terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

O bom pastor:: Raymundo Costa

Chegou uma conta do passado ao gabinete da presidente Dilma Rousseff. Em correspondência de pouco mais de uma página, oficiais de inteligência da Agência Brasileira de Inteligência propõem a reforma da Abin. Segundo eles, a agência até os dias de hoje é objeto de noções errôneas e refém do legado do Serviço Nacional de Informações, o SNI de triste memória da ditadura militar. Dizem que, sem reforma, não há como se livrar do passado.

O SNI é um desses acertos com o passado que o regime civil brasileiro até agora contornou, após a redemocratização do país. Fernando Collor, o primeiro presidente eleito pelo voto direto no pós-64, tratou do assunto a sua maneira, como se fosse possível acabar com o SNI com um golpe de ippon. As tentativas de mudanças ocorridas no governo Fernando Henrique Cardoso também não enfrentaram questões essenciais, como a subordinação hierárquica da agência e o limite de sua atuação doméstica.

Por enquanto, Dilma tirou de dentro do Palácio do Planalto algumas questões delicadas do passado e outras do interesse militar, como a dos arquivos da ditadura, no primeiro caso, e a da compra dos novos caças da Força Aérea Brasileira (FAB), sob a análise agora também do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio. Sobre a Abin vazaram notícias a respeito de sua eventual transferência para o Ministério da Justiça, uma solução no mínimo inusitada, diante do caráter policial embutido na proposta.

Agentes da Abin querem se livrar do legado do SNI

O momento do debate é agora, quando o governo discute, meio na surdina, um Plano Nacional de Informações (PNI).

A carta enviada a Dilma é assinada pela Associação Nacional dos Oficiais de Inteligência (Aofi), uma das duas associações existentes de funcionários da Abin. A diferença é que reúne apenas os oficiais de inteligência do órgão, algo em torno de 120 agentes. A correspondência afirma que expressa a percepção de parcela significativa dos associados. E aborda questões cruciais deixadas sem uma resposta, ao longo desse período, a fim de aperfeiçoar a atividade de inteligência no país.

Os agentes apoiam que a Abin seja inserida numa cadeia de comando com subordinação civil. A agência está pendurada na Presidência da República, consequentemente subordinada à presidente, civil eleita pelo voto popular direto. Na prática, responde no dia a dia ao chefe de gabinete de Segurança Institucional (GSI), órgão que sucedeu a antiga Casa Militar da Presidência da República - a raiz do GSI é militar. Não há como fugir disso. É natural, portanto, que sua visão de inteligência seja de natureza mais militar que civil.

Na opinião dos agentes, a estrutura na qual esta inserida a Abin resiste a acompanhar mudanças de mentalidades e práticas exigidas no atual contexto da inteligência no Brasil e em todo o mundo. Os oficiais de inteligência não citam fatos concretos em sua correspondência, que em geral é tópica, conceitual. Mas cabe lembrar o envolvimento de mais de 80 agentes da Abin numa investigação da Polícia Federal sobre o banqueiro Daniel Dantas, parceria (PF e Abin) impensável em outras épocas e que, como em outras épocas, ocorreu à margem do processo legal.

O aprisionamento ao passado, no entendimento transmitido pela Aofi ao Palácio do Planalto, seria um obstáculo ao melhor aproveitamento do potencial de que dispõe hoje a Abin. Desde o governo Fernando Henrique Cardoso são realizados concursos públicos para os quadros da agência. A renovação, de acordo com a associação, seria mais que bem-vinda, seria almejada. Na realidade, hoje se poderia afirmar que cerca de 90% dos servidores da Abin seriam contrários ao emprego da agência em operações de monitoramento de movimentos sociais, como era comum no passado.

A carta defende que a subordinação da agência de inteligência seja do chefe de Estado, a exemplo do que ocorre em outras democracias modernas, nas quais o "serviço" responde diretamente ao presidente da República, a quem cabe municiar com informações sensíveis para a tomada de decisões estratégicas.

Esse é o espaço que, na visão da Aofi, deve ser demarcado com precisão, pois em nenhum momento a inteligência deveria se confundir ou concorrer com a inteligência policial, militar e nem com atividade ministerial.

A Abin, de acordo com o documento, deve fazer parcerias com outros espaços de inteligência, como aqueles desenvolvidos pela Justiça (Polícia Federal, entre outros), o Ministério da Defesa (os serviços secretos militares) e o Ministério das Relações Exteriores (inteligência externa). Por um motivo basilar: sua principal função é produzir o conhecimento politicamente isento.

Os agentes propõem a Dilma que sejam aperfeiçoados os mecanismos de controle externo da atividade de inteligência e que sejam implementados outros mais eficientes. Na vida real, isso significa submeter a Abin ao controle do Congresso, efetivamente, pois já há subcomissões que preferem passar ao largo do que se passa no mundo quase sempre cinzento da espionagem.

A existência de um marco jurídico bem definido serviria também de proteção aos agentes, que não dispõem de prerrogativas legais necessárias à obtenção de informações sensíveis, o que eles consideram um fator limitante e determinante na qualidade de conhecimento da inteligência. É algo como a FAB antes da lei do abate, quando podia monitorar aviões, por exemplo, suspeitos de integrar a esquadrilha do narcotráfico, mas não dispunha do poder de coerção efetivo para fazê-los aterrissar.

Trata-se, sem dúvida, de uma questão delicada, pois o que se fala, na realidade, é de dar autorização para um serviço interferir em entidades e na vida privada. É certo que o Estado tem questões estratégicas de fronteiras, biopirataria, pirataria industrial e minerais, para não citar uma dezena de outros, sobre as quais precisa estar bem informado, no mundo moderno. Na carta a Dilma, a essência da proposta dos oficiais é que a inteligência deve ser vista na transcendência do Estado e nunca trabalhar contra movimentos que estão no embate político.

Raymundo Costa é repórter especial de Política, em Brasília. Escreve às terças-feiras

FONTE: VALOR ECONÔMICO

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