sábado, 24 de dezembro de 2011

Em busca do simbolismo profundo:: Marco Aurélio Nogueira

O Natal é predominantemente uma festa cristã. O dia 25 de dezembro, porém, nem sempre foi uma data dos cristãos, pois até o século 3.º esteve associado ao nascimento anual do "deus Sol" na abertura do inverno. A Igreja Católica, interessada na conversão dos povos pagãos, apropriou-se da data para nela acomodar o nascimento de Jesus. Mesmo assim, o Natal continuou a ser maior do que a cristandade e permaneceu sendo comemorado por muitos não cristãos em diversas partes do mundo. Tornou-se o centro das festividades que celebram o fim do ano. Aos poucos, com o avanço do capitalismo e a preponderância crescente do mercado na vida das sociedades, converteu-se no grande momento econômico de cada ano, período em que indústria, comércio e consumidores são dominados por um afã produtivista e consumista sem paralelo.

A dimensão econômica do Natal passou a concorrer com a força simbólica da data, concentrada na confraternização e na solidariedade. A pressão comercial tornou-se tão intensa que transfigurou algumas belas tradições populares - a troca de presentes, a refeição especial, as árvores enfeitadas, o bom velhinho -, reduzindo-as a caricaturas esvaziadas do simbolismo mais substantivo da data.

A confraternização e a solidariedade perderam força, mas não desapareceram. Manteve-se viva a expectativa de que na última semana de cada ano o mundo seja contagiado por um clima diferente, em que armas e soldados devem voltar para casa ou, ao menos, confraternizar com seus inimigos nos campos de batalha, como dizem ter ocorrido no Natal de 1914, na 1.ª Guerra Mundial, quando soldados britânicos, alemães e franceses decretaram um armistício informal para poderem celebrar a data, com direito a trocas de presentes e disputas de partidas de futebol.

É verdade que nos anos subsequentes do conflito os bombardeios foram intensificados na véspera de Natal para que novas tréguas não se repetissem. E nem todo 25 de dezembro é marcado pela paz e harmonia entre os povos. No geral, porém, o mundo parece pacificar-se quando chega o fim do ano.

Sendo assim, não custa imaginar o que aconteceria se o clima natalino passasse a preencher os 365 dias do ano. Haveria mais fraternidade e solidariedade, evidentemente, e se poderia iniciar a construção de um mundo mais cooperativo e justo, menos desigual e violento, mais sério e competente para evitar que somas gigantescas continuem a ser gastas com armas e negócios enquanto centenas de milhões de pessoas morrem de fome, doenças e superexploração.

Um mundo que não atenta para esses paradoxos é indigno de ser associado ao simbolismo natalino profundo. Falo do "mundo", mas deveria falar de pessoas e instituições, de governantes, líderes políticos, empresários, banqueiros, intelectuais, igrejas, partidos e organizações várias, mercados e sociedades civis. Onde estão eles e por que não conseguem dar um jeito nas coisas, pavimentando estradas por onde a humanidade possa reencontrar-se consigo mesma?

Seria ingênuo demais dizer que a este mundo de pessoas e instituições falta o espírito fraterno da solidariedade, que ele se move exclusivamente por interesses egoístas, escravizado pela face demoníaca da riqueza e da acumulação de poder. Tal modo de pensar não leva em conta a dureza da vida, a direção cega dos processos econômicos, as estruturas sociais que cerceiam as pessoas em nome da ordem e da segurança. Acima de tudo, deixa de lado o caráter complexo do ser humano, essa figura simultaneamente racional e irracional, capaz de amar e odiar com igual intensidade, que acredita em deuses e bruxas, mas cultiva a ciência, que é calculista e passional, ansioso e bonachão, em suma, sapiens e demens ao mesmo tempo, como gosta de falar o sociólogo Edgard Morin.

A sociedade humana - o mundo dos homens e das instituições - não se governa com facilidade. Está sempre submetida a dinâmicas e contradições difíceis de ser controladas. E quanto mais evoluiu, quanto mais caminhou em direção à sua fase de plena globalização, mais foi ficando desafiadora. Por um tempo, entre as décadas de 1950 e 1980, a regulação dos mercados e as políticas de bem-estar ajudaram a organizar uma socialidade mais justa e menos desigual, mas isso não se espraiou pelos diferentes países. O planeta ficou assim mais desigual, ainda que seus diferentes povos se fossem aproximando e interagindo. Mais tarde, a desregulação tomou conta de tudo, políticas neoliberais entraram na moda, os mercados sobrepuseram-se aos Estados e o império das finanças exibiu suas garras, dando um xeque-mate em governos e políticos. Muitos cederam e permitiram que mercados, finanças e Estados compusessem um sistema que se dissociou das comunidades e passou a tiranizá-las. Em 2008 esse sistema mergulhou em crise e espalhou seus gases maléficos por diversas regiões, a começar dos Estados Unidos e da União Europeia.

E é assim que o mundo vai passar os últimos dias do ano. A crise que o devasta é econômica e financeira, mas carrega consigo duas características emblemáticas: não perdoa ninguém e não se pode valer das virtudes da política. Por isso não se resolve. O sistema responsável pela crise opera de costas para a política, esteriliza-a, escancarando a impotência de partidos e líderes políticos. Com isso despoja as sociedades de seus principais recursos de produção de solidariedade e justiça social. Indignados e manifestantes saem às ruas por toda parte e fazem ouvir a voz de seus protestos, mas não se mostram com força suficiente para plasmar outra situação. Seja como for, estão em movimento.

Por isso, se é para nos lembramos do Natal e de seu simbolismo profundo, que pensemos por um momento, nesta última semana de 2011, nos caminhos que a política tem a oferecer para que a solidariedade possa ser celebrada de fato.

Feliz ano-novo para todos.

Professor titular de Teoria Política e Diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da UNESP

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

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