segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Renato Lessa: Ao contrário de Lula, Dilma não terá período de graça

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

ELEITA PRECISARÁ PREENCHER "VAZIO SIMBÓLICO" A SER DEIXADO POR ATUAL PRESIDENTE E COSTURAR BASE DE APOIO HETEROGÊNEA

Claudia Antunes

RIO - A transferência do apoio popular de Lula à presidente eleita Dilma Rousseff não transfere a ela a história pessoal do atual presidente, que impunha mesmo aos opositores um tratamento reverencial. É o que diz Renato Lessa, professor de teoria política na UFF (Universidade Federal Fluminense).

Esse dado, aliado à virulência da campanha deste ano, deve significar que a petista não desfrutará do período de graça que Lula teve entre a posse, em 2003, e as denúncias do mensalão, dois anos depois.

"Haverá oposição antes da posse", diz o cientista político, que conversou com a Folha na semana passada e ontem, após a divulgação dos resultados.

Para Lessa, Dilma também terá que preencher não apenas o "vazio simbólico" deixado por Lula, mas seu papel na costura de uma base de apoio heterogênea.

"Nosso sistema é hiperpresidencialista. Quem ocupar esse lugar terá que ser personalista."

Abaixo, os principais trechos da entrevista.

Folha - Qual o significado da vitória de Dilma?

Renato Lessa - O resultado reitera a avaliação que Lula tem e reflete o efeito da presença do presidente na história brasileira e seu envolvimento na campanha. No futuro, a manutenção desse apoio vai depender da capacidade de Dilma de preencher o vazio deixado por ele não só em termos simbólicos, mas na costura de uma base de apoio heterogênea e com grupos às vezes antagônicos.Há também uma imensa expectativa do eleitorado que percebeu este governo como de melhoria de suas condições materiais. Um desempenho inferior nesse quesito pode reverter essa expectativa.
Negrito
A virulência da campanha terá efeito no governo?

A virulência está presente na relação entre oposição e governo desde a democratização. Tem a ver com a pouca sedimentação de uma cultura que, do ponto de vista do governo, reconheça a oposição como uma das versões possíveis do que o país deve ser, e com uma dificuldade da oposição de entender que sua derrota foi legítima.Em 2010, houve fatores particulares. A ideia foi atacar o adversário não como portador de um projeto que deve ser combatido, mas naquilo que o vincula ao Código Penal. Isso tem a ver com a miserabilidade da reflexão política, com a despolitização do imaginário e dos atores políticos.

Mas os escândalos denunciados pela imprensa são reais.

Sim, mas você não pode ter uma campanha na qual o escândalo seja a matéria fundamental. Não tem reflexão, não tem pensamento sobre a proposta de país que os candidatos representam. Os dois candidatos se apresentaram de modo despolitizado -uma era continuadora de uma obra e outro não dizia de quem é herdeiro, se apresentava como gestor.

E isso dificultará a relação entre o futuro governo Dilma e a oposição?

Se para ela é uma vantagem ter a transferência do apoio a Lula, por outro lado isso não lhe transfere a história pessoal do Lula.O Lula, por condensar uma série de trajetórias dentro dele, impôs uma situação reverencial mesmo na relação com a oposição. Os opositores que violaram a perspectiva reverencial foram derrotados nas urnas, como Artur Virgílio (PSDB-AM) e Tasso Jereissati (PSDB-CE).Então haverá a ausência de um recurso político fundamental do qual Lula dispôs. Isso, no governo, pode levar a um padrão diferente na relação com a oposição. Dilma não contará com o período de graça que Lula teve entre 2003 e o mensalão; vai ter oposição antes da posse.A relação com os parceiros da coalizão também mudará. Dilma vai lidar com profissionais da partilha do espólio público, há operadores no PMDB que são tétricos. Lula lidava com isso com esse recurso simbólico acumulado.A relação de Dilma com os movimentos sociais também será diferente. Esses movimentos viam em Lula um apaziguador, que chegava e dizia: "Esperem, calma, eu preciso de um certo quietismo por algum tempo, vou contemplar vocês de outra maneira". Não sei se isso é reprodutível no caso dela.Nosso sistema é hiperpresidencialista, as capacidades pessoais do presidente são fundamentais. Não se trata de personalismo. Quem ocupar esse lugar terá que ser personalista porque o sistema exige esse tipo de comportamento.

O principal eixo de intelectuais críticos ao governo Lula é o republicanismo. Dizem que o presidente se envolveu excessivamente na campanha, cooptou os movimentos sociais. Qual é sua opinião?

É um argumento forte, mas a experiência tucana também não foi muito republicana. É um argumento que vem da filosofia política, do alemão Immanuel Kant [1724-1804], que em determinado momento distinguiu o que chamou de "império paternal" de República. O império paternal é o domínio do despotismo -quando o poder é personalizado, o déspota pode até ser bom, mas a qualidade do governo depende da qualidade do governante.A ideia de República tem a ver com ideia da liberdade sob a lei, do procedimento impessoal. A tradição brasileira é muito marcada pelo poder pessoal. Isso aparece na linguagem -o Serra fez, o Lula fez, a Dilma vai fazer.

Há algo mais a enfatizar?

A gente não sabe bem o que é uma República. Mas sabe o que não é, e não é republicano um debate político onde a religião apareça como divisor de águas.É uma coisa terrível que dois candidatos ateus desde criancinha -a não ser que tenham tido uma visão mística recente- tenham perdido a oportunidade ímpar de se dirigirem à nação juntos declarando que não tratariam de religião na campanha e professando uma posição ao menos agnóstica, como a única capaz de garantir a liberdade religiosa.Se tivessem feito isso, o efeito republicano seria notável. Mas não fizeram por oportunismo, por medo, pela lógica da acusação mútua. Isso mostra como os atores políticos não estão à altura da nossa democracia.

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