segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

'Lula não deveria se unir a governos criminosos', diz Nobel da Paz iraniana

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Adriana Carranca

Shirin Ebadi tem um recado para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva: "Diga a ele que não deveria fazer amizade com governos criminosos." O apelo é de uma Nobel da Paz e ela se refere à aproximação do Brasil com o presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, selada por sua visita oficial ao País, em novembro, que deve ser reforçada com a ida de Lula ao Irã, agendada para junho.

Desde as eleições presidenciais que levaram Ahmadinejad ao segundo mandato, provocando protestos por possíveis fraudes nas urnas, Shirin está refugiada com a família na Alemanha. Em Teerã, 40 manifestantes foram mortos em confronto com a polícia, segundo números oficiais - organizações civis falam em mais de 80. Cerca de 100 opositores foram julgados desde agosto, 5 deles condenados à morte. Na quarta-feira, o governo iraniano anunciou para o dia 7 o julgamento de sete líderes da fé bahai (leia abaixo).

"Será que ele (presidente Lula) não vê o que está acontecendo nas ruas de Teerã? Como pode fazer amizade com um governo que mata seus jovens e estudantes, sua gente?", diz.

As amizades do presidente Lula preocupam Shirin por ele ocupar uma posição de destaque cada vez maior no cenário internacional. Em fevereiro, o Conselho de Segurança da ONU discutirá novas sanções contra o programa nuclear do Irã, e o Brasil, que desde o dia 1º ocupa vaga não-permanente no órgão, terá de se posicionar. No lugar do embargo econômico, "que só faz prejudicar os iranianos", Shirin defende o isolamento político do presidente Ahmadinejad.

Ela foi a primeira mulher muçulmana a receber um Nobel da Paz, também o primeiro concedido a um iraniano, em reconhecimento por seu trabalho na defesa dos direitos humanos em um regime que triunfou com sua ajuda e, mais tarde, quase lhe tirou a vida.

Shirin era, então, a primeira juíza e única representante feminina na corte do monarca xá Reza Pahlevi, visto pela população como corrupto, que esbanjava gastos em festas regadas a champanhe francês enquanto os iranianos empobreciam, além de impor costumes ocidentalizados demais para um povo com 2,5 mil anos de história. Foi contra tudo isso que Shirin se colocou, motivada pela ideia de democracia islâmica estampada na figura do carismático aiatolá Ruhollah Khomeini, que prometia resgatar o orgulho iraniano e princípios de igualdade e Justiça com a Revolução de 1979.

Estava enganada. Triunfado o regime, Shirin foi impedida de exercer o cargo de juíza e viu-se em um limbo supostamente imposto pela religião. Como advogada independente passou a defender os direitos de presos políticos e mulheres contra decisões da Justiça agora sob domínio dos aiatolás, assim como a política e a economia. Mais tarde, veria seu nome em uma lista de jurados de morte, como relata no livro, não publicado no Brasil, Iran Awakening (O Despertar do Irã, em tradução livre).

"O Nobel serviu para mim como um escudo de proteção. Mas, ainda tentam me calar, ameaçando meus parentes e colegas de trabalho". Em entrevista ao Estado, por telefone, Shirin relata a situação no Irã, seis meses após as eleições, e pede aos brasileiros que "ouçam a voz dos iranianos".

Como está a situação no Irã hoje?

Os protestos aumentam a cada dia. Em todas as cidades, e não só em Teerã, o povo se levanta e vai às ruas contra o governo. Mas, todas as manifestações têm sido contidas com grande violência. O governo fala em 5 mil presos, mas sabemos que são mais. Muitos foram atingidos por tiros nas ruas. Na Universidade de Teerã, homens armados invadiram os dormitórios às 3 horas, quando os estudantes dormiam. Cinco deles foram assassinados. A situação dos direitos humanos vem piorando nos últimos cinco anos (primeiro ano de Ahmadinejad na presidência), mas após as eleições se tornou calamitosa.

A sra. defende uma intervenção?

Sou contra toda e qualquer intervenção externa porque isso pode piorar muito a situação no Irã. Sanções econômicas só prejudicam o povo. Um ataque militar seria catastrófico para as condições humanas. A mudança terá de partir de dentro. E ela já está acontecendo. Só o que esperamos é que a comunidade internacional ouça a voz dos iranianos.

Na prática, o que pode ser feito?

Me surpreende que o Brasil... (Ela faz uma pausa, depois, segue exaltada) Será que o povo brasileiro sabe o que o governo iraniano faz nas ruas ou às escondidas? Será que não se pergunta porque seu governo despreza as violações dos direitos humanos no Irã? Me entristeceu muito ver o presidente Lula reconhecer publicamente a vitória de Ahmadinejad para um segundo mandato tão rapidamente. Como pôde fazer isso? Como seu presidente pode se unir a um governo que tortura e mata seus estudantes e jovens, sua gente nas prisões, oponentes e minorias? Diga aos brasileiros que peçam ao presidente que não vá ao Irã ou convide Ahmadinejad ao Brasil. Lula não deveria fazer amizade com governos criminosos.

A sra. já falou ao presidente?

Não tenho autoridade para falar com Lula. Então, falo ao povo brasileiro.

A sra. teme voltar ao Irã?

O Nobel serviu para mim como um escudo de proteção. Mas eles tentam me pressionar ameaçando meus parentes. Esse governo sequestrou minha irmã e a manteve em condições terríveis para que eu me calasse. Perceberam que não adiantaria (Nooshin Ebadi foi solta há uma semana após 17 dias na prisão). Desde as eleições, atuo junto ao Conselho de Direitos Humanos da ONU que, em dezembro, condenou o Irã por violações antes e após a votação.

A Justiça funciona no Irã?

Em algumas situações, sim. Mas, não nas questões políticas ou religiosas. A Justiça no Irã está contaminada.

O Irã marcou para dia 12 o julgamento dos líderes bahais...

Eles são sete e foram presos há dois anos. Quando os capturaram não havia acusação formal contra eles e nenhum advogado teve coragem de defendê-los. Os órgãos de inteligência do Irã nos ameaçavam. Mesmo assim, eu e três companheiros aceitamos o caso. Por um ano, não permitiram que tivéssemos acesso ao processo, pois não havia provas nem autos do processo. Nesse tempo, não pude vê-los. Só recentemente um dos advogados pôde visitá-los e soubemos que são acusados de espionar para Israel e os EUA, o que configura ameaça à segurança nacional, crime que prevê pena capital.

Eles podem ser executados?

A atenção do mundo para a situação dos bahais no Irã é muito grande? Eles não teriam coragem?

CRONOLOGIA

Junho - Mahmoud Ahmadinejad é declarado reeleito com 62,6% dos votos. O opositor Mir Hossein Mousavi exige novo pleito.
Manifestantes tomam as ruas contra supostas fraudes nas urnas e Teerã vive a maior manifestação popular desde a Revolução Islâmica de 1979. Confrontos entre manifestantes e a polícia deixa entre 40 e 80 mortos e milhares são presos. Jornalistas estrangeiros são proibidos de sair às ruas e aconselhados a deixar o país. No Brasil, o presidente Lula parabeniza Ahmadinejad pela vitória

Agosto - Ahmadinejad assume a presidência no segundo mandato Setembro - Irã admite nova estação de enriquecimento de urânio na cidade sagrada de Qom e testa mísseis de médio e longo alcances

Outubro - Irã recebe proposta do Conselho de Segurança da ONU e de potências para enviar seu urânio enriquecido a terceiros países em troca de combustível nuclear

Novembro - A AIEA condena o Irã por manter segredo sobre estação de Qom. Teerã diz que motivação é política e anuncia construção de dez novas instalações nucleares. Ahmadinejad visita o Brasil

Dezembro - Pelo menos oito pessoas são mortas em choques entre manifestantes e a polícia, no dia da morte, por causas naturais, do aiatolá dissidente Hossein Ali Montazeri. Ativistas e opositores são presos. A polícia fecha o Centro de Defensores dos Direitos Humanos, fundado pela Nobel da Paz de 2003, Shirin Ebadi

Janeiro - Organizações de direitos humanos internacionais são banidas do Irã. Governo anuncia julgamento de líderes bahais

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