domingo, 14 de fevereiro de 2010

Uma só empresa leva 50% da verba oficial das escolas

DEU EM O GLOBO

Análise do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) sobre grandes movimentações bancárias revela um personagem do carnaval que sempre viveu entre plumas e paetês, mas é pouco conhecido do grande público que vai hoje à Sapucaí. Jorge Francisco, o Chiquinho do Babado, é dono da cadeia de lojas Babado da Folia, que fatura hoje quase 50% da verba de R$ 4,2 milhões, dada pela prefeitura às escolas de samba do Grupo Especial, segundo revela a análise da prestação de contas das agremiações feita por CHICO OTAVIO e ALOY JUPIARA. Em troca, Chiquinho fornece notas fiscais que ajudam oito das 12 escolas a fechar as contas do dinheiro público: “Não sei se sou o maior. Temos uma fatia do mercado. Os colegas que tenho nas escolas facilitam o trabalho.”

O barão do carnaval

Comerciante fica com metade da subvenção paga pela prefeitura às escolas do Grupo Especial

Chico Otavio e Aloy Jupiara

A cabeça descarnada de alce que orna a parede, no fundo da loja, contrasta com o colorido de tecidos, plumas e outras mercadorias de carnaval. Jorge Francisco, o proprietário, tem uma explicação para o adorno singular.

— Cliente caloteiro vai parar ali — diz, apontando para a carcaça de chifres enormes.

No mundo do samba, Jorge Francisco é Chiquinho do Babado, dono da cadeia de lojas Babado da Folia. Sua desenvoltura é tão grande nas quadras e nos barracões que os carnavalescos, principais clientes, nem se importam com a brincadeira com o alce e a inevitável alusão às preferências sexuais de alguns.

Eles sabem que Chiquinho é um cara do babado.

A análise da prestação de contas das escolas de samba, relativa ao contrato de prestação de serviços (antiga subvenção) celebrado no desfile de 2009, transforma esse ex-vendedor de pastéis de Padre Miguel num barão do carnaval. Dos R$ 4,2 milhões despejados naquele ano pela prefeitura nos cofres das escolas (excluídos ISS e a taxa de administração paga à Liga das Escolas de Samba), suas lojas ficaram, sozinhas, com R$ 2 milhões.

Jorge Francisco é também um cara do babado no banco de dados do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), unidade de inteligência do Ministério da Fazenda. Ele aparece na lista de pessoas físicas e jurídicas que fizeram saques anormais em dinheiro vivo (valores elevados), na boca do caixa, das contas das escolas de samba. Para investigadores desse tipo de atividade, os saques podem ser indício de lavagem de dinheiro.

A subvenção ou contraprestação do carnaval, espécie de cachê pago pela prefeitura às escolas para fazer o espetáculo, por ser dinheiro público (diferentemente de outras receitas da Passarela do Samba), obriga os favorecidos a justificar os gastos.

Em 2009, cada escola recebeu R$ 400 mil, mas prestou contas de R$ 361 mil, por destinar 5% à liga, como taxa administrativa, e mais 5% ao recolhimento de ISS.

Frente ao conjunto de recursos que engorda as escolas do Grupo Especial, proveniente de venda de ingressos, publicidade, ajuda pública e direitos de transmissão, R$ 361 mil não representam tanto. Mas um exame das notas fiscais arquivadas na sede da Riotur escancara a falta de intimidade das agremiações com as obrigações contábeis.

Com uma diferença de apenas um real, as prestações de contas da Beija-Flor de Nilópolis e da Unidos do Porto da Pedra em 2009, por exemplo, foram iguais.

Pelas notas fiscais apresentadas à Riotur, a Beija-Flor gastou R$ 50 mil na Casa João Gandelman Armarinho, R$ 99.999 na J.F. 300 Comércio e Confecções de Enfeites, R$ 50 mil na O.M.F. Confecção e Comércio de Enfeites e R$ 162 mil na Ferreira Santos Confecções e Comércio de Enfeites. Já a Porto da Pedra declarou ter gastado R$ 50 mil na João Gandelman, R$ 100 mil na J.F. 300 (um real a mais do que a Beija-Flor), R$ 50 mil na O.M.F. e R$ 162 mil na Ferreira Santos. Outro detalhe une as duas escolas: as quatro empresas pertencem a Chiquinho, o que o torna fornecedor único de ambas.

Das 12 escolas do Grupo Especial, cinco tiveram Chiquinho, pelo menos nas despesas pagas com a subvenção da Riotur, como fornecedor exclusivo ou majoritário. Além da BeijaFlor e da Porto da Pedra, integram a lista a Vila Isabel (100% das compras), Mocidade (70%) e Império Serrano (58%). Em outras três, ele foi o maior recebedor: Mangueira (36%), Unidos da Tijuca (28%) e Salgueiro (28%).

As despesas restantes das agremiações que não compraram exclusivamente com Chiquinho são picadas — ao contrário do que se verifica nas notas da rede Babado da Folia (nome de fantasia das lojas do comerciante). Nelas, os preços cobrados por tecidos, miçangas, paetês e centenas de outros produtos são sempre redondos, como os R$ 100 mil que encabeçam os gastos do Salgueiro, numa relação de despesas na qual o valor de Chiquinho é único recheado de zeros.

O comerciante, contudo, desconversa quando é provocado a falar sobre o fornecimento exclusivo: — Não sei se sou o maior.

Temos uma fatia do mercado.

Os colegas que tenho nas escolas facilitam o trabalho.

Além de vender, presto assessoria a eles também.

Como a liga e as escolas já ficam com 93% da arrecadação com a venda de ingressos (receita de R$ 41 milhões só no ano passado), fora a publicidade e outras fontes de recursos, duas ações civis públicas movidas pelos promotores de Tutela Coletiva, referentes aos carnavais de 2007, 2008 e 2009, classificam a contraprestação (subvenção) às escolas como dupla remuneração, portanto ilegal. Eles concluem que os contratos da prefeitura com a liga “estariam ensejando o enriquecimento sem causa da referida agremiação”.

Chiquinho do Babado já esteve do outro lado do balcão. Como chefe do barracão da Mocidade, escola onde passou 20 anos, era o responsável pelas compras de carnaval. Ele alega que, na época, percebeu o descompasso entre as necessidade das agremiações e o material oferecido pelas lojas especializadas, razão pela qual resolveu mudar de lado: — Sentia um vácuo. Os fornecedores não acompanhavam a evolução das escolas.

Jorge Francisco era ainda o Chiquinho do Pastel, por vender o quitute nos campos de várzea da região, quando chegou à Mocidade, junto com Castor de Andrade, em 1974. Naquele ano, o carnavalesco Arlindo Rodrigues apresentou enredo “A festa do Divino”, dando à escola um promissor quinto lugar.

Pela força física e a experiência então recente no Exército — servira no Regimento de Cavalaria Andrade Neves —, ele foi encarregado por Castor de cuidar da portaria da quadra.

Aos poucos, Chiquinho foi galgando postos e conquistando a confiança do chefe, até chegar ao comando do barracão, cargo que hoje compara ao de diretor de Carnaval, estratégico para a escola: — Antes de Castor, a Mocidade era conhecida só pela bateria. Ele deu uma injeção na escola. Foi uma figura importante não só para a Mocidade, mas para o carnaval do Rio.

Chiquinho montou o próprio negócio no início dos anos 1990. Ele diz que comprou a loja Sobradão do Carnaval, na Saara, de Piná, a exdestaque da Beija-Flor. Nesse ponto, há uma pequena divergência entre os dois. Enquanto Chiquinho afirma que a compra foi a sua estreia no negócio, Piná sustenta que o colega de comércio só adquiriu a sua loja depois de ser seu gerente por um período, no qual o estabelecimento acumulou prejuízos.

Hoje, Chiquinho é um personagem que transcende a Mocidade. Em ensaios, puxadores de escolas costumam cobri-lo de homenagens. Este ano, com a camisa da diretoria, ele vai desfilar por Santa Cruz, Beija-Flor, Salgueiro, Mocidade e Porto da Pedra.

Porém, ao contrário da liga, que se autointitula a única capaz de organizar o carnaval, Chiquinho não pode dizer que é único no fornecimento de plumas e paetês.

— Ninguém pode querer ficar com o bolo sozinho.

Tem fatia para todo mundo — garante Piná.

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