segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Luís XIV tropical :: Marcelo de Paiva Abreu

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Nunca neste país o poder político esteve tão concentrado numa só pessoa como hoje no presidente Lula. Essa afirmação, ao contrário de muitas gabolices do presidente, é verdadeira e tem implicações cruciais para o destino do País nas próximas décadas.

Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek (JK) não se aproximaram da popularidade de Lula. O Getúlio relevante, de 1951-1954, só foi popular na eleição e no início do governo. JK tinha dúvidas quanto à sua popularidade, em face do populismo de centro-direita encarnado por Jânio Quadros. A sua estratégia de volta ao poder em 1965 envolveu o sacrifício de Henrique Lott, candidato do governo na eleição. Juscelino imaginava que o tempo cuidaria de Jânio. Cuidou de Jânio e dele também.

Lula é o mais popular presidente na história do Brasil. Seu problema é como fazer uso eficaz desse cabedal.

Escândalos envolvendo o Partido dos Trabalhadores (PT) comprometeram a imagem do partido que se pretendia inspiração para a consolidação de outros partidos políticos e a redução do fisiologismo na vida política do País. O PT mostrou ser bem parecido com os demais partidos.
Esses desdobramentos criaram condições ideais para que aflorasse o Lula líder populista, com tintas de Luís XIV, em detrimento do Lula do PT.

O seu poder pessoal, já marcante antes da crise do partido, se reforçou. O protagonismo presidencial dominou as ações do governo dentro e fora do País. No País, o presidente escolheu a candidata de seu partido à eleição presidencial e adotou como refrão afirmações ao estilo de "nunca antes neste país", frequentemente sem qualquer compromisso com os fatos. Antes mesmo da atual campanha eleitoral da ministra Dilma Rousseff, o presidente já estava engajado em campanha eleitoral permanente, pouco interessado em sutilezas quanto ao que diferenciaria interesses de governo, da coalizão partidária dominante ou do País.

O protagonismo externo tem envolvido opções questionáveis, como a "relação estratégica" com a França, as tertúlias com o neobolivarianismo ou com o neoperonismo e a intimidade com o regime iraniano. Como pano de fundo, o emblemático anseio por um lugar no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU).

A adequação do monarca absolutista ao regime republicano não é trivial. Dada a extensão indefinida de seus "mandatos", pois só a morte determinaria sua sucessão, monarcas podiam se dar ao luxo de acompanhar o "l"Etat c"est moi", de Luís XIV, com o "après moi, le déluge", de Luís XV (ou talvez de Madame de Pompadour) - "o Estado sou eu" e "depois de mim, o dilúvio", ou seja, "danem-se".

O presidente Lula gosta da primeira parte, mas não da segunda, pois a Constituição brasileira estabelece regras sobre a duração de mandatos e as possibilidades de reeleição. Dadas as dificuldades de reforma constitucional, o uso ótimo do capital político do presidente revelou ser a eleição do seu sucessor e a sua volta nos braços do povo em 2014.

A implementação dessa estratégia não é trivial. O problema óbvio é a capacidade de Lula eleger o sucessor, ou seja, de transformar a sua popularidade em votos para Dilma Rousseff. Imagine-se que Dilma Rousseff seja eleita. Para Lula, uma grande vitória e, também, espinhosos problemas a resolver. Como estabelecer a tutela da nova presidenta? É difícil ver Lula como mentor direto da sua candidata vitoriosa.

Como seria exercida a tutela indireta de Lula? Quão propensa a aceitá-la será Dilma Rousseff? Qual será a efetiva influência do seu nacionalismo exaltado, externado em palanque, sobre as políticas de seu governo? A política de estabilização poderá ser comprometida? Sem o protagonismo de Lula será difícil manter a atual política externa baseada em muitos fogos de artifício. E, finalmente, se o exercício da Presidência classicamente desperta desejos de reeleição, o que assegura que Dilma Rousseff abrirá espaço para Lula em 2014? São complexas as relações entre criador e criatura.

Por outro lado: o que fará Lula, se José Serra for vitorioso? É difícil imaginar que volte à posição de líder e inspirador do PT, que ocupou antes da vitoriosa eleição de 2002. Inclusive porque, como já foi dito, o PT em 2011 será muito diferente do PT pré-2003. Não será nada fácil justificar o fracasso da sua escolha pessoal de sucessor.

As dificuldades da sua posição podem ser talvez ilustradas por especulações quanto à sua postura relativa à política econômica. Vai retroceder para as posições ridículas da oposição pré-2003 ou vai manter coerência em relação ao que se implementou enquanto foi presidente? Tudo, é claro, dependendo de quão "desenvolvimentista" possa ser a política econômica do candidato vitorioso.

De qualquer forma, a proverbial capacidade política do presidente será duramente testada na sua volta à oposição.

Lula, em 2010, vai ter bem mais trabalho do que carregar caixa de isopor. Vai enfrentar uma crise militar séria decorrente de tentativas canhestras de rever a legislação relativa à Lei da Anistia. Agravada, no caso da Aeronáutica, pelas peripécias em relação à escolha dos novos caças e pela explicitação de que os critérios políticos serão dominantes na decisão final. No terreno da política externa, diversas posições adotadas pela diplomacia brasileira serão agora testadas com a participação do Brasil como membro eleito do Conselho de Segurança da ONU no próximo biênio.
E, além disso, terá de eleger Dilma e assegurar que a sua influência no novo governo seja dominante.

É muito. Vai testar os limites de seus inegáveis talentos.

Marcelo de Paiva Abreu, Ph.D. em Economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio

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