quarta-feira, 2 de março de 2011

Síndrome de abstinência:: Rosângela Bittar

Ex é ex, não tem mais o poder e, portanto, o mando e as atenções, obediência e vassalagem dos áulicos. Uma situação de doídos sentimentos. Condição que embute consideráveis dramas existenciais, até para quem, sendo forte, consegue reinventar a vida com rapidez. Não são necessárias novas provações, o ex é, por definição, um sofredor. Se é ex-presidente da República, sente mais, rodopia na vertigem de profunda e vertical passagem do Planalto à Planície.

A presidente Dilma Rousseff foi inventada por Luiz Inácio Lula da Silva. Seu governo também, já foi apelidado de Lula 3 no nascedouro. As pessoas que com ela trabalham, guardadas as exceções de praxe, ela as conheceu como colegas nos oito anos anteriores, com Lula. Sua campanha eleitoral se deu em torno da continuidade, seus votos são os de Lula. Engoliu ministros de áreas fundamentais para as quais tinha ideias e candidatos próprios para não faltar a um gesto de cortesia e deferência com o criador.

Tudo posto antes e em tudo o que se dizia no governo e na campanha. Lula não interferiria indevidamente no dia a dia da administração, deixaria Dilma governar e, se ela estivesse bem avaliada, dentro de quatro anos poderia pleitear reeleição, se não, ele voltaria. Deixou pré-postos em cargos chave, certamente por diferentes razões, criando constrangimentos e desequilíbrio na ação de ministros que estão vivendo a circunstância de desfazer seu próprio feito. E essa ambiguidade os alucina.

Eis que o governo Dilma começa e, com apenas dois meses, o ex-presidente já se inquieta. Lula se sente incomodado, e queixa-se a amigos, por mudanças que ocorreriam apesar da política de continuidade. Os mensageiros dos recados do ex têm importância suficiente para que Dilma saiba que está falando sério.

Desagradou o ex-presidente o Palácio do Planalto ter cassado o passe livre do lobista José Carlos Bumlai. Criador de gado no Mato Grosso do Sul, Lula gravou programa eleitoral na sua fazenda, em 2002, e ficaram amigos. Na crise do mensalão, Lula, isolado no palácio, passou a temer impeachment. Bumlai, solidário, ficou uma semana a seu lado: ganhou autorização para entrar e sair dos palácios presidenciais quando e quantas vezes quisesse, sem ser importunado com perguntas pelos seguranças ou responsáveis pelas agendas.

Bumlai teve que se enquadrar agora às regras gerais. Antes que o caso estourasse nos jornais, Dilma mandou cancelar o passe livre, avisou os funcionários que não queria deferências ou privilégios e que qualquer um poderia ser recebidos no Planalto, desde que marcasse audiência.

O amigo de Lula teve amplo acesso ao Planalto e atuação em missões importantes, inclusive a intermediação de negócios, como o de montar um consórcio de empresas para disputar o leilão da hidrelétrica de Belo Monte. Lula ficou agastado com a atitude de Dilma mas Bumlai continua sem passe livre.

Outro assunto que está deixando o ex-presidente irritadíssimo é o silêncio da Presidência sobre uma ação de improbidade proposta pelo Ministério Público do Distrito Federal contra ele e o ex-senador e ex-ministro Amir Lando. Quando Lando era ministro da Previdência, foram feitas cartas para segurados do INSS informando sobre a possibilidade de eles fazerem empréstimos consignados. Segundo a ação, só um banco, à época, oferecia esse tipo de empréstimo.

Lula enviou o caso à Presidência perguntando se sua defesa poderia ser assumida pela Advocacia Geral da União, e não obteve resposta. A AGU pode e deve defender o ex-presidente, como defende todos os ex que pedirem ajuda, em infrações ocorridas no período do exercício de seu mandato. Mas a agilidade não está correspondendo à aflição do ex.

As nuances da política externa delineada nesses dois meses de governo Dilma são outro fator de desgaste emocional do ex-presidente. Nesse caso, sobra também para o ministro Antonio Patriota, das Relações Exteriores, com quem Lula conversou bastante no seu período de governo, dado que ele era o segundo do chanceler Celso Amorim e este viajava muito. Lula, portanto, considera-o ainda um funcionário seu.

Até o nome do chanceler tem provocado arrepios no ex-presidente: "De Patriota ele não tem nada". Tudo por causa da mudança nas relações da presidente com as ditaduras, cuja ação de desrespeito aos direitos humanos tem rechaçado.

Lula acha que não merece críticas por ter vivido por aí abraçado ditadores iranianos, líbios, egípcios, como as mudanças do governo Dilma querem fazer crer. Acha que agiu seguindo uma política externa pragmática tendo em vista os interesses comerciais do Brasil. Nesta questão não vai ter muito jeito: Dilma pensa e manda fazer diferente.

Também os gestos mais amenos de Dilma com relação aos EUA, e uma certa descompressão nas relações entre os dois países logo após a saída do ex-chanceler Celso Amorim do governo, são outros efeitos da nova política externa que estão incomodando.

Mortificado também ficou o ex-presidente com o anúncio do corte de R$ 50 bilhões no orçamento de 2011, inclusive no PAC, e disse a amigos que isto representa um tiro na sua gestão. Acha, e diz, que fez tudo certo, e com as correções de rumo o governo está dando a impressão de que fez tudo errado. Um rápido parênteses: foi seu fidelíssimo chefe de gabinete, amigo, escudeiro e atual ministro do núcleo duro do governo Dilma, Gilberto Carvalho, quem definiu bem a razão do corte que incomodou o ex-presidente: "Todo mundo sabe que em 2009 e 2010 nós enfiamos o pé no acelerador para sair da crise. Desoneramos, estimulamos, fizemos concessões de toda sorte, e 2011 se afigura como um ano em que você precisa controlar", disse aos repórteres Cristiano Romero e Paulo de Tarso Lyra, em entrevista ao Valor.

Têm nome, sobrenome e endereço os vilões desse início de degeneração das relações de Lula com o governo Dilma, mas não há muita saída. O ex jamais se conformará com qualquer coisa que faça seu sucessor, e este quer também, por que não, entrar para a história. O governo mudou em primeiro de janeiro de 2011, e Dilma está fazendo o seu.

Rosângela Bittar é chefe da Redação, em Brasília.

FONTE: VALOR ECONÔMICO

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