terça-feira, 27 de abril de 2010

Marx sem Lenin:: Renato Janine Ribeiro

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Não há dúvida de que Marx foi um pensador de esquerda. Isso quer dizer duas coisas: primeiro, ele foi um pensador cujas ideias - como a importância da economia ("condições materiais de existência") na vida social - influenciaram também outras famílias políticas.

Segundo, foi um político cujo nome foi fartamente invocado pelos partidos comunistas e/ou marxistas-leninistas no último século. Mas talvez esses partidos não passassem num exame sobre o pensamento de Marx.

Resumirei esse pensador complexo em três ideias fortes, que estão longe de esgotá-lo, mas são essenciais. A primeira: deve ser extinta a propriedade privada dos meios de produção.

Eles devem pertencer à sociedade, e não a indivíduos. É claro que por meios de produção não se entende a casa, o carro, os móveis, mas bens de impacto maior. É esse o ponto que coloca Marx à esquerda e ainda hoje desperta a ira dos anticomunistas, que receiam perder suas propriedades.

Mas vejamos uma segunda ideia-chave. Geralmente a esquerda se pauta pela defesa de um Estado atuante na economia. Até se distingue esquerda e direita pelo papel do Estado na vida econômica. Ora, Marx não defende o Estado máximo. Nem o Estado mínimo, é óbvio. O que ele defende é o Estado nenhum. A supressão do Estado é um princípio fundamental para ele, que aí se aproxima dos anarquistas. O Estado seria um aparelho repressor. Por isso, Marx não queria um Estado se metendo na vida pessoal ou no que quer que seja. As associações de produtores - isto é, dos trabalhadores tanto produzindo quanto organizando a produção - deveriam assumir as funções que atribuímos ao Estado e que ainda fossem necessárias. Quanto ao controle da vida sexual, da moral etc., nada de Estado, nada de polícia.

Vemos que esse Marx está muito longe do comunismo do século 20! Ficará ainda mais longe dele se lembrarmos uma terceira ideia do pensador alemão. Os modos de produção - o capitalismo e, antes dele, o feudalismo - vivem enquanto são eficazes. Quando um deles não dá mais conta de organizar a produção, é substituído. É um processo traumático, demorado, mas que acontece. O grande exemplo é a vitória do capitalismo sobre o feudalismo. Custou séculos, mas se realizou.

No futuro, esperava Marx que o socialismo (a cada um segundo o seu trabalho) e, depois, o comunismo (de cada um segundo suas possibilidades, a cada um segundo suas necessidades) se mostrariam mais eficazes que o capitalismo. Quando este esgotasse sua capacidade de organizar a produção, também passaria sua vez. Um exemplo: se o capitalismo, por seu "instinto selvagem", for predatório a ponto de ameaçar a sobrevivência do planeta (esse é um exemplo meu, mas que ilustra como atualizar seu pensamento para os dias de hoje. Fernando Gabeira não concorda e acha que o capitalismo pode se adaptar a uma economia verde e sustentável).

Ora, como fica o comunismo do século 20 - e o pouco que dele resta no 21, talvez apenas Cuba, porque China e Vietnã se abriram à economia de mercado e a Coreia do Norte não passa de uma ditadura de família - no quesito da capacidade de organizar a produção?

Quando Castro reprime até mesmo restaurantes simples mantidos por famílias, porque estariam instilando o veneno do capitalismo no "homem novo" cubano, o que ele nos mostra? Simplesmente que o socialismo lá implantado não é mais eficaz que o capitalismo.

Por isso, o Estado cubano se fortalece, em vez de rumar para sua extinção. E se fortalece no que tem de pior: a polícia, a repressão.

Marx falou de partidos e falou, também, na revolução armada como meio para tomar o poder. Mas esse não é o cerne de seu pensamento. O coautor de vários de seus livros, Friedrich Engels, que sobreviveu a ele por 12 anos, em seus últimos textos cogitava a vitória do socialismo pela via eleitoral, pacífica. Nesse tempo, colaboraram com ele Eduard Bernstein, autor de Socialismo evolucionista, a obra inaugural do "revisionismo" que os comunistas depois tanto condenariam, e Karl Kautsky, que os comunistas chamariam de "renegado" porque não apoiou a Revolução Russa e manteve um projeto social-democrata - que Kautsky, é bom lembrar, considerava marxista.

O que quero dizer com isso? Não fossem a 1.ª Guerra Mundial e a queda do czarismo, o socialismo marxista poderia estar associado hoje a uma opção democrática, que era a dos partidos socialistas francês e alemão. A vitória de Lenin e do partido bolchevista modificou profundamente o que significava o marxismo. Um projeto empenhado na extinção do Estado foi desviado para a construção de um Estado totalitário e policial. "Marxismo-leninismo" deveria ser entendido como uma contradição em termos, não como uma expressão que se use tranquilamente. Talvez o hífen seja, na verdade, uma subtração: marxismo menos leninismo, dá quanto?

Quer isso dizer que os projetos políticos de Marx são atuais e podem dar certo? Há pelo menos um problema: o que significa "propriedade social" dos meios de produção? Nós nos acostumamos, na democracia, a ver o Estado como expressão política da sociedade. Como "a sociedade" será proprietária dos meios de produção, se não houver Estado? Difícil de entender.

Mas é preciso, para quem discute política, lembrar que Lenin mudou muito o que Marx e Engels disseram; que ele não foi seu herdeiro principal ou necessário; e que, se Lenin adulterou o que havia de melhor em Marx - um certo espírito democrático -, não há mal em rever, corrigir e alterar o que, na obra de Marx, está superado.

Não podemos deixar Marx refém do comunismo histórico. Talvez seja bom, um dia, discutir como o leninismo se apropriou, indevidamente, de seu espólio. Mas o fundamental é saber que o leninismo foi um dos usos mais duvidosos que se pôde ter do marxismo.

Professor titular de Ética e Filosofia Política na USP, foi diretor de avaliação da CAPES

Um comentário:

Diego Corte disse...

Adorei o texto Sr. Gilvan

Ainda não tinha parado para pensar o comunismo dessa forma, ou seja, da sua forma real; não como hoje é difundido por ai a fora.

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