sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

A porta que não será trancada:: César Felício

A presidente Dilma Rousseff tem um encontro marcado com uma crise no próximo mês, quando deve comparecer à cúpula dos países do mundo árabe e da América do Sul, em Lima, no dia 16. Será a estreia da presidente em um cenário global, uma vez que Dilma não quis circular por Davos. A cúpula de Lima, talvez o mais abrangente encontro intercontinental de chefes de Estado do que outrora se convencionava chamar de "Terceiro Mundo", vai reunir o grupo de 34 países pela terceira vez, agora mais do que nunca marcados pelo contraste institucional: do lado sul-americano, não é possível caracterizar governo algum, nem mesmo o mais controverso, de Hugo Chávez na Venezuela, como uma ditadura. No mundo árabe, a dificuldade é a oposta. Os fatos dos últimos dias, envolvendo Tunísia e Egito, falam por si.

Essa assimetria institucional jamais foi um problema para o antecessor de Dilma e nem para a aproximação entre os dois blocos, que vem sendo bem-sucedida. Economicamente, o movimento comercial entre o Brasil e o mundo árabe quadruplicou nos últimos oito anos; o Egito assinou um acordo de livre comércio com o Mercosul e a Jordânia deve ser o próximo a fazê-lo. No plano político, o encontro está sendo precedido por uma onda de países latino-americanos que reconheceram o direito da Palestina ser estabelecida com as fronteiras anteriores a 1967.

Há dúvidas sobre o grau de pragmatismo que a presidente - vítima de uma ditadura de uma forma que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva jamais foi - terá no cenário internacional. Poucos dias atrás, em nota, Dilma prometeu conferir à questão dos direitos humanos "um lugar central em nossa política externa, sem seletividade e tratamento discriminatório". A cúpula de Lima pode ser tanto um momento de afirmação dessa centralidade como uma boa ocasião de separar a retórica da "realpolitik".

A depender do rumo que a crise nos países árabes tome, existe até uma possibilidade de que se reforce a aproximação do Brasil com o mundo árabe. "O que nós estamos testemunhando agora é claramente uma vitória dos reformistas", comenta a jornalista americana de origem libanesa Octavia Nasr, dona da empresa de consultoria Bridges Media. Octavia trabalhou por 20 anos na CNN e foi coordenadora de cobertura em assuntos do Oriente Médio, e ganhou notoriedade no ano passado quando foi demitida por colocar no Twitter um comentário lamentando a morte de um líder religioso pertencente ao Hezbollah. Segundo a jornalista, torna-se cada vez mais difícil impedir uma guinada democrática tanto na Tunísia quanto no Egito, com chances da onda atingir outros países. Caso prevaleça o reformismo, estará criada uma alternativa à bipolaridade entre o fundamentalismo islâmico de um lado e o regime ditatorial de corte personalista, militar ou de partido único, do outro. Aumentará o nível de conforto do Brasil em alinhar-se com o mundo árabe.

O risco, conforme a própria Octavia lembra, é o de grupos como o da Irmandade Muçulmana surfarem na onda que se ergue contra Hosni Mubarak no Egito e que se insinua em outros países. A resposta poderá vir apenas em setembro, mês das eleições egípcias. "Será duro para Mubarak concorrer novamente ou eleger o filho Gamal Mubarak", comenta a jornalista. As eleições no mundo árabe são famosas por garantir reconduções com votações acima de 90% do total de sufrágios, maiorias que paradoxalmente retiram, e não concedem, credibilidade a seus beneficiários.

É uma questão complexa ligar a crise nos países árabes à economia. Pelos indicadores normalmente usados para avaliação, o quadro tunisiano e egípcio é de difícil caracterização. Nem o egípcio Mubarak e nem o tunisiano Ben Ali enfrentaram uma recessão em suas longas ditaduras, mas ambos os países sofrem de problemas que se tornaram crônicos. Segundo o Banco Mundial, o último ano em que houve retração econômica na Tunísia foi 1986. No Egito, não houve caso algum nas últimas três décadas.

As altas taxas de desemprego podem ser uma explicação para a cólera das multidões, já que o Oriente Médio e Norte da África possuem regionalmente a maior taxa mundial de mão de obra desocupada, segundo a instituição. E essa não é uma situação observada apenas nos últimos anos: os indicadores do Banco Mundial mostram que o índice anda estável, acima dos dois dígitos, na Tunísia e no Egito desde 2000. O ingrediente essencial para a explosão foi a ditadura em si, que produziu um regime fechado a tal ponto que o desespero de um camelô que se imolou ao ter a mercadoria apreendida pela polícia catalisou a revolta contra o regime tunisiano.

Difícil é deixar de ver com ceticismo o resultado concreto dessas explosões. "Não há essencialmente nada de novo no Oriente Médio. Os governos podem cair, mas os regimes ficam", comentou o professor Paulo Vizentini, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), autor do livro "Relações Internacionais do Brasil - de Vargas a Lula". Segundo Vizentini, a desorganização das oposições, a ausência de uma classe média estruturada e a falta de pressão internacional são fatores que conspiram a favor do status quo.

Vizentini também é cauteloso ao demarcar a diferença que Dilma poderá ter de Lula no plano externo. "Lula foi um criador de oportunidades, que abriu várias frentes simultâneas. Dilma tende a dar conteúdo a essas iniciativas, onde isso for possível", afirma. A presidente não abrirá novas portas, mas dificilmente trancará alguma.

César Felício é correspondente em Belo Horizonte. A titular da coluna, Maria Cristina Fernandes, está em férias

FONTE: VALOR ECONÔMICO

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