sexta-feira, 18 de março de 2011

Instrumentos adulterados :: Rogério Furquim Werneck

Imagine um pequeno avião cujos instrumentos foram adulterados. O altímetro mostra altitude bem maior do que a verdadeira e o indicador de combustível subestima em muito o consumo efetivo. Depois de anos de desleixo e uso inadequado, o avião já não funciona como deveria. Precisa de manutenção cara e prolongada. Mas o piloto vem tentando esconder os problemas dos proprietários. Adulterou os instrumentos, temendo que, pelo painel de controle, os proprietários notassem a real extensão dos problemas. Um voo nessas condições já seria bastante arriscado, mesmo se o piloto, ao ler cada instrumento, fosse capaz de levar em conta a medida exata em que a informação foi adulterada. Muito mais arriscado ficará o voo, contudo, se o piloto se esquecer das adulterações e passar a acreditar piamente no que mostram os instrumentos.

Não obstante todas as ponderações em contrário, o governo confirmou que o Tesouro fará novo aporte de R$55 bilhões ao BNDES em 2011, na contramão do corte de gastos que havia sido anunciado. É bem sabido que nos últimos anos os indicadores de desempenho fiscal deixaram de indicar o que deveriam. As deturpações por que vêm passando decorrem, em grande medida, da tentativa de dissimular o impacto sobre as contas públicas das gigantescas transferências do Tesouro ao BNDES: mais de R$230 bilhões, entre 2008 e 2010.

Tivessem tais transferências configurado operações tradicionais de capitalização, com aumento do capital próprio do banco, teriam tido impacto adverso sobre as contas públicas, com redução do resultado primário e aumento da dívida líquida do governo. Para dissimular tais efeitos, o governo apelou para o subterfúgio da capitalização velada. Em vez de reforçar o capital próprio do banco, o Tesouro agraciou-o com empréstimos de longuíssimo prazo a juros subsidiados, com recursos advindos da emissão de dívida pública. Isso só apareceu nas estatísticas de dívida bruta.

Nas de dívida líquida, o governo se permitiu neutralizar o impacto, abatendo como ativos os próprios empréstimos concedidos. No resultado primário, as transferências simplesmente não foram registradas. Uma omissão colossal, que até o FMI se viu obrigado a assinalar.

Se as transferências ao BNDES não tivessem sido omitidas, como teriam ficado as contas de resultado primário? As variações dos créditos do Tesouro junto ao BNDES mostram que tais transferências foram de R$28,8 bilhões em 2008, R$93,8 bilhões, em 2009 e R$107,5 bilhões, em 2010. Em porcentagem do PIB: 0,95%, 2,94% e, novamente, 2,94%.

De acordo com as contas oficiais (que omitem as transferências ao BNDES), o superávit primário do setor público, também em porcentagem do PIB, foi de 3,31% em 2007, 3,42% em 2008, 2,03% em 2009 e 2,79% em 2010. Se, desses percentuais, forem abatidas, nos três últimos anos, as transferências ao BNDES mencionadas acima, a série de resultado primário do setor público passa a mostrar evolução bastante distinta: superávit de 2,47% em 2008, déficit de 0,91% em 2009 e novo déficit de 0,15% em 2010.

A leitura correta dos instrumentos permite agora percepção muito mais nítida dos impulsos fiscais observados nos últimos anos. Quem ainda estava à cata de uma boa explicação para a brutal expansão de 10,3% na demanda interna em 2010, pode interromper a busca.

É dessa perspectiva que se deve indagar se faz sentido novo aporte ao BNDES de R$55 bilhões - mais de 1,3% do PIB - em 2011. Mesmo que o governo consiga cumprir a meta oficial de superávit primário para este ano, de 2,9% do PIB, o superávit efetivo, tendo em conta o novo aporte, não passará de 1,6% do PIB. Ou seja, menos da metade do superávit observado antes da crise, em 2007. Não há nada que justifique tal impulso fiscal a esta altura, quando, pelo contrário, se esperava que a política fiscal fosse capaz de reduzir a sobrecarga que tem recaído sobre a política monetária no combate à inflação.

Até quando a condução da política macroeconômica continuará a ser feita com base em indicadores fiscais tão deturpados?

Rogério Furquim Werneck é economista.

FONTE: O GLOBO

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