segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Alexandre, Confúcio e outros heróis*:: Luiz Werneck Vianna

DEU NO VALOR ECONÔMICO

A fortuna é sempre arredia à vontade dos homens, mesmo quando virtuosos e diligentes, que não têm como antecipar o resultado de suas ações. Alexandre, o rei dos macedônios, quando se lançou à conquista do Oriente estava animado por vários objetivos, entre os quais o de livrar a Hélade da ameaça iminente de ser submetida ao império persa. Sustentam alguns dos seus biógrafos que, além dessa motivação de natureza estratégica, Alexandre se julgava um descendente do mítico guerreiro Aquiles, com cujos feitos teria a pretensão de se ombrear. Outros, levando em conta que o jovem rei fora discípulo de Aristóteles, incluem entre seus objetivos motivos filosóficos como o de promover a razão à instância ordenadora do mundo. Mas decididamente não estava em seus cálculos que, ao estabelecer a comunicação entre a cultura filosófica dos helenos com a dos mistérios místicos do Oriente, estava plantando as sementes que, trezentos anos depois, como argumenta a sempre clássica obra de Johann G. Droysen sobre Alexandre, desabrochariam na revolução do cristianismo.

As complexas sociedades modernas obedecem a outras lógicas, articulando vários sistemas dotados de movimentos próprios, em que, sob certas circunstâncias, como anota um grande pensador, os "protagonistas são como que os fatos", obscurecendo o papel do ator na tentativa de condução das coisas do mundo. No capitalismo, uma das fortes expressões desse fenômeno estaria no processo de criação e reprodução do valor, tal como Marx o estudou, que se alimentaria, em escala continuamente ampliada, da sua base anterior. A emissão do bordão que tornou mundialmente conhecido o publicitário americano James Carville - é a economia, estúpido! - não fosse a sua vulgaridade, poderia perfeitamente ter sido de sua autoria.

O protagonismo dos fatos, diante de um ator que aparenta estar impotente diante deles, bem poderia servir de caracterização para a atual cena internacional. A ciranda financeira, com seus trilhões de dólares circulando pelo mundo virtual à procura da aplicação mais rentável, aparenta agir de "motu proprio", destruindo economias nacionais e concedendo a outras oportunidades imprevistas. Assim, o Brasil que, desde os anos 1930, se acostumou a projetar seu futuro pelo caminho da industrialização, tem, hoje, no agronegócio, graças às peripécias do fluxo cego das mercadorias, um dos seus principais trunfos para atuar no mercado internacional, principalmente com a poderosa China. Tal mudança, de larga envergadura, inclusive no que se refere à disposição das classes sociais e grupos de interesses no país, não fazia parte das cogitações estratégicas dos tomadores de decisão há pouco tempo atrás.

O tsumani de 2008 - não por acaso o noticiário econômico tomou de empréstimo essa categoria da esfera das catástrofes naturais para nomear a crise financeira daquele ano - mais do que desorganizar a economia mundial, vem pondo em xeque a hegemonia americana, a essa altura já desafiada pela crescente expansão da economia e da diplomacia chinesa no Oriente, na África e na América Latina. No Brasil, a China ter-se-ia tornado tanto no maior mercado para os seus produtos, quanto um dos seus maiores investidores. Além disso, significou um duro golpe no neoliberalismo e suas crenças em uma feliz auto-regulação do mercado, fazendo ressurgir a ideologia, tão cara aos anos 1960, de um capitalismo organizado.

A crise, como tantas vezes analisado, se não poupou os países emergentes, os atingiu em escala bem menos severa, estimulando o experimentalismo e a inovação, que, no caso brasileiro, importou na adoção de políticas anticíclicas de corte keynesiano. Com essa nova conjunção dos fatos no mundo, abriu-se, então, a oportunidade para a retomada de um antigo repertório, o do nacional-desenvolvimentismo de JK e do regime militar, em particular o do governo Geisel.

Para a sua volta triunfante, na verdade, precisava-se de pouco: estavam ao alcance da mão os seus principais instrumentos, como uma tecnocracia estatal de quadros qualificados, as poderosas empresas estatais, encimadas pela Petrobras, um sistema financeiro bem regulado e sob competente vigilância do Banco Central, os bancos estatais, sobretudo o BNDES, que, com o estímulo do governo, transformou-se em um dos maiores bancos de fomento do mundo.

Desde então, a política se converte em um instrumento consciente de consolidação e aprofundamento do capitalismo brasileiro, e deve ser por isso que os analistas japoneses da agência Nomura Securities, ao lado de outras considerações sobre o que deverá ser a economia sob o governo de Dilma, tais como o combate aos juros altos por mais oferta de créditos e medidas administrativas, estimam que o modelo de crescimento econômico chinês estaria em vias de se impor entre nós.

Quem sabe - logo se vai poder perguntar -, a inteligência brasileira teria seguido pistas equívocas ao perseguir os caminhos abertos pelo Ocidente, que não teríamos como reiterar? Por que não olhar para China com sua milenar burocracia treinada no sistema do mérito, para a harmonia cordata que prevalece em sua complexa estrutura social e seus espantosos índices de desenvolvimento econômico? Não seria para essa direção que a época nos tange desde os acontecimentos catastróficos de 2008?

Um reputado sociólogo, há algum tempo, em um exercício meramente conceitual sobre categorias presentes na sociologia da religião de Max Weber, avizinhou o homem cordial, personagem típico do iberismo, construção teórica de Sergio Buarque de Holanda em "Raízes do Brasil", ao tipo de homem recortado pelo padrão confuciano. Vale, agora, torcer para que esse experimento abstrato não escape de uma situação de laboratório, com o risco de ser arrostado pelos últimos balanços das ondas do tsumani de 2008, e assim nos levando de roldão do extremo Ocidente, lugar que os heróis da nossa história escolheram para nós, ao mais remoto Oriente, onde perderíamos o caminho de casa.

* Esta coluna é dedicada a Ricardo Benzaquen, a Robert Wegner e a Jessé de Souza.

Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador do Iesp-Uerj. Ex-presidente da Anpocs, integra seu comitê institucional. Escreve às segundas-feiras

O GPS de Lula :: Ricardo Noblat

DEU EM O GLOBO

“Afinal, de que adiantou eleger uma mulher, se o homem vai continuar mandando?” (Roberto Jefferson, presidente do PTB)

Inédito! Extraordinário! Fantástico! Inacreditável! Nunca antes na história deste país um presidente da República indicou tantos nomes para posições estratégicas do governo que sucederá ao seu. O caso de Tancredo Neves foi diferente. Eleito, ele nomeou o Ministério e morreu sem tomar posse. José Sarney, seu vice, assumiu o governo alheio.

Os presidentes costumam dispor de uma cota pessoal de cargos para preenchêlos com gente de sua estrita confiança. Ora são pessoas a quem devem favores, ora pessoas que admiram e que gostariam de ter ao seu lado. A cota pessoal de Lula no seu primeiro governo foi modestíssima. A rigor, ele não dispôs de mais do que cinco cargos.

A saber: Comunicação (Luiz Gushiken); Justiça (Márcio Thomaz Bastos); Minas e Energia (Dilma Rousseff); Planejamento (Guido Mantega) e Imprensa (Ricardo Kotscho). Antonio Palocci, ministro da Fazenda, deveu sua nomeação à necessidade de tranquilizar o mercado financeiro. José Dirceu, da Casa Civil, a ele mesmo e ao PT.

Pois bem: salvo mudanças de última hora, Lula emplacou no governo, ainda em fase inicial de formação, o ministro da Fazenda (Mantega), o chefe da Casa Civil (Palocci), o secretário-geral da presidência (Gilberto Carvalho), o ministro do Planejamento (Míriam Belchior) e o presidente da Petrobras (José Sérgio Gabrielli). Está bom?

Adiante. Paulo Bernardo, atual ministro do Planejamento, será transferido para outro ministério. Alexandre Padilha, ministro das Relações Institucionais, ganhará outro cargo de igual importância. Marco Aurélio Garcia, assessor especial de Lula, agora será assessor especial de Dilma. E Nelson Jobim poderá seguir como ministro da Defesa.

Lula deixou Pernambuco ainda menino, na companhia da mãe e dos irmãos, com destino a São Paulo, onde reencontraria o pai. Mas deve ter lido a respeito dos “coronéis” nordestinos que mandavam na vontade dos seus dependentes. Chico Heráclio, de Limoeiro, foi um deles e talvez o mais famoso. Veremundo Soares, de Salgueiro, outro.

No processo de escolha de Dilma para candidata à sua sucessão, Lula atuou como se fosse um desses coronéis de antigamente. E pelo menos dez partidos políticos se renderam à sua indicação. E em seguida se renderam quase 56 milhões de eleitores. A maioria desses elegeu Dilma porque ela era “a mulher de Lula”.

Se precisassem, os “coronéis” nordestinos ameaçavam com a força aqueles que hesitavam em obedecer às suas ordens. O triunfo de Lula deve-se ao seu carisma, à boa avaliação do seu desempenho, aos resultados positivos do seu governo e ao espantalho brandido com eficiência de que a oposição mudaria tudo se chegasse ao poder.

Presidente algum terá mais condições de monitorar seu sucessor do que Lula. No início da administração Dilma — e sabe-se lá até quando —, o Palácio do Planalto funcionará como uma espécie de bunker lulista. Se Lula quiser, Dilma não dará um suspiro sem que ele seja informado, não discutirá uma ideia sem que ele fique sabendo na hora.

Acaba de ser inventado o GPS presidencial — e Lula foi seu inventor. Dilma sabe o que a espera. E parece conformada. Afinal, deve a Presidência a Lula, exclusivamente a ele. O que conferirá legitimidade política ao seu mandato serão os resultados do seu governo. Aí ela poderá vir a desfrutar de uma margem maior de autonomia.

Em conversa com os poucos amigos que tem, Dilma admitiu que a transição entre o governo Lula e o dela não terminará no dia de sua posse, em 1o- de janeiro. Num cálculo otimista, imagina que ela se arrastará durante um ano ou pouco mais. Quer dizer: só lá para 2012 Dilma poderá vir a ter um governo para chamar de seu.

A poderosa ex-chefe da Casa Civil, que infundia terror até entre seus colegas, está sendo fraca ou apenas hábil e realista ao se curvar aos desígnios de seu mestre? Só o futuro dirá. Em tempo: Lula também quer manter Fernando Haddad no Ministério da Educação.

A possível reforma política :: Antonio Paim

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Balanceando a tramitação dos projetos relacionados à reforma política nas quatro últimas legislaturas, Jorge Bornhausen o fez para demonstrar que não adianta buscar o desejável, cabendo empenhar-se na reforma possível. Lembrou que é franco partidário do parlamentarismo, o que exigiria emenda constitucional praticamente impossível de se efetivar. Portanto, impõe-se ater-se ao plano infraconstitucional.

Os 16 anos de tentativas de aprovar a reforma política no Congresso Nacional têm méritos. O principal deles é a verificação de que o financiamento público das despesas eleitorais merece o apoio da maioria, o que é compreensível. A atuação junto ao Parlamento de parte dos grupos de interesses - sejam econômicos, religiosos, morais, etc. - corresponde a procedimento perfeitamente legítimo. Mas é visto com desconfiança pela opinião pública, notadamente as doações monetárias de grandes grupos econômicos. Encarado desse ângulo, o financiamento público teria efeito benéfico.

A adoção da providência exigiria a adequação do denominado sistema proporcional brasileiro ao modelo consagrado: voto numa lista preordenada. Nos países de democracia consolidada, os estudos dedicados ao tema estabelecem deste modo a diferenciação entre os sistemas proporcional e distrital: o primeiro caracteriza-se pelo voto numa lista e o segundo, no nome.

A votação num nome, no sistema proporcional, elimina de pronto as vantagens do sistema distrital. O mérito deste consiste em aproximar representante de representado. Nos países que o adotam não há propaganda eleitoral como a entendemos. Na escolha do representante, compromete-se com determinado programa (naturalmente, expressando as posições da agremiação a que pertence). Se eleito, deve prestar contas religiosamente. Nos Estados Unidos, onde o mandato do deputado é de dois anos, a candidatura à renovação é praticamente automática, se cumpriu o programa e prestou contas regularmente. Votando num nome, sendo proporcional a distribuição das cadeiras, como se dá no Brasil, nada disso ocorre. Na maioria dos casos, o controle da atuação do parlamentar eleito é feito de uma forma que distorce completamente a sua função - bem como a adequada configuração dos partidos, como espero demonstrar.

A experiência sugere que a lista preordenada não passa na Câmara dos Deputados. Os argumentos com vista a satanizá-la são de todo inconsistentes.

O procedimento para sua confecção seria o seguinte: 1) Cada membro da convenção dispõe de um único voto; 2) serão registradas as chapas contendo o nome dos respectivos candidatos; 3) o nome de qualquer candidato só poderá figurar numa chapa; 4) o voto será secreto, procedendo-se, de imediato, à apuração; e 5) a inserção na lista preordenada se dará segundo a votação obtida por cada chapa, em ordem decrescente.

Vigorando na maioria dos países europeus o sistema proporcional, o preparo das convenções (denominadas congressos) enseja animados debates, que nutrem as correntes internas, que se movimentam nos marcos dos respectivos núcleos programáticos. Na verdade, vivificam-nas de forma equivalente às primárias norte-americanas. Poucos parlamentares brasileiros têm um mínimo de familiaridade com essa vivência. De modo que falam da lista sem verdadeiro conhecimento de causa.

Geralmente, supõe-se que a resistência à lista preordenada seria capitaneada pelos denominados partidos nanicos. Depondo sobre a sua experiência de exercer mandato de deputado, depois de bem-sucedida gestão municipal, afirma Luiz Paulo Vellozo Lucas, presidente do Instituto Teotônio Vilela, do PSDB: "A grande maioria dos deputados trabalha pela renovação de seus mandatos buscando alavancar apoio financeiro para as demandas municipais." Ao que acrescenta: "As emendas individuais no orçamento de investimentos são instrumento de fidelização política do prefeito ao deputado autor da emenda e fonte de recursos para obras locais." E conclui: "Qualquer deputado federal eleito com uma bagagem mínima de propósitos cívicos e ideais desanima quando submetido ao massacre rotineiro de salas de espera de ministérios em Brasília." Entende que o debate sobre o sistema eleitoral, realizado em 2007, "não mexeu com esse esquema que faz do parlamentar um despachante de demandas municipais".

De minha parte, entendo que as chamadas "emendas parlamentares" correspondem a substituto do mensalão. Por certo, nem todos os que as utilizam se enquadrariam nessa classificação. Mas não deixa de ser um atrativo para a corrupção dispor de R$ 12.500 a cada ano e R$ 50 milhões numa legislatura. Por isso mesmo, qualquer dia destes ensejarão mais um escândalo demolidor da credibilidade do Poder Legislativo.

Se é que, nos marcos de uma Federação, a União possa interferir diretamente na gestão municipal, teríamos de nos valer da experiência da União Europeia, detendo-nos nos programas regionais destinados a eliminar grandes disparidades de renda.

A proposta de Bornhausen inclui uma terceira medida: proibição de coligações em eleições proporcionais, a fim de acabar com as legendas de aluguel.

E uma última observação: o PSDB insiste em destoar das outras forças oposicionistas, convencidas de que, desejando a maioria financiamento público, a adoção da lista preordenada seria mais factível. Insiste no sistema distrital, omitindo posicionar-se numa decorrência inevitável: dada a obrigatoriedade da uniformidade de quociente eleitoral, São Paulo passaria a ter 111 deputados. Minas teria acréscimo de uma única cadeira e os demais Estados sairiam perdendo. Parece óbvio que não passa. É inadmissível, contudo, que aquela agremiação omita esse aspecto.


Presidente do Conselho Acadêmico do Instituto de Humanidades.

Guerra civil :: Paulo Brossard

DEU NO ZERO HORA (RS)

Faz uma semana, pouco mais, com relevo foi divulgada notícia envolvendo a posição do Brasil em tema delicado, a notória ofensa a direitos humanos consagrados pela comunidade das nações civilizadas. Tratava-se da situação vigente no Irã, que timbra em manter algumas normas que repugnam padrões universais, como “apedrejamento, chibatadas, amputações, execução de adolescentes, estrangulamento, enforcamento, discriminação contra mulheres e minorias”.

Quarenta e duas nações, sob a liderança do Canadá, apresentaram projeto de resolução no plano da ONU em que externavam “preocupação profunda” em face da notória violação desses direitos no reinado de Ahmadinejad, escolhido pelo Brasil para seu comparsa nas travessuras diplomáticas engendradas pelo presidente da República. Resultado dessa estranha preferência foi a abstenção do Brasil; para ser agradável ao seu parceiro, a abstenção foi caracterizada pelo voto, quer dizer, o não voto; aliás, é de notar-se que o presidente Luiz Inácio chegou a oferecer asilo a uma condenada à lapidação e a oferta foi recusada por seu parceiro e depois disso a presidente eleita chegou a dizer que a sanção era “muito bárbara”.

Contudo, prevaleceu a abstenção, na desconfortável companhia de Venezuela, Cuba, Líbia, Bolívia, Angola, Benin, Butão, Equador, Sudão... et caterva. A repercussão foi penosa, o que levou o ministro das Relações Exteriores a elaborar uma explicação justificada. A emenda saiu pior que o soneto. Um dos nossos grandes jornais, tradicionalmente atento aos problemas internacionais, em editorial, referiu-se à lamentável defesa da Casa de Rio Branco como “intelectualmente pobre e moralmente esquálida”. Tudo isso para afagar o amigo e compadre internacional, embora a Constituição proclame que o Brasil tenha como fundamento “a dignidade da pessoa humana” e que a República “rege-se nas suas relações internacionais” pela “prevalência dos direitos humanos”.

Mudo de assunto, embora muito tivesse a dizer sobre a abstenção em causa. É que aconteceu o que, dia mais, dia menos, teria a acontecer. Afinal, sem aviso nem declaração formal, alguém, sem nome nem documento, iniciou a guerra civil na Cidade Maravilhosa. O Rio de Janeiro, a segunda metrópole brasileira, a antiga capital, passou a ser palco de violências e danos materiais, como sói acontecer, o fato não aconteceria sem causa, por mero acaso nem de repente. As causas são antigas e, salvo engano, foram publicamente adotadas quando um governante anunciou “polícia não sobe o morro”, o que importava dizer que a população que mora em morros, privada da polícia, passava a depender de quem veio em sua substituição. O vazio tem de ser preenchido.


Se o Código Penal deixa de ser aplicado no morro, outra lei surge, e passa a ser aplicada; pela Justiça? Obviamente, não, mas por quem tenha poder de mando; suas decisões são tomadas com a observância do devido processo e uso de recursos inerentes a qualquer decisão? Claro que não. No entanto, um simulacro de ordem e justiça se instalou e a famigerada entidade passou ao funcionamento. Isto posto, a guerra, guerra civil, está em curso, provocando seus fatídicos efeitos. Até onde? Não sei.

Sejam eles quais forem, a meu ver, eles seriam inevitáveis, até porque, no longo interregno, a entidade inicial cresceu e hoje não hesita em guerrear o próprio poder público. É possível que tenham se surpreendido com a reação estatal. Mas isto não passa de especulação e em nada modifica a situação existente. O que impressiona é a audácia da ação. Em verdade, a anomalia não podia terminar bem, especialmente depois de ter se estabelecido um pacto entre o fato social inegável e a droga com suas exigências e peculiaridades, que, segundo se diz, são ilimitadas e inexoráveis. A respeito ninguém pode iludir-se.


*Jurista, ministro aposentado do STF

A hora da verdade :: Alfredo Sirkis

DEU EM O GLOBO

As represálias das facções do tráfico contra a ocupação pelas Unidades de Polícia Pacificadora de algumas pequenas favelas que as quadrilhas controlavam, nas zonas Sul e Norte, e as operações policiais no Complexo do Alemão sinalizam a hora da verdade das UPPs. O Rio precisa enfrentar esse desafio de acabar de uma vez por todas com o controle territorial dos bandos poderosamente armados do narcovarejo. É uma situação intolerável que desafia o estado democrático de direito. A sociedade deve fazer sacrifícios para acabar com essa ditadura militar local do tráfico e dos grupos parapolicais mafiosos erradamente chamados de "milícias".

Os últimos acontecimentos anteciparam uma ação que seria mais gradual. No passado esse conglomerado de favelas e outros já foram ocupados pela polícia. Ao armamento maior dos bandidos corresponde agora uma resposta operacional mais robusta com apoio das Forças Armadas. Mas derrotar militarmente o tráfico nunca foi o "x" do problema. A questão é ocupar permanentemente. Não se pode empenhar um efetivo enorme nas favelas e deixar desguarnecido ou mal policiado o asfalto. Falta efetivo e falta qualidade ao policiamento ostensivo. A escala de serviço e o duplo emprego de policiais fazem com que se conte, num dia normal, com uma pequena parte do efetivo da PM. Já recebi informações de que em determinados dias menos de 2.500 homens, de um efetivo de 38 mil, fazem diariamente o policiamento das ruas do Rio.

O policiamento da cidade precisa ser feito a pé. O patrulhamento em viatura não cria vínculo com a população e sua qualidade de observação é ruim. Vi em Bogotá uma cidade, de sete milhões de habitantes, sendo policiada a pé, em grupos de três, com contato visual e comunicação via rádio, cobrindo todo o território. Lá a Polícia Nacional tem 16 mil homens em dedicação exclusiva. São bem pagos e trabalham unicamente para a segurança pública.

Precisamos de um Fundo Nacional de Segurança que ajude os estados a elevar o salário dos policiais ao nível disposto na PEC 300, para poder, em contrapartida, impor de fato a dedicação exclusiva e acabar com o regime de um dia de trabalho por dois ou três de folga. Com isso, pode-se aumentar de imediato o efetivo disponível e melhorar sua qualidade. É preocupante observar que o governo federal prepara-se para tentar derrotar a emenda no Congresso. Deveria estar estudando como transformar o que não pode ser uma bandeira meramente corporativa num componente de uma profunda reforma na segurança pública. Há formas criativas de assimilar o aumento previsto na PEC 300 sem as consequências fiscais adversas temidas, desde que, de fato, se considere a segurança da população uma prioridade.

Além disso é preciso reduzir drasticamente a aplicação da progressão de pena e do regime semiaberto para os condenados por crimes violentos. Não há outro país onde autores de crimes bárbaros conseguem sair da prisão tão rapidamente para poder reassumir suas quadrilhas, aterrorizar e matar de novo. É inacreditável que os assassinos do jornalista Tim Lopes já estejam todos livres - com exceção do chefe, Elias Maluco, que, no entanto, em breve poderá se beneficiar mais uma vez dessa mesma regalia que exercia quando daquele crime. Só no Brasil...

Alfredo Sirkis é vereador e deputado federal (PV-RJ), eleito.

Bandeiras de guerra :: Fernando de Barros e Silva

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

SÃO PAULO - As imagens das bandeiras do Brasil e do Rio de Janeiro hasteadas no alto do Complexo do Alemão simbolizavam, ontem, a vitória das forças policiais e militares sobre o tráfico naquele território. Sim. Mas eram, também, imagens para consumo da mídia -nacional e sobretudo a internacional.

Estão em jogo, neste momento, a competência do país para sediar a Copa de 2014 e a do Rio para receber a Olimpíada em 2016.

Na sexta, o "Le Monde" dizia: "Violência acirra as dúvidas sobre a capacidade de o Brasil organizar a Copa e os Jogos". O "The Guardian" foi mais direto: "O Brasil está tentando limpar a cidade à beira-mar antes da Copa e dos Jogos Olímpicos". Nada como um jornal britânico para nos dizer as coisas...

Com tudo o mais atrasado, a "limpeza à beira-mar" talvez seja a primeira obra de infraestrutura do país a fim de viabilizá-lo aos interesses bilionários envolvidos nos jogos esportivos globais.

Ninguém seria louco de dizer que se trata, desta vez, de uma limpeza cosmética, para inglês ver. Nunca as forças repressivas do Estado haviam enfrentado os traficantes com tanta determinação e força organizada. Organizada demais para quem foi apanhado de surpresa.

Há coisas ainda muito mal esclarecidas nisso tudo. O ministro da Justiça, Luiz Paulo Barreto, disse anteontem que não havia nenhum indício de que a ordem para incendiar a cidade havia partido de dentro dos presídios de segurança máxima. Isso, no entanto, vem sendo repetido como fato inconteste.

Outro exemplo é o do suposto bilhetinho deixado como recado num dos ônibus incendiados: "Com UPP não há Olimpíada". Você acredita que um traficante escreveria isso?

Seria muito impatriótico perguntar a quem interessaria o pânico que se instalou no Rio? E estranhar que isso tenha ocorrido logo após as eleições? São dúvidas e desconfianças que fariam bem ao jornalismo que não deve favores a Sérgio Cabral e busca a verdade.

O que pensa a mídia

Editoriais dos principais jornais do Brasil
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Briga entre partidos complica Dilma

DEU NO CORREIO BRAZILIENSE

TRANSIÇÃO

Dos oito políticos convidados para a Esplanada, presidente eleita encontrou lugar para sete. Além de não saber o que fazer com Paulo Bernardo, precisa compor com PT, PMDB, PR, PP, PTB e PCdoB

Tiago Pariz

A presidente eleita, Dilma Rousseff, tem o perfil definido dos titulares de 14 ministérios — dos quais sete já foram convidados. Até agora, o trabalho foi mais simples. Faltando mais da metade das 38 cadeiras distribuídas pela Esplanada, a parte espinhosa está por vir, incluindo lidar com as insatisfações de aliados que se sentirão subrepresentados no governo. Pelo desenho do que já foi oficializado, dos nomes convidados e dos prováveis ocupantes, prevalecem em 15 pastas dúvidas generalizadas sobre o partido e o nome que as comandarão. Em outras oito, a solução é uma incógnita.

Dilma oficializou três ministros e convidou outros cinco, dos quais apenas um não se sabe qual rumo tomará: Paulo Bernardo, cotado para Previdência e Comunicações. Os certos são: Antonio Palocci (Casa Civil), Gilberto Carvalho (Secretaria-Geral), José Eduardo Cardozo (Justiça), e Fernando Pimentel (Desenvolvimento). Os dois primeiros que serão anunciados nos próximos dias se somam a Guido Mantega (Fazenda), Miriam Belchior (Planejamento) e Alexandre Tombini (Banco Central), oficializados na semana passada. Ela também anunciará a Secretaria de Relações Institucionais, que deverá ficar com Alexandre Padilha.

Em outros sete ministérios, a presidente eleita tem o perfil definido e já bateu o martelo. Apesar da resistência do PT, Dilma deverá mesmo atender o pedido do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e manter Fernando Haddad, no Ministério da Educação. Além disso, até o fim da semana passada, ela estava decidida, segundo interlocutores, a entregar para o PSB a Integração Nacional. O titular deve ser Fernando Coelho. A expectativa é a oficialização dessa indicação em conversa entre Dilma e o governador de Pernambuco, Eduardo Campos, hoje ou amanhã.

No atual estágio das conversas, o PSB terá seu desenho refeito. Perderá o Ministério de Ciência e Tecnologia e a Secretaria dos Portos, que deverá ser inflada com a responsabilidade de cuidar da aviação civil. A hipótese mais forte é que a primeira pasta caia na mão do senador Aloizio Mercadante (PT-SP), que a partir do ano que vem não tem mais mandato. A segunda entrará no balaio de negociações com os partidos. O PMDB almeja essa secretária renovada.

Os peemedebistas estão de olho em tudo. Até agora não há alguém no partido que dê certeza sobre o qual o tamanho terá no futuro governo. A única quase certeza é de Edison Lobão em Minas e Energia. De resto, existem peemedebistas cotados na Cidades, na Defesa, no Meio Ambiente, na Agricultura e nos Transportes. Segundo interlocutores, o mesmo partido não ficará com Cidades e Transportes, as duas meninas dos olhos da lista de obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). O que se sabe é que o ex-governador do Rio Moreira Franco virará ministro, mas por enquanto seu destino é pura especulação. Ele é lembrado para Cidades, mas, segundo uma fonte próxima da presidente eleita, não está certo que o PMDB tomará conta da pasta que hoje está com o PP.

Insatisfação

Nessa seara, PP e PR são dois partidos com grandes chances de se tornar um antro de insatisfação a partir das oficializações dos indicados. Os progressistas não deverão ter ministro e o PR deverá perder os Transportes — hoje, a hipótese mais aventada é Dilma manter o atual titular Paulo Sérgio Passos. O único ministeriável do PR é o senador eleito Blairo Maggi (MT), cotado para a Agricultura, posto disputado também pelo PMDB. O senador eleito Eduardo Braga (PMDB-AM) é nome para o Ministério dos Transportes. O ex-governador do Amazonas é lembrado até para o Meio Ambiente, disputado também pelo PT. Mas não há definição.

Dilma ainda não sabe o que fazer também com a Secretaria de Comunicação Social que poderá ficar como está, dividir poder com a Secretaria-Geral e a Casa Civil e até perder status de ministério. Nesse caso, a indicada é a jornalista Helena Chagas.

Alckmin 'adia' decisão sobre futuro de Serra

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Para eleito, o PSDB deve "começar pela base", escolhendo os diretórios em abril, e só depois tratar da presidência do partido

Flávia Tavares

Após especulações sobre as futuras funções de José Serra no PSDB, o governador eleito de São Paulo, Geraldo Alckmin, disse ontem que a disputa pela presidência do partido deve ser discutida depois das eleições nos diretórios municipais e estaduais.

"O processo sucessório começa em março, com as eleições municipais nos diretórios. Em abril, é nos estaduais - e só depois vem a eleição nacional. Não devemos começar pelo fim, mas pela base", afirmou Alckmin ontem de manhã, ao final de evento com empresários em Barueri. Sobre a ideia de refundação do PSDB, Alckmin observou que somente com uma reforma política os partidos serão de fato eficientes.

"O PSDB é um partido jovem e já deu uma contribuição muito importante ao Brasil. Num país que não tem tradição de partido, e sim de personalismo na política, não é uma tarefa fácil. Enquanto não fizermos uma reforma política, vamos avançar pouco."

Aeroporto privado. No encerramento do 1º Fórum Econômico de Barueri, o governador eleito destacou a necessidade de construção de um "aeroporto privado na região metropolitana". "Isso depende do governo federal. As tarefas imediatas são o terceiro terminal de Cumbica e a segunda pista de Viracopos. Mas no médio e longo prazos devemos trabalhar por um novo aeroporto na região metropolitana".

PMDB decide sufocar seus dissidentes

DEU NO VALOR ECONÔMICO

Cobrado pela presidente eleita Dilma Rousseff, seu vice-presidente, Michel Temer, decidiu sufocar e punir os dissidentes do PMDB que não se engajarem no apoio ao governo. A cúpula pemedebista considera que o partido sempre foi "leniente e complacente" com as divergências porque nunca conseguiu ter unidade nem na própria Executiva Nacional. Agora, porém, o grupo de comando entende que chegou a hora de fazer valer o estatuto, que prevê democracia interna e direito de formação de correntes de opinião, mas também exige disciplina partidária para assegurar a unidade de ação programática. Terão de ser acatadas as decisões tomadas em convenções, na Executiva e, no caso de parlamentar, também nas respectivas bancadas. Quem não se sujeitar a essas decisões poderá se desligar do partido, sem que este lhe exija o mandato de volta.

Por espaço no governo, PMDB exige unidade

Raquel Ulhôa De Brasília

Eleito vice-presidente da República e aliado a lideranças nacionais do partido com as quais seu grupo divergia no passado - como os senadores José Sarney (AP) e Renan Calheiros (AL) -, o presidente do PMDB, deputado Michel Temer (SP), decidiu sufocar os dissidentes da legenda. Cobrado pela presidente eleita, Dilma Rousseff, pela existência de focos de oposição no PMDB, Temer ameaça puni-los daqui para a frente e, assim, ter autoridade para falar em nome de todo o partido no governo.

A cúpula pemedebista avalia que o partido sempre foi "leniente e complacente" com as divergências, porque nunca conseguia ter unidade nem na própria Executiva Nacional. Essa conduta prejudica o partido agora, nas negociações com Dilma e o PT pela composição do governo.

Historicamente, o PMDB sempre conviveu bem com as divergências de posições entre as lideranças regionais. Sempre manteve os pés em canoas diferentes. Não há intenção de punir ninguém por posições passadas. "O objetivo é abrir um novo tempo no partido", define um dirigente.

O grupo que comanda o PMDB acha que, agora no governo, é hora de fazer valer o estatuto, que prevê democracia interna e direito de formação de correntes de opinião, mas, por outro lado, disciplina partidária para assegurar a unidade de ação programática. Terão que ser obedecidas decisões tomadas em convenções, na Executiva e, no caso do parlamentar, também nas respectivas bancadas.

A decisão de endurecer com os dissidentes foi formalmente anunciada por Temer em artigo publicado na "Folha de S.Paulo" no dia 23, previamente discutido com integrantes da cúpula partidária. Nele, o vice-presidente eleito admite até "a expulsão do recalcitrante" em caso de descumprimento de orientação partidária. Diz, no entanto, que a intenção não é tomar o mandato do rebelde, apenas cobrar fidelidade, para que o partido tenha unidade de ação.

"Quem não se conformar com as decisões tomadas em convenções poderá se desligar do partido, sem que este exija o mandato. É melhor sermos menores numericamente, mas unidos na ação política, do que maiores, sem unidade de comportamento. (...) Só assim ganharemos densidade política e respeito popular", afirma.

Segundo ele, o PMDB "somente se imporá nacionalmente e na opinião pública se tiver unidade de ação, o que exige fidelidade, tal como a definiu o Supremo Tribunal Federal ".

Temer prega a necessidade de aprovar em convenção nacional "regras rigorosas" , se for necessário, mas foi convencido por outros dirigentes do partido de que o estatuto já dispõe de instrumentos de punição suficientes para cobrar fidelidade.

Pelo artigo 10, os membros e filiados do partido estarão sujeitos a medidas disciplinares, quando, entre outras coisas, desrespeitarem a orientação política fixada pelo órgão competente e as deliberações tomadas em questões consideradas fundamentais, inclusive pela bancada a que pertencer o ocupante de cargo legislativo e também os titulares de cargos executivos.

As medidas disciplinares previstas no artigo 11 vão de advertência a expulsão, passando por outras punições mais brandas, como suspensão temporária.

Os destinatários da ameaça são setores dos diretórios de Pernambuco - o senador Jarbas Vasconcelos à frente -, de Santa Catarina - especialmente o ex-governador e senador eleito Luiz Henrique da Silveira-, de Mato Grosso do Sul, do Acre, e do Rio Grande do Sul, que não apoiaram a candidatura de Dilma Rousseff (PT).

"O que se viu como descumprimento da orientação nacional foi lamentável. Pode-se argumentar ser compreensível à vista de rivalidades locais. Mas a disputa local não autorizava a insurgência contra a decisão nacional", diz o artigo.

O recado de Temer pode enfraquecer a intenção de setores da oposição de organizar a atuação no Senado, reunindo os dissidentes do PMDB aos senadores do DEM, do PSDB e de partidos governistas com postura de independência, como pretende ser a novata Ana Amélia Lemos (PP-RS).

A ideia é fortalecer a oposição, que será reduzida na Casa, para que ela seja mais eficiente na fiscalização dos gastos e ações do governo, e "não dê tiro a esmo", como aconteceu no governo Luiz Inácio Lula da Silva. A conduta atual de alguns senadores de oposição é considerada "inútil e folclórica": falta de foco nas críticas ao governo, discursos desorientados e pedidos de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI).

Um dos objetivos desse grupo informal que se pretende criar seria trabalhar pela realização da reforma política e contra a recriação de um imposto sobre movimentação financeira, nos moldes da CPMF.

Jarbas, que foi derrotado pelo governador Eduardo Campos (PSB) na disputa pelo governo de Pernambuco mas tem mais quatro anos de mandato, está disposto a se manter na oposição. Fez discurso na tribuna do Senado na véspera da publicação do artigo de Temer, prometendo "postura combativa e construtiva" e pedindo que Dilma respeite a atuação oposicionista.

Mas a tendência é que Jarbas fique cada vez mais isolado na bancada pemedebista do Senado. Seu maior aliado seria o ex-governador Luiz Henrique, parceiro do PSDB e do DEM no Estado e nacionalmente. Ambos são ligados ao ex-governador José Serra, derrotado na eleição presidencial.

Mas, a interlocutores, Luiz Henrique já manifestou preocupação com as ameaças da direção nacional. O PMDB de Santa Catarina sofreu intervenção da Executiva Nacional, durante a pré-campanha eleitoral, por causa do apoio dado ao candidato do DEM a governador, Raimundo Colombo.

Pedro Simon, cuja atuação em relação ao governo é ciclotímica no Senado, não pretende alinhar-se a nenhum grupo organizado de oposição. Está disposto a continuar independente. No primeiro turno da eleição presidencial, votou em Marina Silva (PV) e no segundo turno, em Dilma. Atualmente com 80 anos da idade, ele deixou o comando do partido no Rio Grande do Sul e planeja afastar-se da atuação partidária cada vez mais.

O ex-governador Roberto Requião, que apoiou a candidatura de Dilma, é um dos senadores eleitos com os quais a oposição sonha contar ao menos em questões pontuais. A avaliação é que dificilmente ele irá se submeter ao comando de Sarney e Renan, que comandam a bancada pemedebista no Senado.

Sindicalistas buscam pontes com Dilma

DEU NO VALOR ECONÔMICO

João Villaverde De São Paulo

Dilma não é Lula. Este é o mantra que as principais lideranças do movimento sindical têm repetido desde o início da campanha e que, agora com Dilma Rousseff eleita presidente da República, já começa a ser posto a prova. Enquanto Luiz Inácio Lula da Silva foi, por seis anos, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo (SP) e fundador do Partido dos Trabalhadores (PT), Dilma, nas palavras de um líder sindical, "até bem pouco tempo atrás nem sabia como funcionava um sindicato". A percepção é de que a relação entre centrais sindicais e o governo Dilma será, na visão dos dirigentes, mais formal do que o foi com o presidente Lula.

Para os dirigentes das seis maiores centrais sindicais brasileiras, que respondem por 5,9 mil sindicatos e um orçamento conjunto superior a R$ 115 milhões, o cálculo para o período que começa no ano que vem e se estende até 2014 é de que é preciso estabelecer "pontes" entre o governo e o movimento sindical, uma vez que o canal direto - Lula - deixa o Planalto em 30 dias. Os sindicalistas têm mantido conversas semanais com integrantes do governo e da equipe de transição, como Paulo Bernardo, do Planejamento, Alexandre Padilha, das Relações Institucionais, e Carlos Gabas, da Previdência, acerca de temas como o salário mínimo de 2011. Além disso, o ex-ministro Antonio Palocci, coordenador da equipe de transição de Dilma, tem demonstrado maior interesse em se aproximar - iniciativa que é bem vista pelos sindicalistas, que almejam um canal próximo à presidente.

"Por oito anos, só precisávamos ligar para ele [Lula] ou falar com o [Luiz] Dulci [ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência] para agendar uma reunião. Agora precisamos nos cercar de pontes para, ao menos, fazer esse caminho ser rápido como tem sido", resume um dirigente sindical, influente entre as centrais e próximo à equipe de transição. As "pontes" passam por cravar ministros próximos às centrais para, juntos à pressão no Congresso, liderada pelo presidente da Força Sindical, Paulo Pereira da Silva, o Paulinho, deputado federal (PDT-SP), influir na reforma política que a equipe de Dilma fala em aprovar.

Nomes como o de Padilha e o atual ministro do Trabalho Carlos Lupi, são elogiados, e Palocci, que antes era desenhado como próximo dos empresários e do mercado financeiro e distante do movimento sindical é visto, agora, com tintas menos carregadas.

Segundo apurou o Valor, o vice-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Rafael Marques, foi encarregado por Palocci para intermediar o contato com as centrais. De acordo com Marcos Afonso, secretário de relações sindicais do Sindicato dos Comerciários de São Paulo, que apoiou Dilma, e integrante da direção da União Geral dos Trabalhadores (UGT), a única das seis centrais a ficar neutra na disputa eleitoral, o metalúrgico do ABC avisou que "basta à central redigir um documento com uma pauta que ele [Marques] entrega a Palocci, que diz estar disposto a se reunir com todos", afirma. Procurado pela reportagem, Marques afirmou, por meio da assessoria do sindicato, que está de folga pós-eleitoral. Com a eleição do atual presidente do PT em São Paulo, Edinho Silva, como deputado estadual, Marques, que também é o vice do PT-SP, vai assumir a presidência.

"Estamos dispostos a conversar com todos, especialmente porque a hora para conversar e acelerar os contatos é agora", diz Ricardo Patah, presidente da UGT, entidade que conta com dois diretores na lista de possíveis secretários do governador eleito de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), com quem se reuniram na semana passada.

A construção de pontes entre as centrais e Dilma ambiciona, segundo apurou o Valor junto aos principais estrategistas do movimento sindical, influenciar decisivamente a reforma política, a ser debatida entre o Executivo e os congressistas. Segundo dois estrategistas próximos a sindicalistas e integrantes do governo, o movimento vai, aos poucos, "convergir para o voto em lista", que, segundo advogam, garantiria a participação de candidatos ligados às centrais no Congresso.

Para Artur Henrique, presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), a maior do país, "a reforma política é uma questão crucial do governo Dilma e, entre as medidas, a ideia do voto em lista é muito interessante". Para João Carlos Gonçalves, o Juruna, secretário-geral da Força Sindical, o voto em lista é "importante" porque "fortalece os partidos". A ideia está embasada na percepção de que com Dilma a relação não será apenas sindical, mas também partidária. "Lula tem sindicalismo no seu DNA, então se as centrais estavam em Brasília às 16h, poderia calhar uma reunião com o Lula às 18h e, dali, dependendo do dia, esticava para um jantar. Com a Dilma precisamos levar em conta nossa ligação com os partidos da base", diz uma fonte próxima às centrais.

A agenda de demandas das centrais, no governo Dilma, é mais complexa do que fora nos anos Lula, quando a prioridade era a "consolidação". Sob Lula, dirigentes das centrais passaram a fazer parte do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), criado em maio de 2003, que unia empresários, sindicalistas e assistentes sociais. Além disso, tiveram, em 2008, a aprovação da Lei 1.648, que permitiu o repasse de 10% do total arrecadado com a contribuição sindical às seis centrais - receberam, apenas em 2008 e 2009, o equivalente a R$ 146,5 milhões.

Sob Dilma, as demandas não dependem apenas da boa vontade do chefe do Executivo. São elas: a redução da jornada de trabalho de 44 para 40 horas semanais, a aprovação da convenção 158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que proíbe a demissão imotivada e o aumento continuado do salário mínimo. À exceção desta última, as duas primeiras batem de frente com organizações empresariais, como a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), que já se colocou contra a redução da jornada, e de associações empresariais, que avaliam que a convenção 158 "barraria" a contratação de pessoal.

"Estamos em um processo de avaliação. A Dilma não é o Lula, não tem aquele tino sindicalista dele, de falar alto e abraçar. A relação será mais formal, mas o mais importante é manter o espaço conquistado", resumiu Sergio Luiz Leite, primeiro secretário-geral da Força e integrante do Codefat, conselho que administra os recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Segundo Leite, "o mais importante agora é influenciar na composição do ministério".

Para Antônio Neto, presidente da CGTB, próxima ao PMDB, e um dos poucos sindicalistas presentes na festa da vitória da campanha Dilma, em Brasília, a futura presidente "tem total noção da importância das centrais para a construção de uma política social e trabalhista", diz. Para um dirigente de outra central, a permanência de Lupi no Trabalho será a primeira indicação de que "Dilma vai nos receber do jeito que Lula sempre fez."

Lula foi apenas o segundo presidente a indicar um líder sindical a um ministério, quando escolheu Ricardo Berzoini, ex-presidente do Sindicato dos Bancários de São Paulo, e Luiz Marinho, ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, para ocuparem as Pastas da Previdência e do Trabalho, respectivamente - antes deles, apenas Antônio Rogério Magri, ex-presidente do Sindicato dos Eletricitários fora ministro, do Trabalho, no governo Fernando Collor.

A disputa para ocupar a Pasta do Trabalho, no governo Dilma, divide, de maneira surda, as duas maiores centrais sindicais do país: a CUT, ligada ao PT, e a Força, ligada ao PDT. O atual ministro do Trabalho, Carlos Lupi, se insere na cota do PDT, partido onde a influência de Paulinho, líder do PDT na Câmara, é muito grande.

Sem declarar publicamente, dirigentes da CUT ainda esperam "reaver" o prestígio ministerial perdido quando Marinho deixou o governo para concorrer - e ganhar - pela Prefeitura de São Bernardo do Campo, em 2008. O presidente da entidade põe panos quentes, afirmando que já conversou com o presidente do PT, José Eduardo Dutra, pedindo isonomia na decisão. "Falei para ele que o papel da central não é indicar ministro, mas influenciar na política do governo", diz. Enquanto isso, Paulinho articula para o PDT não só assegurar a Pasta do Trabalho, mas também arrancar outra Pasta ministerial - a Secretaria de Pesca, que poderia ter um dirigente da Confederação Nacional dos Pescadores, da Força Sindical, como titular, o que ampliaria sua influência junto ao governo para, dizem pessoas próximas ao deputado, "galgar espaço para a disputa municipal de 2012".

Interlocução hoje passa por Palocci

Os quase 15 presentes já estavam um tanto animados com as doses de whisky tomadas desde o início daquela noite de 26 de novembro na Granja do Torto, residência de veraneio do presidente da República. Conversavam dirigentes das seis centrais sindicais, com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Luiz Dulci, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência, e Luiz Marinho, recém-eleito prefeito de São Bernardo do Campo (SP). Em determinado momento da conversa, Paulo Pereira da Silva, o Paulinho, presidente da Força Sindical, estendeu o celular a Lula e pediu que falasse com sua mulher, para, segundo conta, "avisá-la que eu não estava de farra, mas trabalhando". A ideia entusiasmou os presentes, que resolveram fazer o mesmo. Lula, então, afirmou que "falaria com todas, mas que em dois anos, todos ali falariam com a mesma mulher: Dilma Rousseff", em referência à então ministra-chefe da Casa Civil. "Ela será a candidata, só preciso avisá-la", disse. Era fim de novembro de 2008 e poucos, há 24 meses das eleições e em meio à crise mundial, imaginavam que Dilma fosse ser indicada para o pleito de 2010 - muito menos que ganharia.

A história, confirmada por três líderes sindicais presentes, dá conta, ao mesmo tempo, de duas realidades. A primeira refere-se à relação que os sindicalistas mantinham com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva - que não poucas vezes os convidava a seguir à Granja do Torto depois de reuniões no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), de onde despachava - e a segunda com a futura presidente, Dilma Rousseff.

"Em todas as reuniões, seja no CCBB, seja no Torto, seja no Planalto, Lula esteve sempre acompanhado de Dilma", conta um líder sindical. "Se precisávamos de algo, ligávamos para o Dulci ou para o Gilberto [Carvalho, chefe do gabinete presidencial], que intermediava uma conversa com Lula. Quando convencíamos o presidente, ele logo dizia "agora resolvam com a Dilma"", diz ele, para quem Dilma "conhece todos" e "entende" o papel das centrais junto ao Estado.

A relação com a futura presidente foi azeitada em 2010. Em janeiro, Lula e Dilma participaram da inauguração da sede do Sindicato dos Trabalhadores em Processamento de Dados de São Paulo (Sindpd), presidido por Antônio Neto, também presidente da Central Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB). Em abril, ambos estavam na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, onde a presidente eleita ouviu o coro "Olê olê olê olá, Dilma, Dilma", dos sindicalistas filiados às seis centrais. Dias depois, Lula e Dilma participaram de todos os eventos promovidos pelas centrais no 1º de maio.

À exceção da União Geral dos Trabalhadores (UGT), terceira maior do país, cuja presença de sindicalistas ligados ao PPS, DEM e PV na cúpula dificultou uma aproximação maior, as centrais, nas palavras de Wagner Gomes, presidente da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), ligada ao PCdoB, "apoiaram e defenderam muito a candidatura Dilma".

A relação com a candidata se dificultou a partir de agosto, quando a campanha eleitoral começou. "O pessoal que estava junto da Dilma, especialmente o [José Eduardo] Dutra [presidente do PT], a blindava de qualquer contato conosco. Eles tiveram de ver a disputa chegar no segundo turno para perderem a arrogância", diz um líder sindical. Para outro, Sergio Luiz Leite, 1º vice-presidente da Força, a realização do segundo turno foi, ao mesmo tempo, "uma derrota e uma vitória". "A partir dali, a campanha passou a destacar gente para conversar conosco. E nós entramos de cabeça", diz.

No segundo turno, Dilma não só participou de dois eventos com as centrais como destacou dois ministros - Alexandre Padilha, de Relações Institucionais, Carlos Gabas, da Previdência - para ampliar o contato com os sindicalistas. Além disso, segundo apurou o Valor, o ex-ministro Antonio Palocci, um dos coordenadores da campanha de Dilma e principal articulador da equipe de transição, intensificou suas relações com sindicalistas, que, em contrapartida, passaram a falar de Palocci em outros termos. Antes ligado ao fraco desempenho econômico do primeiro mandato - 3,5% ao ano, contra algo como 4,7% no segundo mandato -, agora o ex-ministro é associado "a políticas responsáveis, que ajudam a dar ao governo uma sustentação ideológica junto a setores mais conservadores", segundo um estrategista sindical.

Para Sergio Nobre, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Palocci cumpriu um papel importante em 2003, primeiro ano do governo, quando se esforçou para recuperar a confiança do mercado. "Ele foi um ministro muito importante naquele período. Agora a máquina está azeitada e acho que não é mais o momento de termos uma política conservadora. Espero que o critério de Dilma seja mesmo mais desenvolvimentista na área econômica", afirma Nobre. (JV)

Fim do governo Lula encerra a segunda "república sindical"

Cunhado em 1955 pelo jornalista e político Carlos Lacerda para se referir, críticamente, ao governo de Getúlio Vargas, que se suicidara um ano antes, o termo "república sindicalista" voltou a ser empregado por oposicionistas durante o governo Luiz Inácio Lula da Silva, quando sindicalistas passaram a ocupar cargos no Estado, além de embolsarem uma parcela relevante da contribuição sindical. Em 30 dias, Lula, ex-eminente sindicalista, deixa a Presidência e as centrais articulam para manter a República próxima de seus interesses.

Idealizado a partir de uma carta forjada, onde um deputado peronista argentino de nome Antônio Brandi escrevia à João Goulart, ministro do Trabalho do governo Getúlio Vargas (1950-1954), fazendo referências a uma "república sindicalista", a "carta" foi desbaratada pela reportagem do próprio jornal editado por Lacerda, a extinta "Tribuna da Imprensa", mas o termo ficou. Quando, sete anos depois, com Jango já na Presidência, foi criado o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), que o apoiava, a ideia de uma "república sindicalista" voltou com força ao debate público. A instauração do regime militar, após o golpe de março de 1964, e a consequente intervenção federal nos sindicatos enfraqueceu o bordão.

"O grande legado do governo Lula foi ter trazido para dentro do Estado o movimento sindical, que passou a ser um interlocutor importante de diálogo, algo totalmente distinto da tradição política brasileira, porque sempre foram marginalizados", diz Sergio Nobre, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC - entidade que Lula presidiu entre 1975 e 1981.

A relação entre sindicalistas e o presidente Lula culminou, na semana passada, com uma afirmação do presidente pela entrada das centrais nos fóruns internacionais, como o G-20. Falando na abertura da 2ª Conferência Mercosul de Emprego e Trabalho Decente, em Brasília, Lula afirmou: "Eu comentei com a companheira Dilma agora que ela foi para o G20 comigo que era preciso que a gente colocasse uma representação dos trabalhadores lá dentro".

Estoque da dívida de Estados com União reproduz financiamentos impagáveis

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Levantamento feito para o ‘Estado’ mostra que, se o índice de correção aplicado fosse a Selic e não o IGP-DI, o acréscimo neste ano cairia de R$56 bi para R$30 bi; alteração é complexa e depende de mudança na Lei de Responsabilidade Fiscal

Lu Aiko Otta, Renato Andrade

BRASÍLIA - Os Estados desembolsarão este ano R$ 34 bilhões para pagar a dívida que têm junto ao governo federal. Ainda assim, o estoque devido aumentará em R$ 22 bilhões. A situação dos governadores é a mesma das famílias que assinaram contratos de financiamento habitacional nos anos 1980 e 1990: pagam, pagam, e a dívida só faz crescer. Pior: ao final do contrato, eles ainda terão um resíduo enorme para quitar.

Tal como os financiamentos habitacionais difíceis de pagar, os contratos de refinanciamento da dívida dos Estados pelo Tesouro Nacional foram assinados a partir de meados dos anos 90.

O governador eleito de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), pretende capitanear um movimento para convencer a equipe econômica da presidente eleita Dilma Rousseff (PT) a mudar o índice de inflação que corrige o saldo devedor.

O governo federal resiste à ideia, porque colocá-la em prática não é simples. Para fazer a troca, o governo teria que modificar a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), considerada até mesmo por petistas como importante marco da organização das finanças públicas e peça fundamental da estabilidade econômica.

Índice. Os contratos firmados a partir de 1996 preveem que o saldo das dívidas renegociadas deve ser reajustado anualmente pela variação do IGP-DI, acrescido de 6% de juros.

O problema é que esse índice de inflação é extremamente afetado por variações na taxa de câmbio e no preço das commodities no mercado internacional, segundo explica o economista Geraldo Biasoto Junior, diretor executivo da Fundação do Desenvolvimento Administrativo (Fundap) do governo paulista e professor da Universidade de Campinas (Unicamp).

Este ano, por exemplo, o IGP-DI deve registrar uma alta de 11,02%. Considerando que o estoque das dívidas estava em R$ 316,4 bilhões no final de 2009, os Estados devedores terão um aumento de R$ 56 bilhões.

Pelos cálculos de Biasoto, feitos a pedido do Estado, se a dívida fosse corrigida pela taxa de juros básica (a Selic), a conta deste ano ficaria muito menor: R$ 30,8 bilhões.

"A distorção embutida nos fatores de reajuste do principal e do custo da dívida é evidente", diz o economista ligado a políticos do PSDB.

Alternativa. A utilização do IPCA, índice que baliza o sistema de metas de inflação, é uma das saídas apontadas por Biasoto para diminuir o problema.

"Uma alternativa razoável seria negociar a troca do indexador daqui para frente, passando ao IPCA, que é mais estável, mais aderente à Selic e menos colado ao câmbio e aos preços internacionais", argumenta o professor da Unicamp.

Se os contratos previssem o uso do IPCA, o estoque da dívida acumulada de 1998 até o final de 2009 estaria 24% menor. "Seriam nada menos que R$ 74,4bilhões a menos, num estoque de R$ 316,4 bilhões", explica Biasoto.

Tomando um período de tempo diferente, o Tesouro Nacional chega a outra conclusão.

Entre dezembro de 1996 e junho de 2010, a variação da taxa Selic foi de 939,9%. Em comparação, o IGP-DI acrescido de 6% ao ano somaria 700,12% no mesmo período. Olhando por esse ângulo, a operação foi vantajosa para os governadores. Essa diferença entre taxas de juros é paga pelos contribuintes brasileiros. É o que os técnicos chamam de "subsídio implícito" da União para os Estados.

Inaceitável. A mudança nos contratos da dívida e, por tabela, na Lei de Responsabilidade Fiscal, encontra bastante resistência entre economistas e analistas. "Isso daria direito a outros Estados, que não abusaram da dívida, de reivindicar outra coisa. A gente não pode titubear", afirma Amir Khair, consultor da área de finanças públicas.

Ele insiste que poucos Estados - como São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais - têm problemas mais sérios em relação aos débitos renegociados.

Geraldo Biasoto, entretanto, acha que é inaceitável travar a capacidade de investimento dos Estados, enquanto o governo federal amplia o volume de recursos para instituições oficiais de crédito como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Entre dezembro de 2008 e setembro de 2010, o crédito repassado para essas instituições subiu de um valor equivalente a 1,4% do Produto Interno Bruto (PIB) para 7,4%.

"Hoje significam R$ 254,5 bilhões, ou seja, em apenas dois anos representam 75% do estoque de dívida dos Estados."

PARA LEMBRAR

União impediu risco de calote nos anos 90

Embora hoje reclamem das condições da dívida, os Estados e grandes municípios foram salvos pela União nos anos 1990. Governadores e prefeitos se endividavam no mercado, emitindo títulos. Porém, pagavam nas operações juros cada vez mais elevados. Havia risco de calote.

Essa situação difícil foi criada pela queda da inflação após o Plano Real. Até então, todo o setor público gastava descontroladamente e esperava a inflação corroer o valor de suas dívidas.

Na megaoperação de socorro, o Tesouro assumiu as dívidas. Os Estados passaram a dever à União. Essa dívida ficou mais barata. Em vez de taxas de mercado, passou a ser corrigida pela inflação medida pelo IGP-DI mais taxa de 6% a 9% ao ano. A prestação não podia passar de 13% da receita dos Estados. Em troca, tiveram de fazer duro controle de gastos.

Presidente eleita vai sofrer forte pressão de governadores

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Antes de Dilma tomar posse os eleitos nos Estados apresentam agenda que inclui dívidas, Lei Kandir e até royalties

Lu Aiko Otta

BRASÍLIA – A dificuldade dos Estados em pagar suas dívidas com a União é apenas um item de uma ampla agenda que a presidente eleita, Dilma Rousseff, tem a tratar com as unidades da Federação. Há assuntos tão urgentes que, na semana passada, um grupo de futuros governadores se reuniu com o vice-presidente eleito, Michel Temer (PMDB-SP), para pressionar o novo governo.

Os governadores querem barrar a votação, na Câmara, da PEC 300 que estabelece um piso salarial nacional para policiais civis, militares e corpo de bombeiros. A aprovação dessa proposta elevaria as despesas dos governos federal e estaduais em R$ 43 bilhões. Há um acordo, patrocinado por Temer, pelo qual a matéria irá a votação ainda este ano. Os governadores pediram para esperar a posse dos eleitos.

São Paulo e outros Estados produtores pressionam também para que seja aprovada uma lei complementar que adia a entrada em vigor de um dispositivo da Lei Kandir que permitirá a empresas transformar em créditos tributários o ICMS pago nas contas de luz, telefone e na compra de material de consumo. Essa desoneração começa a valer em 1.º de janeiro de 2011. É um alívio para o caixa das empresas. Por outro lado, os Estados deixarão de arrecadar R$ 19,5 bilhões.

Os governadores vinham pressionando ainda para que fosse incluído no Orçamento de 2011 a previsão de R$ 7,2 bilhões em recursos federais a serem transferidos aos Estados a título de compensação pela desoneração na exportação de produtos básicos e semielaborados, prevista na Lei Kandir. Na semana passada, houve acordo em torno da cifra que era oferecida pelo governo federal: R$ 3,9 bilhões.

Outro tema que aguarda votação no Congresso é o que regula a divisão dos royalties do pré-sal, um bolo estimado em R$ 50 bilhões. O vazamento de uma proposta técnica na qual os chamados Estados produtores diminuiriam sua fatia gradualmente num período de dez anos, aumentando a parcela distribuída às demais unidades da Federação, provocou forte reação do governador do Rio, Sérgio Cabral.

Economista sugere saída: em vez de pagar, investir

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Lu Aiko Otta, Renato Andrade

BRASÍLIA - Em vez de pagar a dívida ao Tesouro Nacional, os Estados poderiam fazer novos investimentos, que seriam considerados como pagamento do débito. Eles fariam parte de um programa entre governo federal e estaduais para fortalecer a infraestrutura. Essa é a proposta do economista Geraldo Biasoto Junior para aliviar a situação dos Estados.

A conversão de dívida em investimento atingiria apenas a parcela da receita estadual que é gasta como pagamento dos juros. As obras seriam decididas conjuntamente e tocadas pelos governos estaduais. "O governo federal perderia uma receita financeira. Mas o que importa para a sustentabilidade e credibilidade das contas públicas é a gestão dos fluxos não-financeiros."

O ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, já rejeitou a proposta de rever os contratos de refinanciamento das dívidas, mas apontou alguns caminhos aos governadores. Uma das saídas seria tomar um empréstimo no exterior, com custos mais baratos, e quitar antecipadamente a dívida renegociada com o Tesouro.

A governadora do Rio Grande do Sul, Yeda Crusius, tomou esse caminho e conseguiu, segundo o ministro, uma melhora de US$ 220 milhões em seu fluxo de caixa.

O Rio mostrou que é possível

DEU EM O GLOBO

Cidade comemora a libertação do Alemão e a maior vitória sobre o tráfico

Após três dias de tensão e medo de que ocorresse um banho de sangue no Complexo do Alemão, o Rio respirou aliviado e comemorou a maior vitória das forças de segurança sobre o crime organizado. Em pouco mais de uma hora, a polícia retomou o território que durante pelo menos três décadas foi uma das principais fortalezas do tráfico, controlada por bandidos truculentos e munidos de armas de guerra. O sinal da conquista, que ficará para sempre marcada na História da cidade, estava nas bandeiras do Brasil e do Estado do Rio de Janeiro tremulando numa plataforma do teleférico do complexo. “O Alemão era o coração do mal”, disse o secretário de Segurança, José Mariano Beltrame. Sem ferir um inocente sequer, os 2.600 policiais e militares fizeram uma operação exemplar, com três mortes do lado inimigo. Houve cerca de 20 presos, mas há rumores de que bandidos tenham escapado ao cerco do Exército e fugido até por tubulações de água pluvial. Disfarçado de mata-mosquito, um dos traficantes conseguiu furar o bloqueio, mas foi detido depois na casa de uma tia. Pela primeira vez desde 1994, o Exército vai policiar o Complexo do Alemão. O governador Sérgio Cabral pediu ao Ministério da Defesa que ocupe o conjunto de favelas até que o estado forme novos policiais que vão atuar na Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da favela.

A senhora liberdade abriu as asas sobre nós

População comemora libertação histórica em operação exemplar, sem sequer um inocente ferido

Rabiscados por uma moradora do Complexo do Alemão e depositados numa caixinha de fósforo, os versos de um samba que pede liberdade, imortalizados pela Imperatriz Leopoldinense, escola de samba de Ramos, se tornaram realidade num dos maiores conjuntos de favelas do Rio. Depois de pelo menos 30 anos de domínio do tráfico, a polícia, com tropas das Forças Armadas, levou ontem pouco mais de uma hora para chegar ao alto do maciço.

Foram momentos de intensa expectativa.

Mas, logo, um dos momentos mais marcantes e emocionantes dos últimos dias de ataques de terror, e contra-ataques das forças de segurança, seria presenciado: a Bandeira do Brasil tremulava soberana sobre uma laje, uma imagem que já entrou para a história da cidade.

— O Alemão era o coração do mal — disse, no fim do dia, o secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, traduzindo em poucas palavras o significado da vitória.

O prefeito Eduardo Paes revelou na tarde de ontem que vai assinar decreto municipal tornando o dia 28 de novembro a data de “refundação da cidade”.

Paes vai anunciar sua decisão na reunião que terá hoje, às 10h, com todos os secretários municipais.

— É uma data histórica para o Rio, o estado e o país. Nada mais justo. A tomada do Alemão pelas forças do estado inaugura um novo momento para o Rio — disse Paes.

Ao contrário do que se temia, o banho de sangue não aconteceu. Os 2.600 homens do Estado “varreram tudo o que estava pela frente” como prometido, depois de 24 horas de um Rabiscados por uma moradora do Complexo do Alemão e depositados numa caixinha de fósforo, os versos de um samba que pede liberdade, imortalizados pela Imperatriz Leopoldinense, escola de samba de Ramos, se tornaram realidade num dos maiores conjuntos de favelas do Rio. Depois de pelo menos 30 anos de domínio do tráfico, a polícia, com tropas das Forças Armadas, levou ontem pouco mais de uma hora para chegar ao alto do maciço.

Foram momentos de intensa expectativa.

Mas, logo, um dos momentos mais marcantes e emocionantes dos últimos dias de ataques de terror, e contra-ataques das forças de segurança, seria presenciado: a Bandeira do Brasil tremulava soberana sobre uma laje, uma imagem que já entrou para a história da cidade.

— O Alemão era o coração do mal — disse, no fim do dia, o secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, traduzindo em poucas palavras o significado da vitória.

O prefeito Eduardo Paes revelou na tarde de ontem que vai assinar decreto municipal tornando o dia 28 de novembro a data de “refundação da cidade”.

Paes vai anunciar sua decisão na reunião que terá hoje, às 10h, com todos os secretários municipais.

— É uma data histórica para o Rio, o estado e o país. Nada mais justo. A tomada do Alemão pelas forças do estado inaugura um novo momento para o Rio — disse Paes.

Ao contrário do que se temia, o banho de sangue não aconteceu. Os 2.600 homens do Estado “varreram tudo o que estava pela frente” como prometido, depois de 24 horas de um ultimato em que se aguardou a rendição dos bandidos, sem ferir um inocente sequer. Nas baixas, três mortos, apenas do lado dos bandidos. No início da manhã, houve confrontos. Mas, em seguida, os policiais teriam pleno domínio da região de mais difícil acesso, conhecida como Areal. Ali, já se dava como certo o sucesso da missão que alguns achavam ser impossível.

À medida em que os policiais progrediam morro acima, o mito do poderio da facção criminosa rolava morro abaixo. Centenas de bandidos que fugiram para lá, depois das incursões na Vila Cruzeiro, na Penha, deram nova demonstração de que jogavam para a plateia ao exibir fuzis e fazer sinais ameaçadores do bunker. Cara a cara com os policiais, o comportamento mudou muito. Como ratos, chegaram a tentar fugir pelos egotos.

Prova de que a aparente valentia não resistiu à pressão foi a prisão do traficante Elizeu Felício de Souza, conhecido como Zeu. Condenado pelo assassinato do jornalista Tim Lopes e foragido da Justiça, ele estava visivelmente abatido ao ser detido. Um detalhe não passou despercebido: ele tinha urinado nas calças. Outro bandido, identificado como Vitinho, tentou fugir vestido com um uniforme de mata- mosquito, mas foi denunciado e preso na Favela da Chatuba, também na Zona Norte. Pelo menos 20 bandidos foram capturados, segundo estimativa feita ontem à noite.

Foram denúncias dos próprios moradores, demonstrando apoiar como nunca a polícia, que tornaram a ação mais efetiva. O Disque-Denúncia havia recebido 746 ligações, a maioria seria de moradores da comunidade. Só quem dorme com o inimigo conheceria detalhes como os que levaram à descoberta da mansão de Polegar — outro traficante na lista dos mais procurados que estava na resistência — entre as mais de 26 mil casas humildes do lugar. O bandido está foragido.

Mas agora sabe-se que, em meio à miséria do complexo, um dos mais baixos IDH do Rio, ele vivia numa casa luxuosa: três andares com piscina e banheira de hidromassagem.

Os próximos dias serão de pente fino.

Ontem, porém, foram feitas apreensões recordes, só registradas em interceptações de carregamentos de droga nas estradas: cerca de 13 toneladas de maconha, 200 quilos de cocaína e 10 quilos de crack.

De patinho feio, o Rio de Janeiro passa a cisne em matéria de segurança pública, ainda que neste primeiro momento. Com o cerco sem precedentes ao tráfico, cresce a pressão para que a presidente eleita Dilma Rousseff leve as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) a outros estados. Ontem, a assessoria da petista reafirmou que este é um dos compromissos de campanha que serão discutidos com os governadores no início de 2011.

Na quinta-feira passada, ao pisar na Vila Cruzeiro, que fica ao lado do Alemão, o poder público revelou uma estratégia militar que consiste na progressão gradual e certeira sobre o território, semelhante à usada pelas tropas aliadas ao ocupar a Normadia, durante a Segunda Guerra — e que criou as condições para se vencer os nazistas.

Assim como Paris foi retomada no passado, a polícia também, com passos milimetricamente pensados, recuperou o Alemão. É um feito e tanto.

Mas foi apenas uma batalha vencida.

A guerra ainda não acabou.

Combate ao crime exige mais medidas

DEU NO VALOR ECONÔMICO

A ocupação do Complexo do Alemão, tomado ontem pela Polícia Militar do Rio de Janeiro com apoio das Forças Armadas, após oito dias de embates com membros do Comando Vermelho, ainda não representa o controle do crime organizado na cidade.

Para especialistas, é necessária uma segunda etapa de combate, contra outras facções e milícias, que exigirá novas estratégias, além da instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). O sociólogo Gláucio Ary Dillon Soares, sugere a adoção no Brasil de mecanismos semelhantes aos utilizados pelo governo de Álvaro Uribe (2002-2010) na Colômbia para a desmobilização de grupos criminosos. Juristas defendem o cumprimento da legislação existente para evitar a articulação de criminosos presos com comparsas que estão em liberdade
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Ocupação não garante controle sobre facções

César Felício De Belo Horizonte

A ocupação do Complexo do Alemão, conjunto de favelas tomado na manhã de ontem, praticamente sem resistência, pela Polícia Militar do Rio de Janeiro com apoio das Forças Armadas, ainda não representa o controle sobre o crime organizado na cidade.

Por uma questão tática - diminuir a possibilidade de uma articulação das facções criminosas entre si e com os milicianos - os ataques foram direcionados a áreas controladas apenas pelo Comando Vermelho. Para o sociólogo Gláucio Ary Dillon Soares, a segunda etapa do combate, contra outras facções e milícias, exigirá estratégias que ultrapassem a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs).

Dillon Soares sugere a adoção no Brasil de mecanismos semelhantes aos utilizados pelo governo de Álvaro Uribe (2002-2010) na Colômbia para a desmobilização de grupos criminosos. Naquele país, o governo ofereceu o perdão para crimes cometidos e até uma bolsa equivalente a US$ 180 para garantir a reinserção dos criminosos no convívio social.

Em três anos, Uribe conseguiu que 13 mil pessoas entregassem as armas, majoritariamente integrantes de grupos paramilitares, que cobravam proteção para perseguir narcotraficantes e militantes de movimentos sociais. Mas, na sexta-feira passada, a Justiça colombiana tornou sem efeito os benefícios concedidos aos desmobilizados.

No caso do Rio, Dillon Soares enxerga mais possibilidades de se tentar um acordo do gênero com os integrantes das milícias, que expulsaram facções criminosas de favelas e passaram a extorquir moradores. Para o sociólogo, a vinculação dos milicianos com o aparelho institucional do Estado pode fazer com que seus integrantes tenham percepção de que não teriam como enfrentar uma ofensiva das forças de segurança.

Aos 76 anos, e com um currículo no sistema Lattes de 49 páginas, Dillon Soares é carioca do bairro das Laranjeiras e pesquisador do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). Há 35 anos seu objeto de estudo é a criminalidade urbana. Desde janeiro de 2007, o sociólogo integra a organização não governamental "Rio de Paz", que, na sexta-feira, fez um apelo para que o poder público fizesse uma proposta formal de rendição aos criminosos, que estavam cercados no Complexo do Alemão. A "Rio de Paz" foi formada logo após a interceptação de um ônibus interestadual por criminosos, que atearam fogo ao veículo e mataram sete passageiros.

A seguir, a entrevista feita com o sociólogo Glaucio Ary Dillon Soares, no fim da tarde de sexta-feira, por telefone:

Valor: -No início da atual onda de violência no Rio, no dia 21, houve avaliações de que os episódios estavam sendo superdimensionados pela mídia e os indícios de que se tratava de um movimento organizado eram frágeis. Qual o balanço que o sr. faz dos conflitos até agora?

Gláucio Ary Dillon Soares : Entre 2000 e 2009, houve mais de 800 ônibus danificados no Rio de Janeiro, com as ocorrências sempre ligadas a prisões, remoções e mortes de traficantes. O que chama a atenção agora é a dispersão geográfica dos eventos em uma concentração menor de tempo , o que indica, sim, coordenação. Mas trata-se da coordenação de grupos fragilmente organizados. É um erro pensar nas facções como empresas com linhas hierárquicas organizadas. Elas se conectam fragilmente. Vem uma ordem e cada um age do jeito que pode. O traço que as une é que parece haver uma preocupação, por parte dos bandidos, em destruir patrimônio, mas evitar perdas de vidas.

Valor: Em 2005, com um ônibus urbano, e em 2006, com um ônibus interestadual, houve intenção deliberada de matar os passageiros quando os veículos foram incendiados. Morreram 12 pessoas.

Dillon Soares : Foram ações pontuais, que tiveram como consequência a execução sumária de seus autores, por parte das facções criminosas. A mídia não superdimensiona ao retratar as ações como uma ofensiva organizada, o exagero está ao se avaliar a força destas facções.

Valor: É equivocado aproximar o caso carioca do existente no México ou na Itália?

Dillon Soares : Basta observar a grande diferença da intensidade da violência nas ações e a extensão temporal dos episódios. É um exagero comparar as facções daqui com os cartéis do México e com a Máfia e a Camorra na Itália.

Valor: O sr. não considera a hipótese de que a entrada das Forças Armadas em cena e a disposição das autoridades governamentais em não aceitar acordos tácitos leve a uma perenização do conflito nesse nível de intensidade?

Dillon Soares : O ponto decisivo será o resultado da operação que se desenrola no Complexo do Alemão [a entrevista ocorreu no momento em que as forças de segurança começavam a cercar a área ]. A invasão da quinta-feira na Vila Cruzeiro mostrou que as facções criminosas sentiram o golpe e estão inferiorizadas em poder de fogo. A aposta maior é que o conflito arrefeça, com alto índice de prisões e baixas entre os criminosos.

Valor: O retrospecto do uso de força bélica em conflitos urbanos é muito ruim, inclusive internacionalmente...

Dillon Soares : É péssimo, desde que não se tenha uma determinação "churchilliana" do governo para resolver a situação. Na Somália, durante o governo Clinton, os EUA foram humilhados por milícias, com a derrubada de um helicóptero Black Hawk, mas não havia determinação em se vencer aquela situação. A determinação é o grande diferencial que existe no governo de agora.

Valor: Há indícios de que o Comando Vermelho e os Amigos dos Amigos, as mais importantes facções, estão atuando em conjunto na onda de ataques. Isso não elevou o conflito a outro nível de gravidade?

Dillon Soares : Sou extremamente cético em relação a essa aproximação. Precisaria de evidências irrefutáveis. Por um motivo básico: as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) reduziram os índices de criminalidade nas favelas que ocuparam, exatamente por bloquearem as invasões de um bando na área do outro. Por irônico que seja, as UPPs salvaram vidas de bandidos também. O que importa ressaltar é que essas facções literalmente se matavam até muito pouco tempo atrás. E as UPPs até o momento entraram na área de uma das facções, não as atingiram de modo uniforme. Elas foram instaladas na área de apenas uma das principais facções [O entrevistado evita citar o nome das facções. As áreas onde as UPPs foram instaladas até este ano são conhecidas pela atuação do Comando Vermelho]. As outras facções e as milícias foram deixadas para um segundo momento, talvez.

Valor: O combate às milícias não tende a ser muito mais duro, dado que elas têm um enraizamento no aparelho institucional do Estado que o narcotráfico jamais teve?

Dillon Soares : Quando o foco for a milícia, teremos uma situação de grande ocorrência de dupla militância. Haverá a necessidade de separar a milícia da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros. Não será fácil. Mas o poder de fogo deles, feita a separação, é menor do que o das atuais facções criminosas.

Valor: O conflito atual não coloca em xeque a política das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) como eixo central da estratégia de segurança do governo do Rio?

Dillon Soares : As UPPs fazem a ocupação com certo grau social de áreas antes controladas pelo tráfico. Elas claramente se inspiram nas iniciativas adotadas na Colômbia, sobretudo em Medellín, cidade com muitas semelhanças com o Rio. Mas há outra vertente da estratégia colombiana que seria importante refletir sobre sua adoção aqui. É o que chamo de uma proposta de rendição: os soldados do tráfico, os integrantes das facções, se integrariam na sociedade, com o esquecimento dos crimes passados, em troca do abandono das armas. Na Colômbia, funcionou relativamente bem. O grande obstáculo é que, no Brasil, a segurança pública é jurisdição estadual, que não tem poder sobre a legislação penal.

Valor: Se a organização das facções criminosas é frágil, quem seriam os eventuais interlocutores de um acordo de rendição?

Dillon Soares : Encontrar os comandantes é fácil, porque a maioria deles já está presa. Mas acredito na eficácia de uma interlocução por meio de intermediários, sobretudo das igrejas. Não só a Igreja Católica, mas muitas evangélicas.

Valor: Do ponto de vista da opinião pública, este acordo não teria dificuldades de ser concretizado?

Dillon Soares : O cenário da opinião pública tornou-se muito adverso para as facções criminosas. Eles aproximaram, com esses ataques, a polícia da população, que se viu definitivamente na condição de vítima. É previsível supor que certos temas voltarão com força ao debate, como o fim da maioridade penal aos 18 anos. Ela só existe em seis países. É cada vez mais difícil sustentá-la como uma medida civilizatória. A linha dura contra a bandidagem vai ganhar muito terreno. O grupo " foucaultiano" de intelectuais que desconfia das instituições, e que se alinhou com o que se convenciona chamar de "política de direitos humanos", sai disso tudo muito enfraquecido. Temos um grande problema para decidir pela frente, que é o que fazer com o usuário de drogas. As opções estão ganhando uma definição nítida: ou libera-se , ou criminaliza-se o usuário. Mas o fumador de crack das ruas e os que fumam maconha nas redações, nas universidades, nas repartições públicas precisam receber o mesmo tratamento. É uma questão que terá que ser enfrentada.

Alcione - As rosas não falam / Cartola

Tecendo o amanhã::João Cabral de Melo Neto

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.

A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.