segunda-feira, 4 de outubro de 2010

O calendário e a coluna :: Luiz Werneck Vianna

DEU NO VALOR ECONÔMICO

A eleição já passou e o leitor já conhece o seu resultado, mas esta coluna, necessariamente escrita antes dela, foi condenada pelo calendário a desconhecê-lo. Resta a ela cogitar sobre o processo - ainda em curso? - de uma das sucessões mais frias da história da moderna democracia brasileira, vale dizer, das que se realizaram a partir de 1989. E sobre isso há muito do que cogitar, muito joio a separar do trigo, muita suspicácia contra o plano liso das aparências e das pretensões do senso comum.

A começar pela constatação de que as práticas da vida política democrática se vêm constituindo em rotina, uma segunda pele no cidadão brasileiro, que já as compreendem como a via real para a realização de seus interesses e de suas expectativas por direitos, deixando para trás o tempo em que aguardava intervenções providenciais. Dilma, Serra, Marina distam anos-luz de qualquer veleidade providencial.

Nessa sucessão, não houve quem ameaçasse, em atos ou palavras, as instituições. Um dos melhores exemplos desse novo estado de coisas se encontra na iniciativa da sociedade civil, chancelada pelo parlamento, e que se converteu na chamada lei da ficha-limpa, cujo impacto benfazejo no processo eleitoral foi, agora, experimentado pela primeira vez.

Essa é uma inovação de não pequena monta, e, na esteira dela reforçaram-se tanto os instrumentos como os procedimentos criados pelo legislador para zelar pelo caráter republicano da administração pública, em particular a Justiça Eleitoral, o Ministério Público e a Controladoria-Geral da União. E nunca é demais lembrar que a moralidade pública é um princípio constitucional da república brasileira, e não um atavismo cediço de combates eleitorais de tempos de antanho.

De outra parte, contrariando o diagnóstico de que nada teria mudado na cena política, uma vez que, nessas eleições, ter-se-ia reiterado a polarização entre o PT e o PSDB, está aí a emergência do PV, que foi representado por uma candidatura competitiva, possui quadros qualificados e uma liderança nacional, Marina Silva, cuja presença política certamente não se limitará a esse episódio eleitoral. Os verdes têm audiência internacional, e, a essa altura, como se fez demonstrar nessa campanha, estão conscientes de que seu programa e discurso necessitam se ancorar em temas e projetos de alcance geral, fundamentalmente traduzindo em linguagem corrente o que compreendem como desenvolvimento sustentável, lema forte da sigla. Desde logo, pode-se arriscar, que, no novo governo, inclusive na próxima disputa presidencial, Marina, seus temas e o seu partido serão peças importantes no tabuleiro.

Maior importância ainda terá o PMDB, com a vice-presidência - no caso da eleição de Dilma -, seus governadores, prefeitos e sua poderosa bancada congressual. Sem Lula para mediar a relação difícil desse partido com o PT, os custos de transação entre eles não serão pequenos, em especial se a agenda presidencial se fixar em questões altamente controversas, tais como as da reforma política, da previdência, da trabalhista e tributária. Em qualquer caso, a linha de governo de Dilma, que deverá evitar rotas de conflagração, não será a do seu partido, mas o da sua coalizão. A oposição estará fincada nos governos dos dois principais estados de federação, São Paulo e Minas Gerais, mais uma circunstância a reforçar o papel do PMDB no futuro governo.

Os partidos ditos nanicos da esquerda, que não foram tão mal como se alega - basta ver o desempenho da candidatura Plínio e sua audiência na juventude universitária -, se tiveram poucos votos, souberam aproveitar o horário eleitoral a fim de marcar posições, e alguns deles saem da campanha com seus quadros renovados. Outro sintoma de que à esquerda sopram ventos de mudança está na vitória da central Conlutas, vinculada ao PSTU, sobre a CUT na disputa eleitoral recente travada no estratégico sindicato dos metroviários de São Paulo.

Esse lugar da política, até há pouco um monopólio do PT, hoje à deriva em razão do posicionamento ao centro do espectro político por parte desse partido, diante das grandes transformações sociais em curso, não deve permanecer vazio. Especialmente, como se espera, se os imperativos de racionalidade da moderna ordem burguesa brasileira impelirem o governo no sentido das reformas trabalhistas e previdenciárias, as duas já presentes, às vezes apenas em registro subliminar, nos discursos de Dilma.

Do mundo agrário, por sua vez, são claros os novos sinais de mudanças a que o processo político não poderá ser indiferente. Desde as discussões sobre a reforma do Código Florestal, tendo como referência a questão nacional, testemunha-se uma imprevista aproximação entre o agronegócio e setores da esquerda, no caso representada por um parlamentar do PCdoB, Aldo Rabelo, que se tem traduzido em apoio de certos círculos do capitalismo agrário brasileiro à sua reeleição.

O fenômeno não é nada trivial, uma vez que, tradicionalmente, é dessa região do mundo que provém, à direita e à esquerda, expressões de radicalização política. O alinhamento ao centro dos nossos culaques, caso as tendências atuais se afirmem, não condiz com as previsões de imutabilidade do nosso sistema político. A ver, ainda, o que o MST tem a dizer sobre isso, dado que essa reviravolta lhe tira um bom pedaço de chão.

É enganosa, então, essa placidez de águas paradas, percepção equívoca a que fomos levados pela modorrenta sucessão de que acabamos de sair. A vida está à espreita esperando sua boa hora.

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