando.

Dilma detesta ser contrariada. Lula é capaz de pular no pescoço de quem o contrarie. De cara feia, Lula assusta os que o cercam tanto quanto Dilma assusta os seus. Mas a antipática é ela.

Lula é um doce.

Imagine só se coubesse a Dilma decidir se os projetos do pré-sal deveriam ou não ser votados em regime de urgência no Congresso. E que ela decidisse que deveriam, sim. E depois recuasse. E em seguida mantivesse a urgência.

Para finalmente revoga-la.

Do que a chamariam? De política hábil, conciliadora, esperta, realista? Ou de fraca, confusa, indecisa e permeável a todo tipo de pressão? E se Dilma, na Presidência, tivesse tomado algumas doses a mais de caipirinha e, ao lado do presidente da França, anunciasse o desfecho de uma concorrência bilionária que ainda não esgotou seus trâmites? O mundo desabaria na cabeça dela. A Aeronáutica entraria de prontidão (claro que exagero). E o ministro da Defesa teria a desculpa que procura para deixar o governo e apoiar a candidatura de José Serra.

Lula é um trapalhão. Por despreparo, presunção ou falta de cuidado, fabrica trapalhadas desnecessárias. É dele a decisão final sobre a compra de aviões militares. Lula não está obrigado a levar em conta apenas aspectos técnicos das propostas. De fato, são relevantes razões de ordem estratégica.

Mas precisava se precipitar? Por pouco não enfrentou uma crise com a demissão do comandante da Aeronáutica.

Em 2007, quando os controladores de vôo entraram em greve, Lula mandou o ministro do Planejamento negociar com eles — e o comandante da Aeronáutica ameaçou ir embora. Três anos antes, afrontado pelo comandante do Exército, o ministro da Defesa, José Viegas, quis demiti-lo, mas Lula não deixou. Viegas foi embora.

Entrevista José Augusto Pádua: PV sozinho não será capaz de bancar governo Marina

Mauricio Puls
DEU NA FOLHA DE S. PAULO (13/9)


Historiador diz que senadora terá de buscar mais apoio para implementar suas ideias

Ex-coordenador da área de florestas do Greenpeace na América Latina, o historiador José Augusto Pádua, da UFRJ, acha que a senadora Marina Silva (AC) tentará depurar o PV dos oportunistas "sem qualquer ligação programática com o ambientalismo", mas mesmo assim o partido não é suficiente para implementar suas ideias.

Autor de "Um Sopro de Destruição: Pensamento Político e Crítica Ambiental no Brasil Escravista", ele diz que o "ambientalismo não pertence mais aos ambientalistas" porque se disseminou por diversas correntes e está no "coração do debate político contemporâneo".

FOLHA - O primeiro PV surgiu em 1972. O movimento se disseminou pelo mundo inteiro, mas até hoje não conseguiu se tornar o principal partido em nenhum país. Por quê?

JOSÉ AUGUSTO PÁDUA - Não se pode medir o crescimento político da temática ambiental pelo crescimento dos chamados Partidos Verdes, que são apenas um dos componentes de um processo histórico maior. O ambientalismo não pertence mais aos ambientalistas e aos verdes. A questão ambiental tornou-se um fenômeno multissetorial, que está presente na cultura, na mídia, nas negociações internacionais, nas instituições estatais, nas organizações empresariais e sindicais.

Ela está mais próxima do que nunca do coração do debate político contemporâneo. É claro que a existência dos PVs ajudou a organizar o debate ambiental, influenciando a visão dos diferentes partidos. E os verdes têm sido capazes de manter parte considerável do eleitorado, participando de coligações de governo em vários países. É a mais recente corrente política internacional em processo de consolidação, sendo portadora de muitas das novas questões da contemporaneidade.

FOLHA - O sr. diz que para criar um modelo sustentável de desenvolvimento é preciso ter um bloco político forte, que seja capaz de transformar a economia. O PV brasileiro vem crescendo, mas, como dizem seus dirigentes, não tem a bancada dos sonhos: só metade é de ambientalistas. Quais são as dificuldades para transformar um movimento ambiental em um grande partido?

PÁDUA - O PV brasileiro nasceu nos anos 1980, no mesmo caldo de cultura do movimento verde internacional. De início era um típico partido de ideias. Mais tarde, em muitos casos, por oportunismo ou instinto de sobrevivência, sucumbiu à tentação de tornar-se legenda de aluguel para políticos locais sem qualquer ligação programática com o ambientalismo. Apesar de conseguir crescer, tornou-se um corpo estranho e híbrido, onde convivem lideranças realmente verdes com políticos alheios, ou até antagônicos, aos valores ecologistas.Uma das apostas explícitas de Marina Silva é a de participar de uma espécie de refundação da política verde no Brasil, envolvendo necessariamente uma depuração do partido e uma retomada da proposta inicial. Mas é evidente que o ambientalismo possui um campo de atuação política muito mais amplo, não podendo confundir-se com um partido. Um novo modelo de desenvolvimento só será possível com a formação de um bloco maior: na melhor das hipóteses, o PV poderá vir a ser um dos catalisadores ideológicos dessa nova política.

FOLHA - Mas o que o sr. quer dizer?

Que o PV sozinho não tem força para eleger Marina? Ou que Marina não poderá governar só com o PV?

PÁDUA - As duas coisas são verdadeiras, mas pensei especialmente em um terceiro aspecto.

É provável que o PV, mesmo unido com outros pequenos partidos, não tenha força para eleger Marina. Mas não podemos esquecer que a história recente apresenta o exemplo de Fernando Collor, que cresceu eleitoralmente sem possuir de início uma base partidária relevante. É claro que se trata de um caso bem diferente do de Marina, até mesmo considerando o grande volume de recursos que alguns esquemas empresariais forneceram à campanha. Na eventualidade de uma vitória da candidata, por outro lado, é óbvio que ela não poderá governar apenas com o PV, sendo forçada a fazer alianças. Em um sentido mais amplo, porém, a construção da capacidade política necessária para uma transição ao desenvolvimento sustentável não poderá ser obra apenas do PV. Ele poderia ser um dos catalisadores desse processo: precisaria agregar os setores mais modernos e esclarecidos da política brasileira. Ele requereria uma verdadeira mudança de cultura política e de visão de país. Apesar de não ser uma tarefa fácil, não considero que tal proposta seja utópica. Ela pode ser realizada através de políticas de curto, médio e longo prazo.

FOLHA - O sr. diz que o ambientalismo possui duas bases: há um "ambientalismo da classe média urbana", incomodada com a especulação imobiliária e a descaracterização das cidades, e um "ambientalismo dos pobres", de seringueiros, catadores de babaçu, pequenos agricultores. O sr. acha que, com a ida de Marina ao PV, os dois grupos acharam um representante comum?

PÁDUA -
Quando se analisa a história do ambientalismo brasileiro, a partir da década de 1970, é possível observar essas duas vertentes. O avanço das fronteiras capitalistas no mundo rural associou o desmatamento com a desarticulação agressiva e autoritária de comunidades locais. Nas periferias urbanas do crescimento industrial, a poluição e a degradação das condições de vida se tornou insuportável. Em ambos os contextos grupos locais começaram a buscar alternativas ambientais, apesar de não conhecerem o vocabulário do ambientalismo internacional.

Os movimentos de classe média também reagiram aos problemas mencionados na pergunta, mas estavam mais antenados com a difusão internacional das ideias ambientalistas. Mais tarde, na década de 1980, aconteceu um encontro entre essas duas vertentes, um processo rico e natural de aprendizado mútuo e abertura de horizontes. A aproximação, na época, entre Chico Mendes e os criadores do PV é um exemplo concreto dessa convergência. Marina é hoje a mais perfeita tradução desse processo. De suas raízes populares, incluindo uma alfabetização muito tardia, ela se transformou em uma das personalidades políticas mais antenadas com as discussões internacionais de ponta sobre o futuro da humanidade. Mais do que absorver, ela se tornou de fato uma formuladora de ideias e valores ambientalistas em escala internacional.

É verdade que não se trata de uma fundamentalista: sabe negociar e ser pragmática. Mas raros políticos brasileiros se guiam tão fortemente por ideias e valores. Ainda é cedo para avaliar quais serão as consequências concretas de sua entrada no jogo eleitoral. Mas não é difícil observar que a política brasileira está profundamente carente de líderes que sejam guiados por valores.

FOLHA - Hoje o debate político brasileiro está centrado no pré-sal. O sr. acha que esse petróleo pode atrapalhar a consolidação de um modelo de desenvolvimento sustentável?

PÁDUA - As descobertas do pré-sal chegaram em um momento histórico complexo e bastante ambíguo. Os combustíveis fósseis ainda dominarão o consumo energético global por um período considerável, mas existe um consenso crescente sobre a necessidade crucial de se fazer a transição mais rápida possível para uma economia de baixo carbono. Só que essa transição não se dará de uma hora para outra, apesar de não poder mais ser adiada. Ou seja, ela precisará envolver um processo claro e acumulativo de mudança nos padrões dominantes de produção e consumo.

Não se trata, como se imaginava nos anos 1970, de um esgotamento das reservas de combustível fóssil, mas da impossibilidade de continuar utilizando-as no longo prazo. As reservas de carvão mineral, bem mais que as de petróleo, ainda são muito grandes. Só que uma regressão do petróleo ao carvão seria uma verdadeira tragédia climática. O petróleo do pré-sal, portanto, será um empecilho ao desenvolvimento sustentável se servir para reforçar o conservadorismo político e econômico, estimulando a pertinência no erro da economia de alto carbono. Mas é possível, além de politicamente realista, imaginar uma utilização que seja cuidadosa, precavida e conscientemente situada em um contexto de transição ecológica. A ênfase estaria em utilizar esses recursos para promover os avanços educacionais, tecnológicos e sociais necessários para a economia limpa do futuro, para a construção de um modelo sustentável de país. A proposta do governo, em seus traços gerais, não se choca com essa visão. Mas é preciso que a sociedade esteja atenta, pois entre a retórica e a prática pode existir um verdadeiro abismo.

O QUE PENSA A MÍDIA

Editoriais dos principais jornais do Brasil
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Estrelas tristes (poema)

Graziela Melo

Tristes
Estrelas
Que vejo
Esvoaçando
No ar...


Furtivas,
Nas nuvens
Se escondem,
De onde
Contemplam
O mar

Na madrugada
Se apagam
Fugindo
Do assédio
Do sol....

Reaparecem
Na terra
Em forma
De girassol....

A Justiça, a faca e a corda

Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Estamos num momento de quente movimentação institucional: o STF a pronunciar-se sobre questões polêmicas em faixas diversas, o Executivo a encaminhar a definição das regras do Pré-sal, o Congresso às voltas, meio atropeladamente, com reforma eleitoral. Enquanto esperamos o desfecho da importante decisão do STF sobre Cesare Battisti, que divide a Corte e a confronta com o ministro da Justiça, tomemos as facetas novas e reveladoras quanto às relações entre o Judiciário e a chamada opinião pública que a decisão do caso Francenildo Costa revela.

A ligação com a opinião pública surge como especialmente problemática quando se trata do Judiciário. Com respeito ao Legislativo, há um aparente consenso, certo ou errado, quanto à necessidade de "transparência" e à legitimidade da pressão popular sobre o trabalho dos parlamentares. Já no que se refere ao Judiciário, pudemos ver algum tempo atrás, por exemplo, a propósito da sessão do STF relacionada com o "mensalão", o ministro Ricardo Lewandowski a se queixar de ter de decidir "com a faca no pescoço" pela publicidade envolvendo a sessão, enquanto o ministro Marco Aurélio Mello festejava galhofeiramente a faca pela imprensa. Agora, no caso Francenildo, a decisão tomada sem dúvida se opôs, como vimos nas numerosas manifestações na imprensa, ao ânimo da "opinião pública" - à qual o ministro Marco Aurélio não perdeu a chance de juntar-se outra vez, com a observação em entrevista de que a corda sempre arrebenta do lado mais fraco (talvez valha lembrar que alguém mais perguntava sobre o habeas corpus por ele concedido a Salvatore Cacciola).

Naturalmente, o desejável a respeito envolve a ideia de que a atuação da Justiça dê expressão aos valores da comunidade. No quadro constitucional da separação de poderes, entretanto, supõe-se que os valores encontrem tradução nas leis do país, às quais as decisões da Justiça estarão atentas. Daí resultam a suposição adicional de juízes doutos e tecnicamente competentes (versados na lei) e o fatal "tecnicismo" e mesmo ritualismo do processo de deliberação, que não podem senão relacionar-se mal com a "opinião pública" em seu espontaneísmo e fluidez, quando não inconsistência. Na avaliação da participação dos vários denunciados no caso Francenildo, vimos o relator, ministro Gilmar Mendes, explorar meandros e matizes diversos da legislação pertinente e extrair da figura legal do "crime próprio" o fundamento da posição que isenta Palocci, não obstante certas qualificações, de responsabilidade no crime pelo qual era denunciado.


É notável e revelador, quanto às relações Judiciário-opinião pública, que as matérias na imprensa sobre a sessão do STF tenham ignorado amplamente o argumento aí contido, ou tratado simplesmente a decisão como baseada em filigranas jurídicas espúrias, que corroborariam a tendência da corda a arrebentar de certo lado.

Uma sociologia realista do Judiciário não pode deixar de reconhecer o viés que muitas vezes marca sua atuação, e não apenas entre nós. O modelo de uma Justiça douta e imparcial se choca frequentemente com a realidade em que o caráter "douto", a competência em lidar com as leis, se transforma em instrumento para garantir a parcialidade da Justiça: o "bom advogado" das manobras e chicanas que favorecem quem pode tê-lo ao seu serviço. Noutro nível, temos a parcialidade revelada de forma singularmente dramática no exemplo, que tenho evocado às vezes, das eleições de 2000 nos Estados Unidos, associada com a força dos partidos e a penetração da esfera judiciária por eles.

Se no Brasil estamos livres propriamente da partidarização da Justiça, até pela debilidade dos partidos (afinal, tivemos ainda agora a extensa recomposição do próprio STF por nomeações de Lula, sem que seja possível apontar um efeito político-partidário de alguma nitidez), o condicionamento da atuação do Judiciário tende a ser sobretudo aquele exercido em surdina pelo fosso social do país. As consequências se fazem sentir em particular na face "hobbesiana" da atividade judicial (como a designam alguns estudiosos da Justiça na América Latina, especialmente Beatriz Magaloni), a qual se refere às garantias oferecidas ao cidadão comum, em contraste com a face "madisoniana", que diz respeito às relações entre os poderes e ao princípio dos "freios e contrapesos" e se revela na decisão pendente sobre o caso Battisti.

Pode-se pretender sustentar que uma Justiça partidarizada é preferível a outra socialmente enviesada de maneira surda. A institucionalização partidária, mesmo levada ao excesso da partidarização da própria Justiça, ao menos redunda em que o eleitorado e o público em geral recebam sinais claros, até do ponto de vista da ramificação social dos temas e problemas, quando se trata de compor os órgãos relevantes: no caso recente da indicação de Sonia Sotomayor para a Suprema Corte estadunidense, podia-se ver com bastante nitidez o que estava em jogo em sua confirmação final.

De todo modo, não há como abrir mão da Justiça douta e neutra como objetivo, e do empenho de criar as condições sociais e políticas que impeçam o caráter douto de se tornar equivalente a viés social. Nem há razão para apostar na "opinião pública" como remédio para o viés. Pois ela mesma não escapa dele: dificilmente se justificaria presumir, na terra do fosso social, que a faca da opinião pública no pescoço da Justiça altere o lado em que a corda tende a arrebentar.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras.

Endividamento e insanidade

Luiz Carlos Bresser-Pereira
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Quanto maior foi o nível de endividamento a que chegou um país, mais grave foi para ele a atual crise global

O BRASIL já está saindo da recessão; a China e a Índia não chegaram a experimentar desempenho negativo, e sua recuperação mostra-se extraordinária. Enquanto isso, nos países ricos já existem alguns sinais de recuperação, mas são débeis, e as previsões são de que o desemprego continuará aumentando. Por que essa diferença?

Afinal, os países ricos sempre se apresentaram perante nós como exemplos. Sempre nos disseram o que deveríamos fazer para chegar a seu nível de desenvolvimento econômico. Por que, agora, estão sofrendo mais do que nós pela crise?

A principal razão está no fato de que eles acreditaram mais do que nós nos conselhos equivocados que seus economistas nos davam e também davam a eles de abrir e desregular os mercados financeiros. Os conselhos a nós dirigidos se corporificaram no chamado Consenso de Wa- shington, que provocou crises financeiras no México (1994), depois em quatro países asiáticos (1997), em seguida na Rússia e no Brasil (1998), na Turquia (2000) e, finalmente, na Argentina (2001). Quanto mais um país aceitava as reformas neoliberais e a macroeconomia da taxa de câmbio sobreapreciada e de alto endividamento das empresas e das famílias, mais grave era sua crise, como comprovam as crises causadas pelas políticas de Carlos Menem e de Boris Yeltsin.

Nos Estados Unidos também se tornaram frequentes as crises financeiras (1987, 1997, 2001), o que demonstra que esses conselhos não eram apenas para uso externo.Isso ficou claro em relação à abertura e à desregulação financeira que foi empreendida pelo governo Ronald Reagan.

Essa desregulamentação permitiu que nos países ricos o índice de endividamento ou de alavancagem das organizações do sistema financeiro, das empresas e das famílias fosse substancialmente maior do que nos países emergentes ou de renda média.

Utilizando uma lógica neoliberal, seus economistas advertiam com razão os países em desenvolvimento em relação ao deficit e ao endividamento público, que realmente é desastroso quando se torna crônico, mas, reproduzindo o pensamento ortodoxo ou neoclássico, asseguravam que o endividamento privado não era problema: que os dirigentes das organizações financeiras e das empresas e os chefes de família eram suficientemente competentes e os mercados suficientemente eficientes para que os elevados níveis de endividamento alcançados pelo setor privado fossem por definição aceitáveis; mais do que isso, fossem sinais de que o sistema financeiro era "sofisticado" ou "avançado".

Adotaram esse padrão duplo, estritamente ideológico, e, por incrível que hoje pareça, acreditaram nele! Por isso, seus índices de endividamento privado explodiram, enquanto que países como a China e a Índia mantinham os seus sob controle, porque jamais acreditaram em tal insanidade. No Brasil, seja porque muitos não acreditaram na teoria ortodoxa, seja porque nossos bancos foram mais cautelosos, seja porque as famílias não tiveram crédito ou tempo suficiente para que se endividassem, os índices de alavancagem privada ficaram sob controle. Embora outros fatores possam ser também determinantes quanto à gravidade da crise, em geral quanto maior tenha sido o nível de endividamento tanto público como privado a que chegou um país, mais grave foi para ele a atual crise global. Fica assim explicado por que os países asiáticos dinâmicos já retomaram o crescimento e a América Latina começa a sair da crise, enquanto os países ricos permanecem imersos nela.

Luiz Carlos Bresser-Pereira, 75, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Macroeconomia da Estagnação: Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994".

A Greve dos Trabalhadores em Educação na Conjuntura Estadual

Vagner Gomes de Souza[1]

Estamos na segunda greve por tempo indeterminado da Educação do atual Governo Estadual. A atual administração estadual assumiu o compromisso com a categoria de incorporar a gratificação do Nova Escola na íntegra até o final de seu mandato, porém as promessas cederam lugar a ausência de diálogo. A falta de democracia na rede estadual de ensino se esboçou a partir da suspensão das consultas para Direção Escolar feita pela comunidade escolar. Aos poucos, os gestores escolares estão sendo substituídos por “apadrinhados” políticos como nos tempos do “chaguismo”.

A liberdade da expressão sindical está sob um “fio de navalha” uma vez que os Diretores indicados agem em cada caso para desqualificar a participação da militância sindical nas escolas. Há honrosas exceções, mas a cultura política do conservadorismo é muito forte na comunidade escolar da rede pública de ensino. Portanto, não se espantam os baixos índices de adesão ao movimento grevista diante de uma liderança sindical radicalizada. A polarização entre o Governo Estadual e as lideranças do movimento sindical precisa ser superada por um canal permanente de negociação.

A Direção do SEPE está hegemonizada pelos simpatizantes do CONLUTAS e da INTERSINDICAL o que leva a militância da CUT ficar sob um “fogo cerrado” da intransigência do Governo Estadual e da radicalização. Observamos que o perfil da categoria da rede de ensino está se transformando há anos com a inclusão de novos quadros emergentes das classes subalternas ao contrário de antigos militantes universitários associados ao catolicismo popular. Esse novo perfil demonstra uma crise na qualidade da luta dos trabalhadores em educação que não ampliam seu discurso para o conjunto dos usuários das escolas públicas.

Uma greve prolongada com baixa adesão da categoria é um indicador da força do Governo Estadual em superar seus baixos índices de aprovação na sociedade. Ao contrário da “Aprovação automática” na rede municipal do Rio de Janeiro, que saiu do espaço escolar e ocupou o cenário eleitoral em 2008, a incorporação do Nova Escola já foi tema em 2006 e não mobiliza a sociedade em geral. Na verdade a cultura do usuário da rede pública de ensino estadual é conformista em relação a escassez de qualidade e prestação de serviços.

Uma nova forma de abordar um projeto estadual de educação deve ser formulada para além dos vetores “corporativistas” dos trabalhadores e “clientelistas” dos gestores indicados. A participação dos parlamentares estaduais no debate desse tema impõe uma valorização da participação do cidadão. Se possível, as audiências públicas da Comissão de Educação da ALERJ poderiam ser feitas em pólos de maiores simbolismo para a rede estadual de ensino e viabilização a presença de usuários que estão distantes do cotidiano da política.


Esse é o momento de incentivar o movimento comunitário a abraçar o tema da educação e impulsionar o surgimento de lideranças de novo tipo. Por exemplo, a Baixada Fluminense sofre com uma falta crônica de professores o que justificaria uma Audiência Pública na localidade. A participação da sociedade nas instituições democráticas contribuirá na educação do cidadão para a prática da radicalidade democrática. A derrota política do continuísmo estadual é possível e merece muito mais do que repetir velhos “slogans”.


[1] Professor de História na rede pública de ensino. Ex-Diretor do SEPE (Sindicato Estadual dos Profissionais em Educação).

Brechas na reforma eleitoral

Cristine Prestes, de São Paulo
DEU NO VALOR ECONÔMICO

Sob o argumento de garantir maior transparência às eleições futuras com a criação de regras claras para o uso da internet, o projeto de minirreforma eleitoral em votação no Congresso tende a dificultar ainda mais a fiscalização do financiamento de campanhas eleitorais. Um parágrafo incluído na proposta pode abrir uma brecha para que os limites hoje existentes para doações de empresas e pessoas físicas a candidatos sejam extrapolados sem que seja possível puni-los em tempo hábil e impugnar os eleitos. O projeto já foi aprovado na Câmara e está em tramitação no Senado. As emendas mais polêmicas voltarão à Câmara.

Brecha na reforma eleitoral dificulta controle de doações

Sob o pretexto de garantir maior transparência às eleições futuras com a criação de regras claras para o uso da internet, o projeto de minirreforma eleitoral em votação no Congresso Nacional pode, na prática, dificultar ainda mais a fiscalização do financiamento de campanhas eleitorais. Um parágrafo incluído na proposta pode abrir uma brecha para que os limites hoje existentes para doações de empresas e pessoas físicas a candidatos sejam extrapolados sem que seja possível puni-los em tempo hábil e impugnar eleitos.

O projeto já foi aprovado na Câmara dos Deputados e está em tramitação no Senado Federal, que aprovou o texto-base da proposta na semana passada, deixando para esta semana a votação de emendas mais polêmicas, que devem voltar à Câmara. Para que seja aplicada nas eleições do ano que vem, a reforma precisa ser sancionada até o dia 3 de outubro pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

O texto da reforma aprovado na Câmara inclui na Lei dos Partidos Políticos um parágrafo que estabelece que, em anos eleitorais, eles poderão aplicar ou distribuir pelas diversas eleições os recursos recebidos de pessoas físicas e jurídicas, desde que sejam obedecidos os limites estabelecidos para as doações feitas diretamente aos candidatos - de 2% do faturamento bruto, no caso de empresas, e de 10% dos rendimentos brutos, no caso de pessoas físicas, percentuais que têm por base sempre o ano anterior à eleição.

Até então, esses limites eram válidos apenas para doações feitas a candidatos. Já os partidos, pela lei atual, podem receber doações livremente. Ainda que os percentuais impostos aos candidatos passem a ser aplicados também aos partidos, no caso de distribuição de recursos em anos eleitorais - como pretende a reforma eleitoral -, a dificuldade na fiscalização da nova regra pode abrir a possibilidade de doações acima do permitido por lei.

Especialistas em legislação eleitoral apontam duas situações da reforma que deixam lacunas na fiscalização das doações. A primeira delas refere-se à prestação de contas dos candidatos e dos partidos. Por lei, os candidatos tem um prazo de 30 dias após a eleição para apresentarem sua contabilidade - que inclui as doações feitas por pessoas físicas e empresas, diretamente, e os recursos recebidos dos partidos. No entanto, a legislação não prevê a exigência de que os recursos transferidos pelos partidos tenham sua origem detalhada neste momento. A origem dos recursos recebidos pelos partidos só será identificada quando eles prestarem suas contas - o que acontece apenas no ano seguinte, até o dia 30 de abril. O problema é que a impugnação de candidaturas por conta de doações irregulares pode ser feita apenas até 15 dias após a diplomação dos eleitos, que ocorre em 15 de dezembro. "Se forem percebidas doações acima dos limites feitas a partidos e transferidas a candidatos no ano seguinte, nada mais poderá ser feito, pois não cabe mais nenhuma ação", diz o juiz eleitoral Márlon Jacinto Reis, presidente da Associação Brasileira dos Magistrados, Procuradores e Promotores Eleitorais (Abramppe).

A segunda situação é ainda mais complexa. Como o projeto de reforma prevê textualmente que os partidos podem transferir recursos de doações dentro dos limites impostos a candidatos "em ano eleitoral", nada impede que, se a proposta for aprovada, empresas e pessoas físicas façam doações de quaisquer valores a partidos até 31 de dezembro deste ano, por exemplo, e esse dinheiro seja transferido a candidatos em 2010. Ou seja, na prestação de contas feita pelos partidos em 2011, as doações detalhadas serão as recebidas em 2010 - e não as recebidas em 2009. "O projeto significa o fim da transparência no financiamento de campanhas que já foi possível obter com as decisões do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e a impossibilidade de discussão judicial sobre a licitude das doações", afirma Márlon Reis. "Ao que parece, a lei abre a possibilidade de doações ocultas", afirma o advogado Alberto Rollo, especialista em legislação eleitoral e presidente do Instituto de Direito Político, Eleitoral e Administrativo (Idipea).

Para o deputado federal Flávio Dino (PCdoB-MA), relator do projeto na Câmara, no entanto, a reforma pode trazer mais transparência às eleições. Ele cita, por exemplo, um dispositivo do projeto que exige que todo o material de campanha impresso contenha o CNPJ do contratante e o valor pago. A exigência não era prevista em lei, mas já era aplicada por conta de decisões do TSE. "Legalmente já se tem instrumentos para identificar o caixa dois em campanhas eleitorais", diz Dino.

A mudança proposta na minirreforma, de acordo com especialistas, deve estimular ainda mais as doações aos partidos, que cresceram nas últimas eleições. Segundo Eduardo Nobre, sócio fundador do Instituto de Direito Político e Eleitoral (IDPE) e advogado do escritório Leite, Tosto e Barros Advogados Associados, que atua em campanhas de diversos partidos e candidatos, em 2006, ao criar limites para a doação a candidatos, uma reforma na lei eleitoral acabou fazendo com que empresas e pessoas físicas passassem a doar para os partidos. Essas doações já têm sido alvo de várias ações judiciais pelas Procuradorias Regionais Eleitorais. Somente em São Paulo, a procuradoria identificou 2,7 mil casos de doações acima dos limites nas eleições de 2006 - tanto de pessoas físicas quanto de pessoas jurídicas. De acordo com o procurador regional eleitoral Luiz Carlos dos Santos Gonçalves, na época as ações judiciais não foram adiante porque o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) de São Paulo considerou que as provas das doações irregulares eram ilegais. A procuradoria havia obtido, com a Receita Federal, dados da receita bruta declarada de empresas sem que, para isso, tivesse autorização judicial - e a quebra de sigilo foi considerada ilegal.

Neste ano, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) fechou um convênio com a Receita e recebeu do fisco informações sobre o faturamento e os rendimentos das empresas e pessoas físicas de doadores nas eleições de 2006. Com base nesses dados, a procuradoria paulista entrou com ações judiciais contra candidatos e doadores que extrapolaram os limites. O TRE, no entanto, considerou que o prazo para a proposição de ações já havia expirado. A decisão agora caberá ao TSE, que já recebeu recursos de vários TREs do país sobre o tema.

Mesmo proibido, nepotismo resiste nos tribunais do País

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Embora proibido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) há quatro anos, o nepotismo ainda é prática comum nos tribunais do País. Atualmente, o CNJ investiga 39 casos de contratações de parentes no Judiciário. Cada procedimento envolve contingente variado de contratados que não passaram pelo crivo do concurso público. Só no Tribunal de Justiça da Paraíba, foram identificados 48 apadrinhados e outras 24 admissões estão sob suspeita. “Há resistência às normas contra o nepotismo, não só no Judiciário como em toda a administração pública", diz o ministro Gilson Dipp, corregedor nacional da Justiça. Para dificultar a descoberta de casos, servidores adotam o nepotismo cruzado - quando um emprega parente de outro e este contrata familiar daquele.

Mesmo proibido, nepotismo persiste e CNJ apura 39 casos em tribunais

Cada procedimento de investigação envolve inúmeros servidores que foram admitidos sem concurso público

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) investiga 39 casos de nepotismo no Judiciário. Cada procedimento envolve contingente variado de contratados que não passaram pelo crivo do concurso público. A mais recente inspeção do CNJ apontou nepotismo em larga escala no Tribunal de Justiça da Paraíba - foram identificados 48 apadrinhados e outras 24 admissões estão sob suspeita.

Desde que o nepotismo foi banido, em outubro de 2005, pela Resolução 7, o CNJ já abriu 203 processos relativos a nomeações violadoras do artigo 37 da Constituição, que trata da transparência, moralidade, honestidade e impessoalidade na administração pública.

Tribunais ainda relutam em acatar a diretriz do CNJ. "Há resistência às normas contra o nepotismo, não só no Judiciário como em toda a administração pública", declarou o ministro Gilson Langaro Dipp, corregedor nacional da Justiça.

Muitos casos de indicação e contratação de familiares de magistrados e servidores chegam ao conselho por denúncia anônima ou representação de entidades de funcionários do Judiciário que têm acesso aos expedientes. "Constatamos indícios de nepotismo nas inspeções que temos realizado nos Estados. São indícios não apenas de nepotismo como de nepotismo cruzado."

Nepotismo cruzado é quando um magistrado emprega a filha de outro e este contrata parente daquele. Há Estados em que também há troca de favores entre desembargador e deputado - aquele admite parente do parlamentar que, por seu lado, emprega familiar do juiz. O recurso dificulta a identificação de apadrinhamentos com verba pública.

"Estamos determinando aos tribunais que informem os detalhes de todo aquele percurso de grau de parentesco dessas pessoas, inclusive com agentes de outros órgãos da administração", anotou o corregedor. Ele disse que a verificação no Judiciário da Paraíba "mostrou algumas boas práticas, mas outras tantas irregularidades já conhecidas".

ASSOBERBADOS

"Os tribunais estão assoberbados de servidores e a Justiça de primeiro grau lançada quase que à míngua de instalações físicas", revela Dipp.

O conselheiro do CNJ Felipe Locke observa que "há muitas pessoas que trabalhavam em cargos comissionados que são parentes de juízes e de desembargadores e algumas ainda tentam continuar fazendo o que é irregular".

Dipp reconhece dificuldades em mergulhar nas mazelas do Judiciário. "É difícil. Tínhamos uma cultura muito grande da falta de transparência, da sensação de que o Judiciário e nós, juízes, estávamos acima do bem e do mal. Esse estigma está sendo quebrado pelo CNJ que faz um grande esforço, muitas vezes incompreendido por alguns magistrados."

Segundo ele, "com apoio da grande maioria dos juízes e simpatia da sociedade o conselho está conseguindo demonstrar que o Judiciário é um serviço público e que o juiz é um servidor público". "Como integrante de um poder, o juiz tem o dever de prestar contas a essa sociedade para a qual ele presta serviços."

Dipp aponta a má distribuição de recursos como fator negativo do poder. "As verbas do Judiciário são insuficientes e esse dinheiro é pessimamente administrado. As dotações orçamentárias da Justiça nos Estados são pequenas e muito mal administradas."

Para o ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal e do CNJ, existe "um ou outro ponto de resistência". Ele atribui "essas situações a alguma imprevisão ou insegurança jurídica". "Há dúvidas sérias que precisam ser dirimidas", observa o ministro. "O CNJ vem tentando esclarecer questões, por exemplo, ligadas a cargos em comissão de alguém que já tem emprego efetivo, ou seja, que se submeteu ao concurso público".

Segundo ele, o governo federal está preparando um decreto definindo regras contra o nepotismo em toda a administração pública. Mendes se reuniu com o ministro Jorge Hage, da Controladoria Geral da União. "O governo está elaborando decreto com base na súmula do Supremo, mas também tem suas dúvidas."

O presidente do STF disse que não acredita que "haja um quadro de resistência de forma genérica". "Pode haver um ou outro tribunal, essa prática (nepotismo) havia se disseminado e era considerada normal. Até a correção, às vezes, reclama algum tempo."

Ele avalia que, a partir da Resolução 7, "houve um grande avanço, uma ruptura com esse tipo de prática".

União concentra propaganda onde oposição tem mais força

Fábio Zanini
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


Redutos da oposição no Sul e Sudeste receberam no primeiro semestre tratamento privilegiado do governo na distribuição de propaganda de seus três principais programas.

O Sul, onde Lula tem os mais baixos índices de aprovação, recebeu mais de 70% dos anúncios em jornais sobre o PAC. Já a propaganda do Minha Casa, Minha Vida concentrou-se em SP, em proporção superior à população do Estado.

Redutos da oposição recebem mais publicidade do Planalto

Sul e Sudeste foram privilegiados em propagandas dos três principais programas federais

Definição de cidades e de órgãos para veicular os anúncios segue cruzamento dos objetivos de campanha com público-alvo, diz Secom

Redutos da oposição no Sul e Sudeste receberam no primeiro semestre tratamento privilegiado do governo na distribuição de propaganda de seus três principais programas: PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), Minha Casa, Minha Vida e Bolsa Família.O Sul recebeu mais de 70% dos anúncios em jornais do PAC e teve publicidade do Bolsa Família superior à sua proporção na população, em jornais e em rádios. Já o Minha Casa concentrou-se em São Paulo -capital e interior, também em proporção superior à população do Estado.

Os três programas estão no centro da estratégia eleitoral de Lula em 2010 para tentar fazer sua sucessora a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff.

A distribuição da publicidade dos programas está em planilha de 30 de julho que a Presidência enviou à Câmara dos Deputados, atendendo a requerimento apresentado pelo deputado Edson Aparecido (PSDB-SP). São 52 páginas assinadas por Ottoni Fernandes Jr., responsável pela publicidade oficial na Secretaria de Comunicação (Secom) da Presidência.

À Folha Fernandes afirmou que "a definição de veículos e cidades é orientada pelo cruzamento dos objetivos das campanhas com o público-alvo a ser atingido". De acordo com ele, "inclusão e diversificação são diretrizes que orientam a comunicação de governo".A planilha refere-se aos meses de março a julho deste ano e lista todos os órgãos de mídia que receberam anúncios.

A região Sul, onde Lula tem seus mais baixos índices de aprovação, tem 70,61% dos jornais que receberam anúncios do PAC. A proporção é muito superior aos 14,54% de sua fatia da população brasileira. O Sul ficou ainda com 23,51% das rádios onde houve anúncio do PAC e 22,46% das que tiveram propaganda do Bolsa Família.

Em comparação, o Nordeste, com 28,01% da população, teve apenas 3,23% dos jornais com anúncios do PAC e 15,4% das rádios que tiveram publicidade do Minha Casa. Segundo Fernandes, a distribuição segue a proporcionalidade do número de rádios nas regiões. "De acordo com o MídiaDados 2008, a região Sul concentra 23,4% das emissoras de rádio", diz.

No caso dos jornais, ele afirma que o contato com os veículos para oferecer publicidade é feito por meio de associações regionais dos veículos, e que o Sul tem algumas das associações mais estruturadas.

Um terceiro critério, de acordo com o governo, é o número de obras e projetos em curso em determinado Estado.

Em São Paulo, governado pelo PSDB, há concentração dos anúncios de rádio do Minha Casa, programa habitacional que deve ser o carro-chefe da campanha de Dilma. Das 227 emissoras do país que tiveram esses anúncios, 119 são paulistas (52,42%). O Estado tem 21,66% da população do país.

No Brasil, foram 80 cidades a receber publicidade em rádio do programa habitacional (em várias cidades, mais de uma emissora foi atendida). Pertencem ao Estado de São Paulo 55 delas (68,75%).

No Estado, Dilma tem algumas de suas piores taxas de intenção de voto, variando de 11% a 14%, dependendo do cenário, segundo o Datafolha.

Segundo a Secom, o Estado é o que está "mais preparado" para projetos habitacionais e por isso recebeu esse tratamento diferenciado.

Marcas

O ofício da Secom não informa quanto foi pago a cada veículo, só o gasto total de cada programa no primeiro semestre. Os valores mostram como é importante para o governo Lula investir nessas três "marcas". Juntas, têm gasto previsto para 2009 de R$ 59,92 milhões, ou um terço de toda a verba publicitária da Presidência para o ano, de R$ 187,5 milhões.

A propaganda do PAC tem custo no ano de R$ 33,2 milhões. Equivale a campanha de ponta no mercado privado de publicidade. Segundo estimativas da área, a verba para promover o sabão em pó Omo em 2009, por exemplo, é de cerca de R$ 35 milhões. "É difícil dimensionar a verba do governo em comparação com o mercado privado. O governo tem obrigação de prestar contas de suas ações e não tem concorrentes", diz o diretor de Marketing da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing), Emmanuel Publio Dias.

Orçamento tem R$ 10 bi de despesas sem receita

DEU EM O GLOBO

Governo deixa para Congresso resolver como cobrir o rombo

Apesar de ter enviado ao Congresso a proposta de Orçamento apostando num aumento de arrecadação no último ano do presidente Lula, o governo federal não fez previsão de receita para honrar despesas que podem chegar a R$ 10 bilhões. Ficou fora da conta, por exemplo, o repasse para os estados como compensação pelas perdas nas exportações e a previsão para reajuste real aos aposentados que ganham acima do salário mínimo. Com pouca margem para remanejamento, a proposta também não contempla emendas de bancadas parlamentares.

Relator admite pouca margem de manobra

Já oposição diz que vai insistir na briga pelos repasses da Lei Kandir para os estadosRelator do Orçamento de 2010, e já prevendo as dificuldades de remanejamento, o deputado Geraldo Magela (PT-DF) defende a redução do valor das emendas individuais para R$ 8 milhões, como forma de garantir a liberação.

— Vai ter muita resistência (à redução), mas é melhor do que a possibilidade de não ter a liberação.

Sendo ano eleitoral, é melhor gerar menos expectativas. Deixaram pouquíssima margem para busca de novos recursos e tenho que trabalhar sabendo dessas dificuldades — disse Magela.

Vice-líder do governo no Congresso e representante do governo nas negociações dentro da Comissão Mista de Orçamento, o deputado Gilmar Machado (PT-MG) foi ao plenário, quinta-feira, para tentar acalmar os colegas.

— O que o governo enviou para cá em relação a emendas cobre apenas as individuais, isso com uma redução de R$ 2 milhões por parlamentar.

Lógico que vamos fazer as correções, mas teremos que enfrentar também o debate das emendas de bancada e de comissão, que não tem previsão nenhuma de recurso — disse Machado.

A cobrança sobre a recomposição das perdas da Lei Kandir, liderada pelos governadores, foi reforçada semana passada pelos tucanos.

Entre eles, o governador de Minas Gerais, Aécio Neves.

— É da maior gravidade para a própria economia do Brasil, mas principalmente para Minas e os demais estados exportadores, a omissão do governo federal em relação aos recursos para a Lei Kandir.

Pela primeira vez, a proposta orçamentária do governo não conta com esses recursos. Isso é extremamente grave, porque essa responsabilidade deve ser compartilhada entre União e estados — reclamou Aécio.

O líder do PSDB na Câmara, José Aníbal (SP), disse que o partido vai brigar para garantir esses recursos no Orçamento, e lembra que até estados governados pelo PT, como Bahia e Pará, perdem com a decisão de Lula. José Serra, de forma mais discreta, também tem reclamado.

— Eles não respeitaram o acordo feito aqui e já vetaram na LDO. Lula trata com desdém o Parlamento.

Mas vamos lutar, negociar — disse o líder do PSDB.

Os governistas no Congresso dizem que esse é o menor dos problemas na proposta orçamentária enviada pelo governo.

— A Lei Kandir será resolvida no debate do Orçamento, como ocorreu todos os anos. Quero dizer que esse ano o governo do presidente Lula pagou a Lei Kandir no primeiro semestre. Mais de R$ 1,9 bilhão já chegou em todos os estados, inclusive em Minas, que recebeu mais de R$ 200 milhões — prometeu o também mineiro Gilmar Machado.