quinta-feira, 24 de março de 2011

Nuvens políticas:: Cláudio Gonçalves Couto

Segundo um dos mais conhecidos adágios da política brasileira, por uns atribuído a Magalhães Pinto, por outros a Tancredo Neves, "política é como nuvem: você olha e ela está de um jeito, olha de novo e ela já mudou". Embora tal máxima da sabedoria política mineira possa se aplicar a uma infinidade de situações nas quais as configurações do jogo do poder mudam sutil e rapidamente, sem que até os mais atentos observadores se dessem conta de que havia uma metamorfose em curso, há certos episódios que parecem feitos sob encomenda para corresponder a uma imagem tão sugestiva. É este o caso da movimentação política protagonizada por Gilberto Kassab na criação de seu novo partido.

E como se não bastasse a criação da nova agremiação assumir hoje um formato bastante distinto daquele que animou inicialmente os seus promotores, o desfecho desse processo também parece conferir um tom especialmente irônico à iniciativa tomada pelo DEM há poucos anos, de solicitar à Justiça Eleitoral um posicionamento sobre a quem pertencem os mandatos eletivos, se ao partido ou aos eleitos. Recapitulemos alguns fatos para melhor entendermos este imbróglio.

Ao final do ano de 2006, no julgamento de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) concernente à cláusula de desempenho dos partidos nas eleições para a Câmara, o ministro Gilmar Mendes resolveu pontificar sobre outro assunto (ainda que correlato), afirmando: "Devemos refletir (...) sobre a consequência da mudança de legenda por aqueles que obtiveram o mandato no sistema proporcional, o que constitui, sem sombra de dúvidas, uma clara violação à vontade do eleitor e um falseamento grotesco do modelo de representação popular pela via da democracia de partidos." Coincidentemente, poucos meses depois disto, já no início de 2007, o DEM ingressou com uma consulta no TSE, perguntando: "Os partidos e coligações têm o direito de preservar a vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional, quando houver pedido de cancelamento de filiação ou de transferência do candidato eleito por um partido para outra legenda?"

Do resto da história todos devem se lembrar: algum tempo depois o TSE respondeu que o mandato pertenceria ao partido, o STF confirmou tal interpretação e ambas as cortes estenderam tal entendimento aos mandatos obtidos pelo sistema eleitoral majoritário (prefeitos, senadores, governadores e presidente). Ao regulamentar o assunto o TSE estipulou algumas situações em que seria justificável para o eleito mudar de agremiação. Dentre elas figurava a criação de um novo partido.

O motivo para tal consulta do DEM às altas cortes foi a sangria em suas fileiras congressuais com a migração para as hostes governistas de muitos de seus parlamentares eleitos - o mesmo processo que, em sentido inverso, beneficiara o mesmo DEM (então chamado PFL) em seus anos de governismo, durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso. Como a situação do partido mudou, tendo ele passado à oposição, aquilo que não era percebido como problema começou a incomodar: recorreu-se então à justiça para estancar um sangramento que, diga-se, não vinha ocorrendo apenas após as eleições - ele se verificava nas próprias disputas eleitorais, nas quais o PFL já apresentava um declínio significativo. É bem verdade, diga-se, que o estabelecimento pelas cortes superiores de uma interpretação favorável à fidelidade partidária não agradou apenas ao DEM, mas a todo um segmento da opinião pública que há muito reclamava a adoção de regras coibidoras do troca-troca partidário.

O irônico é que justamente agora, quando o DEM se vê num estágio ainda mais avançado de sua anemia política, tornaram-se ainda mais prejudiciais à sua sobrevivência as regras restritivas para mudança partidária ensejadas por sua consulta de 2007. Afinal, se o prefeito Kassab, às turras com a direção nacional do partido, tivesse podido simplesmente mudar de legenda sem maior estardalhaço, não teria provocado uma movimentação tão abrangente do cenário político-partidário nacional como aquela suscitada pela criação de seu novo partido. A necessidade de fundar uma nova agremiação para poder deixar o DEM sem correr o risco de perder o mandato acabou por abrir uma grande oportunidade para a movimentação de diversas lideranças políticas do campo conservador país afora, aprofundando ainda mais a desidratação do DEM e criando-lhe um novo competidor dentro do mesmo âmbito do espectro político.

Poder-se-á replicar, contudo, que o novo partido não veio para ficar. Ele seria apenas um abrigo temporário (uma organização provisória) que permitiria a Kassab abandonar o DEM antes de ingressar no PSB mediante a fusão das duas legendas. Ora, isto parecia verdadeiro há algumas semanas atrás, antes que o novo partido passasse a obter a adesão de figuras políticas de maior peso país afora, muitas delas pouco propensas a uma fusão com o Partido Socialista no futuro próximo - ainda que o estabelecimento de uma aliança durável possa ser algo do interesse das duas agremiações. A própria dinâmica institucional originalmente engendrada pelo DEM, que obrigou seus dissidentes a criar um novo partido, acabou por fazer deste algo potencialmente mais valioso do que seria um mero abrigo temporário. Isto não apenas tende a inviabilizar por completo qualquer tentativa futura de punição aos dissidentes por uma antes "evidente" burla das regras de fidelidade partidária, como também gerou ao DEM um prejuízo político ainda maior do que aquele que seria causado pela saída de Kassab e seus acólitos. As nuvens mudaram e, para o DEM, tornaram-se negras.

Mas se as notícias para o DEM não são nada boas, pode-se dizer que também não é muito favorável à democracia brasileira um processo como este. Afinal, esse novo partido nada acrescenta de efetivamente novo ao sistema partidário - é simplesmente mais uma agremiação formada por políticos de perfil tradicional dispostos a negociar seu apoio com qualquer governo - e, de quebra, contribui para fragilizar ainda mais a já tão anêmica oposição.

Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP.

FONTE: VALOR ECONÔMICO

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