sexta-feira, 18 de março de 2011

Antes e depois :: Míriam Leitão

A energia nuclear passará inevitavelmente por uma revisão no mundo inteiro. A China, que é o endereço de 25 das 49 usinas em construção, está revendo todos os protocolos de segurança e os Estados Unidos, que estavam iniciando uma retomada, também. A França, altamente dependente, rediscutirá o assunto. A Alemanha está mudando de novo de posição sobre o tema.

Na matriz global, a energia nuclear é pequena, mas para alguns países, a fonte é fundamental. Na França, 76% da eletricidade consumida são de usina nuclear; na Alemanha, 28,8%; Finlândia, 30%; Espanha, 18%; Suécia, 42%; Suíça, 39%; Reino Unido, 13,5%; Rússia, 17%; Ucrânia, 47%; Japão, 25%; Coreia, 36%. Há uma série de países com alta dependência da energia nuclear, como a Lituânia: 72%. Armênia, Bulgária, República Checa e Hungria dependem em mais de 30% da fonte nuclear para a geração de eletricidade. Os países menos dependentes são Brasil, China e Índia, entre 3% e 2%.

A cada desastre, o mundo interrompe tudo, revê procedimentos de segurança, vai com menos sede ao pote e segue adiante. Mas é diferente quando acontece numa ditadura, como a soviética, onde não havia oposição e as autoridades escondiam informações. Agora, o acidente acontece num dos países com melhor reputação do mundo em termos de prevenção de desastres.

O pior que um país como o Brasil pode fazer neste momento é tentar, de novo, a política do avestruz; ou aquela arrogância sem lastro que faz autoridades dizerem que as nossas são mais seguras do que as japonesas. Mais humildade faria bem ao governo.

Temos duas usinas em funcionamento. Duas velhas usinas. Uma, de tecnologia americana Westinghouse, Angra 1, e a outra que é a primeira do acordo nuclear com a Alemanha, assinado no governo Geisel. As duas são do começo dos anos 1980. A construção da terceira se arrasta por décadas. Houve erros no projeto tão absurdos e sequenciais que paralisaram a obra, agora retomada. O governo diz que construirá mais quatro até 2030, uma delas às margens do nosso magro, desprotegido e desaguado Rio São Francisco.

O governo Geisel tinha metas ambiciosas que foram escritas no acordo nuclear com a Alemanha: fazer, naquela época, 10 usinas e absorver tecnologia de todas as fases do processo de construção e enriquecimento de urânio. Estancou na terceira - a segunda das dez do acordo - por motivos que vão dos erros do projeto ao custo alto.

O Brasil teve naquela época, em plena ditadura, um intenso debate. O governo não estava interessado nele, mas os cientistas e políticos de oposição forçaram a redução da megalomania e o encontro com a realidade dos riscos inerentes à energia nuclear. Um deles: o que fazer com os rejeitos que duram centenas de anos?

Uma CPI no Senado, presidida na época por Itamar Franco, teve a ajuda substancial do físico Luiz Pinguelli Rosa para entender todos os riscos a que estávamos expostos. Ambientalistas mobilizaram a sociedade civil. O fato histórico é que Angra 3 parou na fase das fundações até que o governo Lula retomou a construção. Na época, a piada na CPI é que o problema do governo era não saber tupi-guarani. A praia onde Angra 3 estava sendo construída era chamada, no passado remoto, pelos índios, de Itaorna. Que queria dizer "pedra podre". De fato, os trabalhos de fundações foram surpreendidos por um detalhe: o que se pensava no projeto que era a rocha firme eram pedras soltas. Isso encareceu mais ainda a obra.

Projeto reiniciado, ficam duas observações: sabe-se pouco dos planos de contingência e de proteção da área densamente povoada que é Angra; a construção das usinas nucleares é cara demais.

Nos últimos anos, com a intensificação da preocupação com as mudanças climáticas, parte do ambientalismo deixou sua aversão à energia nuclear porque ela não emite gases de efeito estufa; parte continuou resistente pelos motivos de segurança que agora, mais uma vez, se confirmam reais. Um desastre numa usina, ainda que aconteça raramente, tem um potencial de dano impressionantemente alto.

Não há energia sem risco, e o Brasil não é área de terremotos, vulcões ou furacões de grande intensidade. Temos nossas muitas vantagens. Mas nenhum desastre é como o outro. A pior atitude é a das autoridades brasileiras nos últimos dias. No mundo inteiro, ouve-se governos anunciando revisão do procedimento de segurança ou dos planos de expansão do número de usinas atômicas. No Brasil, tudo o que se ouve é que somos melhores do que os outros, as nossas são mais seguras, e que novas serão construídas. Em que planeta habitam nossas autoridades?

Segurança é aquilo que precisa ser sempre revisto diante de fatos novos, exatamente para aprender com eles. Risco zero não existe em lugar algum. O país com o qual o Brasil fez o acordo nuclear já paralisou há muito tempo seu programa nuclear, retomou, para novamente anunciar revisão após o acidente. Lá, as usinas anteriores a 1980 serão fechadas.

Aqui, não existe uma agência reguladora independente. Não são ouvidos os cientistas. O ministro da energia é o mesmo que tem um conhecimento tosco do assunto. Aliás, de qualquer assunto da sua pasta. Existirá no mundo da energia nuclear um antes e depois de Fukushima. O Brasil não escapará dessa fronteira.

FONTE: O GLOBO

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