terça-feira, 5 de abril de 2011

Machado, o câmbio e a turma da bufunfa:: Luiz Gonzaga Belluzzo

O correspondente do Valor em Washington, Alex Ribeiro, informa os leitores de nosso bravo jornal: o tema "controle de capitais" espargiu a cizânia no "board of directors" do Fundo Monetário Internacional (FMI). Parecem ser graúdas as divergências entre os representantes dos países emergentes e os diretores das nações desenvolvidas.

Sujeitos às mudanças de humor dos capitais vagabundos, os emergentes cuidam de se proteger contra as "paradas súbitas" e suas consequências funestas: desvalorizações agudas do câmbio, balanços "avermelhados" das empresas e bancos que se endividaram em moeda estrangeira, choque inflacionário, queda de salários reais e recessão.

Certa vez registrei num artigo publicado na revista "Carta Capital" as observações de Machado de Assis sobre o câmbio. Na crônica de 8 de março publicada em "A Semana", no ano da graça de 1896, Machado contava que um economista apareceu lastimando a sucessiva queda do câmbio e acusando por ela o ministro da Fazenda. O grande escritor logo se indispõe com o câmbio, "inimigo sorrateiro e calado, já está em oito e tanto e ninguém sabe onde parará; é capaz de nem parar em zero e descer abaixo dele uns oito graus ou nove. O mal do câmbio parece-se um pouco com o da febre amarela, mas para a febre amarela, a magnésia fluida de Murray, que até agora só curava dor de cabeça e indigestões, é específico provado neste verão, segundo leio em placa de ferro. Que magnésia há contra o câmbio?"

Money Doctors: assim eram chamados os conselheiros à serviço da "haute finance" que perambulavam pela periferia entre o último quartel do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Nesse período, a finança internacional se dedicou com esmero aos solavancos cíclicos nos países periféricos. A presença dos doutores era mais ostensiva nos momentos, nada raros, de queda nos preços dos produtos primários, crise do balanço de pagamentos e estrangulamento cambial.

"In illo tempore", os doutores da grana eram estrangeiros ligados aos grandes bancos europeus, ingleses em sua maioria. Hoje progredimos: os esculápios da finança contemporânea que aconselham os emergentes são nativos treinados na academia americana. Uma vitória do Novo Mundo sobre o Velho.

Leio e ouço na mídia tupiniquim as opiniões de conhecidos e reputados "money doctors" da nova geração, aviando receitas para os achaques do câmbio. Recomendam que a doença da valorização da moeda local siga seu curso natural, sem interferências daninhas do governo. Outros facultativos do dinheiro poderiam redarguir que, a despeito das mezinhas ministradas em doses razoáveis nos últimos tempos, o doente não apresenta sinais de melhora. Muito ao contrário, alguns órgãos, para júbilo dos "money doctors", já emitem sinais de falência, como é o caso da indústria manufatureira.

Entre os dissidentes há quem atribua o surto recente de valorização das moedas inconversíveis aos investidores encharcados de liquidez em moeda forte que buscam escapar do baixos rendimentos oferecidos nas economias centrais. Na opinião desses amaldiçoados, em tais circunstâncias, os gestores da riqueza líquida aceleraram o "carry trade" entre as ínfimas taxas de juros dos países desenvolvidos e as confortáveis e recompensadoras remunerações oferecidas pelos mercados brasileiros.

Os doutores mais ousados da corrente dominante chegam a diagnosticar a inexistência de relações entre os juros e o câmbio numa economia aberta e exposta aos movimentos de capitais. Arautos da boa morte, os cientistas ignoram os custos das paradas súbitas e advertem que os juros têm que estar estritamente apontados para a inflação. Pior: se o BC mirar a taxa de câmbio para fixar o juro, a vaca vai para o brejo.

Na ocasião em que citei as observações de Machado de Assis sobre o câmbio, o professor Paulo Nogueira Batista escrevia na "Folha de S. Paulo". Ao tratar do assunto em seu artigo da Folha, Paulo, antecipando as revelações do documentário "Inside Job", lamentou a invasão da ideologia e do interesse na discussão econômica atual. Paulo fulminou: "No Brasil, a turma da bufunfa e o lobby financeiro conseguiram, com a ajuda dos economistas, estigmatizar a administração cuidadosa dos fluxos de capital e dos passivos externos do país. Propagou-se a versão de que isso seria incompatível com o século XXI, com o espírito de uma economia de mercado, com o espírito da globalização e até com a liberdade do cidadão e os direitos da pessoa humana."

Depois de declarar que nada tem contra a bufunfa, mesmo graúda, mas ganha e acumulada conforme os preceitos da lei e da moral vigentes, Paulo recomenda aos bufunfeiros "ficar rigorosamente silentes e recolhidos à atividade meritória de acumular mais bufunfa." Vítima do silêncio dos intelectuais, o país sofreria o silêncio dos bufunfeiros.

A sugestão de meu caríssimo amigo Paulo é irônica. Ele sabe que os bufunfeiros e seus interesses não prescindem da opinião pública e da midiocracia contemporânea para difundir os "universais da finança", diriam os filósofos medievais, ou as leis naturais dos mercados, como querem os modernos. Nas sociedades de massas contemporâneas é preciso que a opinião dominante seja a opinião dos dominantes.

O Brasil tem uma combinação câmbio-juro favorável às formas estéreis e socialmente perversas de arbitragem e de especulação com os preços dos ativos. Além de outras inconveniências óbvias, a valorização do real é um chute no traseiro dos empresários brasileiros, convidados a mover suas fábricas para outras paragens. Assim, é cada vez maior o risco de regressão da estrutura industrial. Hoje, Paulo é o diretor brasileiro no FMI. Imagino que, no frigir da controvérsia sobre o controle de capitais, Paulo Nogueira Batista tenha se esmerado na defesa do direito dos emergentes de se proteger contra os movimentos mercuriais dos capitais nervosos.

Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.

FONTE: VALOR ECONÔMICO

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