segunda-feira, 27 de junho de 2011

Cabral, o muy amigo

Um trágico acidente de helicóptero escancara a promiscuidade entre o governador do Rio e empresários que mantêm negócios bilionários no estado – e ele acha tudo muito normal

Malu Gaspar e Sandra Brasil

Os últimos dias têm sido dolorosos para Sérgio Cabral, governador do Rio de Janeiro. No dia 17, um helicóptero com sete pessoas a bordo, entre elas sua nora, despencou no oceano próximo a uma praia da cidade de Porto Seguro, no sul da Bahia, sem deixar sobreviventes. Cabral e seu filho estariam entre os passageiros, mas cederam o lugar às mulheres e às crianças, acomodando-se no voo seguinte. No rastro da tragédia, o governador viu-se abatido por outra crise – esta de cunho político. O desastre expôs suas relações promíscuas com empresários cujos tentáculos estão esparramados pela máquina pública em forma de negócios bilionários. Depois de viajar para a Bahia em um jatinho emprestado pelo empresário Eike Batista, Cabral faria parte do pequeno grupo a celebrar o aniversário do pernambucano Fernando Cavendish, de 48 anos, dono da Delta Construções, que está à frente hoje de algumas das mais vultosas obras tocadas com dinheiro dos cofres estaduais. O amigo de Cabral é alvo de 150 investigações por parte do Tribunal de Contas da União (TCU) e, só no ano passado, embolsou 127 milhões de reais em contratos sem licitação. Todos – todos – firmados com o governo de Sérgio Cabral.

Com faturamento anual de 3 bilhões de reais, a Delta é uma das grandes empreiteiras do país. Ela vive dos cofres públicos. No plano federal, com a ajuda do ex-ministro José Dirceu, a quem usou como "consultor", a Delta tornou-se campeã em contratos com a União. É hoje a empresa que mais recebe recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Os primeiros contratos com o governo do Rio datam de 2000, na administração de Anthony Garotinho, mas foi justamente nos cinco anos da gestão Cabral que a receita proveniente dos cofres públicos se multiplicou por oito na Delta. Em 2010, os contratos somaram 555 milhões de reais, dos quais 127 milhões foram pagos por serviços e obras que dispensaram licitação. Não é único fato suspeito sobre a Delta. Sob investigação do Tribunal de Contas do Estado (TCE), a reforma do Estádio do Maracanã, nas mãos de um consórcio que inclui a empresa de Cavendish, teve suas cifras infladas dos 705 milhões de reais previstos no contrato para 1 bilhão de reais.

O acidente escancarou uma relação público-privada que já dura trinta anos, e foi se estreitando a medida que a carreira política de Cabral prosperava. Os dois ficaram tão próximos que compraram mansões no mesmo condomínio de Mangaratiba, nos arredores de Angra dos Reis, onde costumam veranear grandes empresários e celebridades. Jantares e viagens com as respectivas famílias se tornaram frequentes. No Jacumã Ocean Resort, onde ocorreriam os festejos naquele fatídico dia 17 (em que Cavendish perdeu a mulher e o enteado de 3 anos), eles já passaram duas temporadas juntos. Cabral sempre ia como convidado do empreiteiro, um dos sócios do lugar, e ali desfrutava luxuosos bangalôs com até 300 metros quadrados e jantares regados a vinhos do calibre do Château Petrus. Entre as presenças constantes, outros dois sócios do resort. O primeiro, Marcelo Mattoso de Almeida, um ex-doleiro, pilotava o helicóptero e é conhecido no mercado financeiro por ter fugido para os Estados Unidos depois de pilhado em fraudes com guias de exportação. O segundo, Romulo Pina Dantas, já foi preso pelo crime de adulteração de combustíveis.

Na semana passada, apenas três dias depois de Cabral voar para a Bahia a bordo de um dos jatinhos de Eike Batista, o estado concedeu ao empresário a licença ambiental que faltava para que ele colocasse de pé a portentosa obra de um estaleiro no Porto do Açu, no norte do Rio. Não é a primeira vez que Eike presta gentilezas a Cabral, nem que o governador se empenha em ajudá-lo no ato seguinte. Em 2008, o bilionário vendeu uma parte de sua empresa de mineração, a MMX, ao gigante do setor Anglo American. Finda a transação, era necessário realizar a transferência da autorização do governo federal para a exploração de uma empresa para a outra. A burocracia poderia arrastar-se por uma eternidade, não fosse o governador ter atendido a um pedido de socorro de Eike. Temeroso de que o negócio de 5 bilhões de dólares desse para trás, Cabral telefonou para o então presidente Lula – que determinou a imediata liberação das licenças.

O governador não dá mostras de que esse tipo de situação lhe cause qualquer desconforto. Ao contrário. É como se aceitar agrados e manter em seu circulo íntimo gente tão enrolada e com interesses bilionários no estado que comanda fosse natural. Não é. Na melhor das hipóteses, é constrangedor. Diz o historiador Marco Antonio Villa: "Esse tipo de prática grassa no Brasil à sombra da complacência e da impunidade – quando deveria ser condenado e banido". Ao se negar até mesmo a admitir a inadequação de suas relações público-privadas, Cabral arrisca perder os benefícios políticos de uma administração com tantos e inegáveis sucessos – alguns deles históricos, como é o caso da retomada de partes da cidade do Rio das mãos dos bandidos. Os escaninhos da história estão abarrotados de formidáveis realizadores sem escrúpulos.

Onde estão os fiscais?

O acidente com o helicóptero que despencou no sul da Bahia, ceifando sete vidas, expôs a crônica falta de fiscalização que domina o setor. Quem pilotava o modelo Esquilo de prefixo PR-OMO era o próprio dono, o ex-doleiro Marcelo Mattoso de Almeida, de 48 anos, cuja habilitação vencera havia cinco anos. Ele só conseguiu levantar voo por ter passado à torre de controle em Porto Seguro o número do documento de outro piloto. Para renovar a licença, é necessário submeter-se anualmente a exames médicos e provas teóricas e práticas, nas quais o aspirante ao documento é testado em situações que simulam condições adversas. Almeida não estava com tal treinamento em dia, mas mesmo assim não foi flagrado pelos fiscais da Agência Nacional de Aviação Civil.

Infelizmente, a frouxidão é regra. "Em centenas de pistas pelo país, não se vê um único fiscal", relata um experiente piloto da Associação Brasileira de Pilotos de Helicóptero. Abrem-se brechas perigosas. Segundo um recém-consolidado relatório do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos, com base no ano de 2009, em 70% dos desastres houve erros de julgamento dos pilotos. Um quarto deles prescindia da experiência mínima para voar. Quem engrossa essas estatísticas não são os pilotos profissionais, mas gente que, a despeito do risco, está em busca de aventura. São casos como o do cantor sertanejo Marrone, que em maio voava em um helicóptero que se espatifou em São José do Rio Preto. Uma das hipóteses é que ele – e não o piloto – estava no comando. Marrone nega, mas admire que, por diversas vezes, conduziu seu helicóptero mesmo sem ter a licença.

Os especialistas concordam que é premente recrudescer a fiscalização. Para se ter uma ideia, a Anac dispõe de 1.000 funcionários para dar cabo de inúmeras funções, como zelar pela segurança de aeronaves e pela qualidade dos serviços nas companhias aéreas. Ainda que todos esses profissionais estivessem fiscalizando os helicópteros, persistiria um déficit. Com mais 4.000 pistas de pouso no país, haveria um inspetor para cada quatro delas. A Anac diz que consegue realizar a tarefa com esse contingente, mas o histórico dos acidentes com helicópteros – dez só neste ano – mostra que não.

Uma amizade lucrativa

Na gestão de Cabral, a Delta Construções, do empresário Fernando Cavendish, mutiplicou por oito o faturamento proveniente de contratos firmados com o governo do estado do Rio de Janeiro – parte deles sem licitação

Total recebido do governo

Os valores excluem pagamentos por obras ou serviços realizados em consórcio

2007: – 67 milhões de reais

2008: - 127 milhões de reais

2009: - 243,5 milhões de reais

2010: - 555 milhões de reais

Fonte: Sistema Integrado de Administração Financeira para Estados e Municípios (Siafem)

FONTE: REVISTA VEJA

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