quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Uma dose de razão:: Alon Feuerwerker

Complicado haver um Ministério da Mulher que se reserva a atribuição de dizer o que pode e o que não pode ser dito. Amanhã poderá haver um governo que considere, por exemplo, o trabalho feminino fora de casa como fator de desintegração familiar

Certo dia Lamartine Babo escreveu isto:

O teu cabelo não nega mulata.
Porque és mulata na cor.
Mas como a cor não pega mulata.
Mulata eu quero o teu amor

Lamartine morreu em 1963, aos 59 anos. Não sem antes compor os hinos populares dos clubes do Rio de Janeiro.

É uma figuraça da nossa música popular.

Mas, e esses versinhos de um dos grandes sucessos dele, um hit dos carnavais de sempre? Pelo ângulo politicamente correto seriam motivo de escândalo.

Por duas razões, ou três. Por levar no bom humor a constatação de que a mulata alisa o cabelo para, talvez, parecer menos mulata. Por fazer o elo entre o desejo que a mulher desperta e a garantia de que a cor da pele dela não passa por contato.

E por, no fim das contas, tratar a mulata como tal, e não como negra.

Talvez haja um quarto. Por carregar, escondida, uma história da nossa escravidão: a submissão sexual das escravas negras aos senhores brancos.

Discutir assuntos assim é sempre complicado, especialmente se a opinião vem “de fora”. Eu sou branco, então me é relativamente tranquilo palpitar sobre as críticas que Lamartine Babo certamente sofreria se vivesse hoje.

O que não tira meu direito de palpitar. Pois a relação de um determinado grupo social com o restante da sociedade não é monopólio desse grupo.

Negros não têm o monopólio do debate sobre a discriminação racial contra os negros. Ou sobre as cotas. Assim como as mulheres não são as únicas donas do juízo sobre a desigualdade de gênero.

É legítimo que algumas mulheres não gostem do comercial de lingerie no qual Gisele Bundchen vende a sensualidade como arma da mulher na relação com o homem, quando ela busca determinado objetivo.

Cada um sabe onde o calo aperta, então não vou fazer juízo de valor. Mas um detalhe é insuportável: a intromissão indevida do governo, com a pressão aberta sobre a fabricante da lingerie.

Não haveria nada de errado em as mulheres insatisfeitas com o conteúdo das peças publicitárias proporem, sei lá, boicotar a marca.

Eu acharia uma bobagem, mas elas estariam no pleno exercício da cidadania.

Diferente é ter um Ministério da Mulher que se reserva o poder de dizer o que pode e o que não pode ser dito sobre o “assunto mulher”.

Pois amanhã poderá haver um governo que considere, por exemplo, o trabalho feminino fora de casa como fator de desintegração familiar. E de estímulo portanto à criminalidade.

Governo no qual o Ministério da Mulher se dedicará a combater o feminismo. E a patrulhar quem estiver no caminho da missão. Usando inclusive o poder político e econômico do governo para impor sua vontade imperial.

É bizarro? Talvez. Mas extrapolar na argumentação é uma forma de reduzir ao absurdo.

A técnica lógica pela qual determinada premissa leva inevitavelmente a conclusões erradas.

No dia em que um governo conservador nomear uma ministra da Mulher que se dedique a combater o feminismo, jogando o poder do Estado na empreitada, a turma que hoje bate palmas para a pressão do governo contra o comercial da Gisele dirá que é um ato autoritário.

E não deixará de ter alguma razão.

FONTE: Blog Alon Feuerwerker

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