domingo, 17 de abril de 2011

Recordando Merquior :: Celso Lafer

"Graças à amizade os ausentes são presentes" e "os mortos vivem: vivem na honra, na memória, na dor dos amigos". Foi o que apontou Cícero, escrevendo sobre a especificidade da grande experiência humana da amizade. E é o que me vem à mente ao recordar o percurso do meu querido amigo José Guilherme Merquior, neste ano do 20.º aniversário do seu prematuro falecimento.

José Guilherme foi a mais completa personalidade intelectual da minha geração. Integrou com brio e enorme talento a República das Letras, nacional e internacional, tendo-se destacado por uma criativa e instigante mediação entre a crítica literária e a crítica das ideias.

Com finura analítica e imaginação crítica, sabia ler e interpretar, poesia e ficção. Tinha a clara percepção de que a autonomia da arte não se pode perder na autarquia do estético. O seu ensaio de 1964 sobre a Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, deu, desde logo, a medida da larga bitola de sua vocação de crítico literário. Mostrou que esse famoso poema da saudade, escrito em Coimbra, foi bem-sucedido esteticamente por ser, sem adjetivos e graças à tonalidade do texto e das palavras, uma grande expressão do valor da terra natal.

"O Brasil, na Canção do Exílio, não é isso nem aquilo, o Brasil é sempre mais", observou Merquior. Nos versos simples desse sentimento popular captado pelo engenho do romantismo de Gonçalves Dias, projetou José Guilherme, com a orteguiana sensibilidade compartilhada da nossa geração, o amor-vontade da construção de um Brasil amável - tema que se tornou uma das facetas do seu percurso.

Movido e animado pelo alcance do uso público da razão, José Guilherme expôs, discutiu e propôs ideias sobre sociedade, política e cultura. Nesse propósito teve presentes os desafios do Brasil, um "Outro Ocidente" a ser aprimorado e completado por obra do amor-vontade que projetou na sua análise de Gonçalves Dias. Na análise dos problemas da modernidade, no Brasil e no mundo, teve como pressuposto que "nenhuma crítica do poder possui o direito de absolutizar o poder da crítica. Do contrário se marcha em linha reta para a supressão da liberdade em nome da libertação".

José Guilherme integrava a família intelectual dos grandes carnívoros, pois a sua curiosidade era infindável. Metabolizou e desvendou, desse modo, o alcance da genuína pluralidade de seus interesses com o poder de uma inteligência superiormente abrangente que foi, desde muito jovem, aparelhada para uma erudição excepcional. Escrevia "aquém do jargão" e "além do chavão" e o seu texto exprimia a virtuosidade da vivacidade do seu espírito.

No campo da crítica das ideias, o seu último livro, O Liberalismo - Antigo e Moderno, é a obra que, em função do tema, mais justiça faz aos seus múltiplos talentos. No pluralismo um tanto centrífugo da doutrina liberal e nas várias vertentes da liberdade que contempla, José Guilherme sentiu-se à vontade e assim, com alto senso de proporção, combinou sua fulgurante capacidade de síntese e a sua arguta competência analítica. Destaco, por exemplo, a importância que deu à obra de Bobbio e ao nexo que esta estabeleceu entre liberalismo e democracia, quando o empenho de igualdade está associado ao sentido do papel das instituições de liberdade.

A travessia, que não foi excludente, da crítica literária à crítica das ideias, no percurso de José Guilherme, deu-se de maneira congruente pelos seus estudos sobre a legitimidade. Esta é, como dizia Guglielmo Ferrero, uma espécie de ponte entre o poder e o medo, que resulta de uma construção da cultura e dos valores.

Nos modos históricos de asserção da legitimidade, José Guilherme chamou a atenção para a novidade do modo tópico, que põe em questão a concepção arquitetônica da ordem sociopolítica. O âmago do novo espírito de legitimação é centrífugo. Dá ênfase à validez dos direitos e valores reivindicados pelos localismos de situações específicas. Na fragmentação do mundo contemporâneo, a percepção do modo tópico, explicitado por José Guilherme, é uma contribuição para o entendimento de como é politicamente necessário mediar a diversidade cultural e o conflito dos valores.

No livro dedicado ao tema da legitimidade em Rousseau e Weber, apontou José Guilherme que uma concepção subjetivista e fiduciária de legitimidade, baseada na crença dos governados e na credibilidade de uma reserva de poder dos governantes, prevalece nos paradigmas de Max Weber. Em contraposição, identificou em Rousseau uma concepção objetivista de legitimidade, cuja tônica se encontra na autonomia do consentimento, como base da obrigação política. Uma concepção objetivista de legitimidade encontra espaço de afirmação nas situações de poder nas quais a assimetria entre governantes e governados não é acentuada e existe margem de manobra.

Desse diálogo criativo com Weber e Rousseau extraiu José Guilherme consequências importantes para a ação diplomática brasileira que retêm plena atualidade. Com efeito, para o Brasil, que tem um interesse geral e real em participar na elaboração e na aplicação das regras formais e informais estruturadoras da ordem internacional, o relevante na agenda da discussão da legitimidade é o questionamento do soft power imobilizador da reserva de poder dos grandes e a ênfase a ser dada ao consentimento dos muitos. No mundo contemporâneo aberto à multipolaridade existem espaço e margem de manobra diplomática para essa linha de atuação.

Concluo lembrando que José Guilherme enfrentou "a Indesejada das Gentes", de que fala o poema de Manuel Bandeira, com destemor. Com a coragem, que resulta do sentimento de suas próprias forças, ao lidar com a doença que o levou pouco antes de completar 50 anos mostrou, para evocar Montaigne, "que a firmeza na morte é, sem dúvida, a ação mais notável da vida".

Professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Brasileira de Letras, foi Ministro das Relações Exteriores no governo FHC

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

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