segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Almir Pazzianotto Pinto :: À sombra do AI-5

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Os espíritos do mal que presidiram a redação dos atos institucionais, ao longo do regime militar, voltaram a pairar sobre Brasília.

O Decreto nº 7.037, de 21 de dezembro de 2009, cujos sete artigos se fazem acompanhar por prolixo anexo, tem tudo de edito destinado a atemorizar a Igreja, a imprensa, os proprietários rurais, o agronegócio e todas as pessoas sensatas que se acautelam diante dos rumos que desejam tomar setores do governo.

A Constituição federal autoriza o presidente da República a baixar decretos "sobre organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação e extinção de órgãos públicos", e sobre "extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos". Consentido lhe é, também, expedir decretos destinados à fiel execução de leis dependentes de regulamentação. Nada além disso, sob risco de incidir na Lei de Responsabilidade (artigo 85 da Constituição federal).

Como legado do período autoritário, o presidente goza da prerrogativa de adotar medidas provisórias, em casos de relevância e urgência. Impõe-se-lhe, todavia, submetê-las ao Poder Legislativo, que decidirá se as converte em lei, uma vez que, segundo a garantia constitucional, "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei".

A primeira questão suscitada pelo Decreto nº 7.037 consiste em saber por que o presidente da República não se serviu de medida provisória e se utilizou de ato cujo raio de ação é mais restrito. Acredito que os responsáveis pelo texto tenham procurado evitar a remessa ao Congresso Nacional, onde seria intensamente bombardeado, até se reduzir a pó.

A questão seguinte diz respeito à técnica legislativa. A Lei Complementar (LC) 95/98 prescreve como elaborar, redigir, alterar e consolidar leis, e se aplica, no que couber, a decretos do Executivo. Ordena a LC que, "excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto". E que "a lei não conterá matéria estranha ao seu objeto, ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão".

Ora, o Decreto nº 7.037, não bastasse a linguagem obscura e enviesada, inadequada a documento de cunho jurídico-político, é exemplo singular de amontoado de temas, pois trata da reforma agrária, passa pela censura à imprensa, inibe a liberdade de religião, legaliza o aborto, revoga a Lei da Anistia e procura impedir que o proprietário rural invadido e esbulhado se utilize rapidamente de legítima medida judicial para se proteger da violência sofrida.

Dir-se-ia que alguns ministros de Estado, tomados pelo espírito do professor Gama e Silva, resolveram resgatar a memória do Ato Institucional nº 5 (AI-5), para perturbar a tênue tranquilidade que até então pairava sobre o cenário político.

O decreto ora é óbvio, como na Diretriz 5 do Eixo Orientador nº II, que trata da "valorização da pessoa humana como eixo central do processo de desenvolvimento", ora se vale de eufemismos, de que é bom exemplo a proposta de legislação destinada a proibir "que logradouros, atos e próprios municipais e prédios públicos recebam nomes de pessoas que praticaram crimes de lesa-humanidade, bem como determinar a alteração de nomes que já tenham sido atribuídos". O que se pretende renomear? A Rodovia Castelo Branco? O Elevado Costa e Silva? A Rua General Milton Tavares? Não nos esqueçamos de que Getúlio Vargas, um dos raros estadistas da História latino-americana, foi ditador durante 15 anos. E que em seu governo permaneceu encarcerado, sob o vão de uma escada, Luís Carlos Prestes e foi deportada para a Alemanha Olga Benário. E daí? O governo almeja alterar milhares de denominações públicas que homenageiam o criador da legislação social e da Petrobrás, para ficarmos em dois exemplos apenas?

O presidente Lula aparenta ser avesso a práticas ditatoriais. Basta analisar a forma como conduz o governo, tecendo alianças com variados segmentos, para dar sustentação à governabilidade.

Não seria no início do fim do segundo mandato, e empenhado na candidatura da ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, que voluntariamente provocaria as reações suscitadas pelo Decreto 7.037, salvo pelo fato de não havê-lo examinado com a atenção que documento desse teor exige.

Houvesse o presidente se debruçado sobre o longo texto, teria percebido que não se trata de decreto propriamente dito, ou seja, da medida prevista na Constituição, dentro dos seus limites. Sua Excelência avalizou insólito programa de governo inspirado em ideologia extremista, inimiga do Estado de Direito Democrático, do direito de propriedade e da livre-iniciativa, da liberdade de credo e de imprensa, e contrário ao princípio federativo em que se assenta a República.

Fica nítida a tentativa de reescrever a História, com a anulação das conquistas no terreno das liberdades e da segurança jurídica, conseguidas desde 1985 e, sobretudo, com a promulgação da Constituição de 1988. Ela é a lei da anistia ampla, geral e irrestrita, subscrita por personalidades tão distintas como Ulysses Guimarães e Luiz Inácio Lula da Silva, Inocêncio Oliveira e Paulo Paim, Abigail Feitosa e Albano Franco, Haroldo Lima e Amaral Netto, Francisco Amaral e Gandi Jamil.

A possibilidade de vitória petista nas próximas eleições acaba de sofrer forte abalo sísmico. O decreto conseguiu aquilo que me parecia impossível: a repentina mobilização de ampla parcela da opinião pública, que deixa de ser silenciosa e passa à vigorosa defesa de direitos fundamentais, sob ameaça.

Almir Pazzianotto Pinto, advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho

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