segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Incontinência verbal:: Suely Caldas

"Não há hipótese de o governo se desmobilizar diante da inflação, todas as nossas atenções vão estar voltadas para um combate acirrado" - prometeu Dilma Rousseff em 25/4/2011, segundo registro da Agência Brasil. A decisão do Banco Central (BC) de reduzir em 0,5% a taxa Selic levantou dúvidas quanto à autenticidade da promessa.

A maioria dos analistas passou a questioná-la. Argumentam que a presidente deixou agora muito claro o que para muitos era ainda nebuloso: entre crescimento econômico e inflação, seu governo fica com o primeiro.

A própria Dilma Rousseff reafirmou sua escolha. Na quinta-feira, ao responder à quase unânime condenação dos analistas de mercado à decisão do BC, centrou seu argumento na necessidade de o País continuar crescendo e investindo para enfrentar a crise externa. Nenhuma única palavra sobre o efeito inflacionário que essa opção pode desencadear neste e no próximo ano - o foco das críticas.

"O Banco Central do Brasil tem como missão institucional a estabilidade do poder de compra da moeda (ou seja, controle da inflação) e a solidez do sistema financeiro" - esse é o conceito que define e resume o papel do Banco Central no Brasil. Ou seja, o BC é o guardião da moeda, sua obrigação é defender seu poder de compra e ponto final. A atribuição de estimular o crescimento e o investimento é de outros ministérios, não do BC.

Nos Estados Unidos é diferente. O Federal Reserve (Fed) acompanha, avalia e persegue o equilíbrio entre inflação e crescimento, entre controle de preços e expansão da demanda. É responsabilidade do banco central norte-americano garantir as duas coisas: controle da inflação e crescimento econômico.

O BC não é o Fed, mas agiu como se fosse. Na reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), na quarta-feira, seus diretores, todos antigos e experientes funcionários da casa, ignoraram a missão de controlar a inflação, puseram em risco a credibilidade e a autonomia de decisão do banco e aderiram à escolha da presidente de priorizar o crescimento. O governo pode até mudar a lei que define a missão do BC, mas enquanto isso não acontecer o Copom tem de decidir taxa de juros olhando a inflação, não o crescimento.

O ruim da reunião do Copom na quarta-feira está menos na decisão de baixar os juros e mais na sucessão de trapalhadas que a antecedeu, cometidas pela presidente, por alguns ministros e, depois, pelo próprio Banco Central. Baixar juros é sempre bom, é saudável para a economia, mas é preciso observar se as condições permitem. Se a contrapartida for o descontrole da inflação, como avaliam os analistas, é ruim, porque a população excluída - que a presidente quer tanto incluir com o Plano Brasil Sem Miséria - será a mais castigada.

Quanto à decisão, o futuro dirá se baixar a Selic foi certo ou errado. Neste momento, o prejuízo maior se deu no plano institucional, na percepção de credibilidade e de autonomia do Banco Central, essenciais para o cumprimento de sua missão. Se já havia desconfiança de interferência do Palácio do Planalto no BC, desta vez passou a haver certeza. E por quê?

Primeiro, está no discurso. Desde a crise de 2008 o governo e o Banco Central têm repetido que os dois grandes trunfos a blindar o Brasil contra os efeitos da crise são as reservas cambiais e a pujança do mercado interno, que tem garantido consumo e crescimento. O argumento sempre foi: a crise lá fora prejudica as exportações, mas o consumo interno garante o crescimento. Pois bem, hoje as reservas estão em US$ 350 bilhões, 75% acima de 2008. Quanto ao mercado interno, o consumo das famílias, o emprego e a renda do trabalho continuam em alta. Portanto, pelos dois critérios, o País está mais bem defendido do que em 2008. Mas de repente o Copom se contradiz ao fundamentar sua decisão na conjuntura externa, não na interna. Afinal, em que discurso acreditar?

Há sinais de que a Ata do Copom virá com a justificativa de que o desaquecimento doméstico está acima do esperado, o que seria comprovado pelos números do Produto Interno Bruto (PIB) do segundo trimestre, divulgados na sexta-feira. É certo que o PIB mostra desaceleração da indústria em relação ao primeiro trimestre, com variação positiva de 0,2%, e levemente negativa em 0,1% na agropecuária. Nada que não possa ser revertido no trimestre seguinte. Mas o quadro está longe de ameaça de recessão, estamos falando de um PIB que cresceu 0,8%, entre o primeiro e o segundo trimestres; e 3,6%, ante o primeiro semestre de 2010. Portanto, não há razão para o tom alarmista do comunicado do Copom. O Banco Central deveria é comemorar o sucesso de suas políticas macroprudenciais para desaquecer a economia, tão atacadas e desacreditadas pelo mercado.

As trapalhadas. Em segundo lugar, nos dois dias que antecederam a reunião do Copom, a presidente Dilma Rousseff e alguns de seus ministros ensaiaram um coro coletivo em defesa da queda dos juros e engatilharam uma série de trapalhadas que puseram em xeque a autonomia do BC, gerando a certeza de influência do Palácio do Planalto na decisão do Copom.

Dilma Rousseff deu a senha na manhã de segunda-feira, quando defendeu publicamente o corte da Selic. À tarde, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, convocou a imprensa para anunciar que os R$ 10 bilhões de sobra da arrecadação tributária não seriam gastos, mas poupados e transferidos para o superávit primário. Isso tudo às vésperas da reunião do Copom. E deu uma dica claríssima de que já conhecia a decisão da Selic, que só viria dois dias depois: "Se vier uma situação pior para a economia brasileira, o Banco Central estará em condições de reagir com políticas monetárias mais expansionistas". Parecia conhecer o conteúdo do texto do comunicado do Copom.

Ainda na segunda-feira, o ministro do Desenvolvimento, Fernando Pimentel, reprisou a presidente Dilma: já há condições de cortar os juros, afirmou.

Na quarta-feira, enquanto o Copom se reunia, a ministra do Planejamento, Miriam Belchior, anunciou a proposta do Orçamento para 2012 e fez coro aos seus colegas: estão criadas as condições para baixar os juros. E apresentou um orçamento expansionista, contraditório com o discurso de oito meses de austeridade nos gastos públicos: as despesas do governo vão crescer 9,8%, quase o dobro da inflação de 5% prevista no documento.

Parece haver uma incontinência verbal neste governo.

Jornalista e professora de Comunicação da PUC-Rio

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO (4/9/2011)

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