domingo, 4 de julho de 2010

Olá!, prazer, adeus :: Sergio Augusto

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO/SABÁTICO

Quando, daqui a sete semanas, fizer 70 anos do assassinato de Trotsky, todos se lembrarão de Stalin e Mercader, quase certamente de Rivera e Frida, quem sabe até de Richard Burton, que encarnou o mais célebre exilado soviético naquele docudrama medíocre de Joseph Losey. Mas quantos irão se lembrar de Saul Bellow?

Recém-casado com uma ativista de esquerda, o jovem socialista Bellow agendara uma entrevista com a nêmesis de Stalin, no bunker de Coyoacán, para o dia 20 de agosto de 1940. Por questão de horas não o pegou ainda vivo. Tomado por um jornalista americano, Bellow conseguiu entrar no necrotério da Cidade do México e ver de perto o corpo ensanguentado de Trotsky, recolhido a um caixão. O episódio marcaria para sempre o futuro escritor. “Foi ali que me dei conta de como os déspotas podem o aparentemente impossível e quão frágil também é a vida dos inexpugnáveis”, comentaria, décadas adiante, já bem apartado de suas ilusões juvenis—a bem dizer, nos seus antípodas.

Muita gente mais capacitada do que eu já deve ter sonhado escrever algo sobre encontros entre personalidades políticas e artísticas, de preferência surgidos ao acaso ou em circunstâncias adversas, como o de Bellow com Trotsky, particularmente intrigante pela desigualdade de condições: a única celebridade naquele encontro era o defunto; Bellow, que só dali a quatro anos publicaria seu primeiro romance, era então um ilustre desconhecido. Mas o jovem americano ao menos viu Trotsky, que, por motivos óbvios, não pôde notar a presença do admirador.

Tinha outra embocadura aquele álbum sobre encontros memoráveis, produzido por Nancy Caldwell Sorel e ilustrado por Edward Sorel, que a José Olympio traduziu na década passada. Memoráveis, mas nem todos inesperados ou inimagináveis como o de Orson Welles com William Randolph Hearst (num elevador!) e o de Isak Dinesen com Marilyn Monroe (que dançaram juntas no apartamento de Carson McCullers, em cima de uma mesa de mármore preto). Nele não caberia o de Bellow com Trotsky, por exemplo. Em “Primeiros Encontros”, Trotsky encontra-se com Lenin, em Londres, nos prolegômenos da revolução bolchevique.

No meu livro imaginário não poderia faltar o emocionante encontro de Astrojildo Pereira com Machado de Assis, similar ao de Bellow e Trotsky. Nem o de Bernard Shaw com Rainer Maria Rilke (no estúdio de Rodin, para quem, na época, o poeta checo trabalhava como secretário). Nem o de James Joyce com seu aluno Italo Svevo, em Trieste. Nem o do maestro Leopold Stokowski com o virtuoso canadense Glenn Gould, durante uma viagem de trem entre Amsterdam e Viena, em 1957. Nem o de..., bem, estou aberto a contribuições.

A maioria das confluências acima mencionadas data do início do século passado. Por ordem cronológica, a precedência é do encontro de Shaw com Rilke. Foi em 1906, quando o irlandês passou duas semanas em Paris, posando para um busto esculpido por Rodin. Pouco conversou com Rilke, cuja obra poética, incipiente ainda, desconhecia por completo. Este, porém, não tirou os olhos do dramaturgo. “Ele se orgulha de seu trabalho, mas sem presunção, um pouco como um cão se orgulha de seu dono”, observou o secretário de Rodin, que, meses depois, trocaria de emprego, mas não de influência. Rodin jamais se ausentou da obra do poeta.

Joyce e Svevo conheceram-se em 1909. Svevo, nascido Ettore Schmitz e empresário bem-sucedido, já escrevera dois romances (“Una Vita” e “Senilità”) e queria aperfeiçoar seu inglês. Joyce, 27 anos, alguns artigos e três contos publicados e mais nada, vivia de dar aulas a italianos. Encontrou em Svevo mais que um interlocutor, um confidente, e um modelo para Leopold Bloom. A amizade só terminou em 1928, quando o italiano morreu num acidente de carro, aos 66 anos. Foi graças a Joyce que “A Consciência de Zeno”, a magnum opus de Svevo, ganhou tradução em francês, em 1925, seu passaporte para a consagração mundial.

Meses antes da troca de “piaceres” entre Joyce e Svevo, mais precisamente em 28 de setembro de 1908, um rapazola de 18 anos atravessou de barca a baía de Guanabara com a firme determinação de visitar Machado de Assis em seu leito de morte. Tenso, o futuro líder comunista e crítico literário Astrojildo Pereira bateu à porta do casarão do Cosme Velho, identificou-se apenas como “um grande admirador do escritor” e pediu para vê-lo de perto. Contra a vontade dos amigos (Euclides da Cunha, Coelho Neto, José Verissimo, Raimundo Corrêa, Graça Aranha, Rodrigo Otávio), que o velavam na sala de estar, Machado permitiu que Astrojildo entrasse em seu quarto e, ajoelhado ao lado da cama, lhe beijasse a mão. Anônimo como entrara, o rapaz se foi. Machado morreria na madrugada seguinte.

Bela história, sobremodo enriquecida pelo mistério em torno da identidade do inopinado visitante, que só seria revelada 28 anos mais tarde. Euclides comoveu-se tanto com sua aparição que, no artigo que publicou no Jornal do Commercio, dois dias depois da morte de Machado, escreveu: “Naquele meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis, aquele menino foi o maior homem de sua terra”. Arriscando, em seguida, um vaticínio (“Qualquer que seja o destino desta criança, ela nunca mais subirá tanto na vida”), afinal desmentido pelos fatos, mas não, provavelmente, pelo próprio Astrojildo, que amava Machado acima de todos e tudo.

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