terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Entrevista com o cientista político Octavio Amorim Neto da FGV

'Farra eleitoral impôs governo mais contido'

Cristian Klein

RIO - Uma mandatária tecnocrática, tão centralizadora quanto o ex-presidente militar Ernesto Geisel, tão disposta a intervir diretamente nos escalões inferiores da burocracia para fazer valer sua vontade quanto foi o Roosevelt do New Deal americano, mas que terá, em seu segundo ano de mandato, como foi no primeiro, pouca margem de manobra para cumprir o que prometeu ao se eleger. Para o cientista político Octavio Amorim Neto, da Fundação Getulio Vargas, do Rio de Janeiro, a presidente Dilma Rousseff não faz, a rigor, um governo de continuidade em relação ao de seu padrinho Luiz Inácio Lula da Silva. É uma administração mais contida. Está limitada pelos fatores externo (o cenário instável trazido pela crise europeia) e interno (o crescimento excessivo em 2010, de 8%, induzido artificialmente, a seu ver, para garantir a eleição de Dilma). Em 2012, da linha de fábrica de programas sociais e de infraestrutura - marca do PT em contraposição ao governo de reformas do PSDB - sairão produtos mais modestos. Algo ao estilo do pacote de ações contra o crack e do plano para inclusão de pessoas com necessidades especiais, lançados neste ano. "Dilma tem que ser mais conservadora [do que Lula] depois da farra eleitoral de 2010", afirma o professor da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape) da FGV-Rio. A seguir os principais trechos da entrevista concedida ao Valor por Octavio Amorim:

Valor: Há o risco de o mal-estar com os partidos que tiveram ministros demitidos em 2011 se transformar em projeto de vingança contra a presidente Dilma?

Octavio Amorim: Sim, os principais conflitos do governo Dilma se dão dentro da base e não contra a oposição. O grande risco para a Dilma seria a ameaça de saída de todo o PMDB do governo. Os pequenos partidos são importantes, mas nenhum tem capacidade de dobrar a presidente. Ela não pode dispensar o apoio do PMDB. Esse partido tem de ser sempre muito bem tratado. Mas Dilma criou uma liturgia típica de demissões de ministros que foi justamente concebida para aplacar esse temores dos partidos, de que a presidente os ejetaria, os humilharia e os jogaria aos leões da opinião pública e da oposição.

Valor: Como é essa liturgia?

Amorim: São três pilares. Em primeiro lugar: as acusações sempre partem da imprensa. Em segundo: a presidente sustenta o ministro acusado até a situação dele se tornar impossível. O terceiro pilar é uma cerimônia de passagem do cargo marcada por elogios e aplausos. Esse terceiro aspecto é o mais burlesco e emite um sinal muito complicado: ao fim e ao cabo, o ministro caiu pela luta entre os partidos, como se estivéssemos numa república que não fosse animada por outros valores, como o correto exercício do poder público. Esses três aspectos da liturgia da demissão dos ministros da Dilma são muito coerentes. Procuram indicar para os partidos da base a enorme consideração que a presidente tem por eles.

Valor: Ela criou uma fórmula de saída honrosa.

Amorim: Sim. Mas o terceiro aspecto é que me parece desnecessário. Passa uma mensagem muito negativa. Ele nasce na cerimônia de saída do José Dirceu, como chefe da Casa Civil, em 2005 [durante a crise do mensalão]. Ele saiu aplaudido depois de ter sido apeado do poder por conta daquela denúncia que o [ex-deputado federal e presidente do PTB] Roberto Jefferson fez na Câmara. A matriz está ali e Dilma usou e perpetuou aquilo. Isso transmite um sinal muito pouco edificante para o eleitorado e para a nação.

Valor: A crise europeia é mais assustadora do que foi a crise mundial de 2008 ou Dilma está sendo mais conservadora do que Lula?

Amorim: Ela tem que ser mais conservadora, porque há a necessidade imperativa de um ajuste econômico depois da farra eleitoral de 2010. O programa efetivo da Dilma, em 2011, foi o ajuste após um crescimento excessivo induzido eleitoralmente. Lula foi o artífice do crescimento de 8%, em 2010, mas logo depois ele foi embora e a batata-quente foi passada para Dilma. A grande pergunta é: o que havia por trás dessa decisão de superaquecer a economia brasileira? Uma incerteza política grande. Lula resolveu bancar a candidatura da Dilma, que não tinha a popularidade dele. Para que esse projeto não descarrilhasse a economia tinha que estar muito bem. Por pouco ela não foi eleita, o que confirma que a incerteza política era grande. Agora terão que vir os anos de ajuste por razões externas e internas.

Valor: Qual será o impacto desse ajuste?

Amorim: Ela não pode inflacionar as expectativas com um grande resgate do passivo social brasileiro. Vai procurar fazer mais do mesmo e de maneira mais eficiente, com programas que podem não ter o impacto redistributivo imediato, como esse relacionado a pessoas com necessidades especiais. Isso é importante para reforçar a imagem de um governo eminentemente voltado para a questão social, que é a marca distintiva do PT em relação ao PSDB. Não é um governo tecnocrático, apesar de a presidente ter um perfil tecnocrático.

Valor: Dilma está fazendo mais do mesmo?

Amorim: Não. Dilma prometeu a continuação da festa de 2010, quando sabia que 2011 seria um ano de um duro ajuste. Não foi um ano de continuidade do ponto de vista efetivo, objetivo. Agora, do ponto de vista da retórica do governo, isso teve que ser muito bem dosado. O governo nunca disse: "Estamos fazendo um ajuste porque no ano passado crescemos excessivamente". Teve que fazer isso a conta gotas.

Valor: O que esperar da reforma ministerial?

Amorim: Dilma tem oportunidade de remodelar o governo à sua feição e vai servir para ela dissolver de vez a ideia de que não é a mandatária suprema do país. Não existe mais dúvida quanto a isso, nacionalmente e internacionalmente. O "Financial Times" e a "The Economist" tinham essa preocupação, de que Dilma seria a repetição da experiência da [presidente] Cristina Kirchner, na Argentina, [sucessora do marido, Nestor Kirchner, morto em 2010] ou de [Dmitri] Medvedev [sucessor de Vladimir Putin], na Rússia. Seria um títere, uma presidente teleguiada. Não foi nada disso.

Valor: Como explicar a inédita queda de seis ministros por denúncias de corrupção em apenas seis meses?

Amorim: A gente não pode esquecer o dado de uma pesquisa do meu colega [o cientista político] Fabiano Santos, que mostra que os partidos clientelistas ganharam muito espaço nas eleições de 2010. Esses partidos, PR, PP, PTB, para serem competitivos eleitoralmente dependem muito da utilização de recursos públicos e a vida deles fica muito difícil num ano de ajuste econômico. Se formos tentar identificar a origem dos conflitos políticos que houve na base do governo em 2011 estão aí, entre o imperativo de fazer um ajuste econômico não prometido em 2010 e uma base política com um peso maior ainda de partidos clientelistas. Eles, de um lado, puxando por mais gastos, e a presidente, o ministro da Fazenda e o Banco Central, de outro, preocupados com a estabilidade macroeconômica. E ela conduziu bem. Outro ponto a favor do governo foi o diagnóstico correto do Banco Central a respeito da natureza dos problemas financeiros na Europa, o que acabou justificando a redução da Selic por conta do esfriamento da economia europeia.

Valor: Quais serão os maiores problemas para Dilma em 2012?

Amorim: O Brasil está num bom momento, do ponto de vista macro-histórico, mas nós temos enormes desafios. Essa ocupação permanente das manchetes dos jornais com a discussão exclusiva em torno da corrupção é funcional para o governo, num certo sentido. Não dá espaço para a oposição discutir outra coisa. Mas, no médio prazo, não vai ser útil ao governo, porque para se operar grandes mudanças na opinião pública é necessário tempo, precisa ir preparando. E a gente não tem tido realmente debate.

Valor: Os escândalos não ajudaram a oposição a impor uma agenda negativa ao governo?

Amorim: A agenda seria sempre negativa. Dilma teria que provar que não era o Lula. Teria que fazer um ajuste econômico e também teve que fazer uma faxina ministerial.

Valor: A presidente não aproveitou o primeiro ano para fazer reformas importantes. Há chance disso ocorrer até o fim do mandato?

Amorim: Dilma vai ser muito parecida com o Lula, porque será mais um governo de programas do que de reformas. Um governo de reformas estruturais foi o de Fernando Henrique Cardoso. Lula, porque não queria pagar os custos de negociação com o Congresso, optou por programas como o Bolsa Família, grande símbolo de seu governo, que foi formulado e implementado sem grande voz do Congresso. A Dilma, muito mais agora, porque não tem a folga fiscal que o Lula teve, vai continuar insistindo em programas, assim como fez o Lula, e menos em reforma como havia feito o presidente tucano. Exemplos de reformas de FHC foram a Lei de Responsabilidade Fiscal, a privatização, o fim dos monopólios estatais, o resgate do sistema financeiro. A reeleição foi uma enorme reforma política. Lula não tentou nada disso. Lula desistiu sabiamente de um terceiro mandato pela mesma lógica política pela qual ele não tentou grandes reformas na área previdenciária, tributária ou sindical: o custo político muito alto para ele.

Valor: Qual será o foco?

Amorim: O governo Dilma será marcado pela Copa do Mundo e por infraestrutura e isso está quase que exclusivamente na mão do Executivo. Vai tentar fazer alguma coisa na área de saúde. Houve queda na arrecadação no segundo mandato de Lula por conta do fim da CPMF. É importante para a população e certamente Dilma vai dar conta disso. Também vai tentar implementar uma série de artigos estabelecidos na reforma previdenciária aprovada pelo Lula, em 2003, que foi a grande reforma estrutural do ex-presidente. O que ela vai tentar agora é a implementação do fundo de previdência dos funcionários públicos.

Valor: Que sinais Dilma já deu ou pode dar no sentido de tentar a reeleição?

Amorim: Eu acho que ela quer a reeleição. Todo presidente que se crê bem-sucedido - e ela não tem razão nenhuma para achar que não terá condições em 2014 - procura a reeleição. Mas isso vai aparecer na hora certa. Se ela anunciar isso agora, dá muita munição para a oposição. E ela tem prioridades muito maiores. Para concorrer bem em 2014, tem que ter o que mostrar. A Copa vai ter que funcionar bem, a inflação vai ter que ser domada e voltar a patamares que tínhamos até 2009, o Bolsa Família será reavaliado para saber se continua gerando o incremento em bem-estar que se espera, a política de educação também será absolutamente fundamental.

Valor: São as maiores ameaças?

Amorim: São riscos e oportunidades. Claro que a Copa do Mundo vai ser importante, porque é um megaevento, e a credibilidade internacional do Brasil estará em jogo. Nenhum chefe de Estado jamais deixaria isso em plano secundário. Ainda há que se preparar o Brasil para evento maior ainda, a Olimpíada. E tem todo o compromisso histórico da carreira da Dilma com a área de infraestrutura. Ela realmente vai querer ter um desempenho marcante nessa área e da qual o governo tem sido alvo de tantas críticas.

Valor: Infraestrutura pode ser a marca da Dilma, como a estabilidade econômica foi para FHC e a área social, para Lula?

Amorim: A grande marca do governo Dilma, como está na propaganda oficial, é o país sem miséria. Ela será julgada por isso. Dilma tem estilo próprio, diferenças marcantes com relação a Lula, mas ela sabe muito bem que em alguma medida a imagem dela está associada à dele. E ela vai querer promover isso numa eventual tentativa de reeleição para 2014 dizendo que aprofundou a sensibilidade do governo federal com a questão social. Se Lula iniciou o processo de redução da pobreza, de expansão da classe média, ela vai querer ser a consolidadora. A grande bandeira em 2014 será de consolidar os ganhos da era Lula.

Valor: Sem acrescentar uma nova marca?

Amorim: Com mais eficiência e menos heterodoxia na ação política.

Valor: Dilma terá que trazer o PSD do prefeito de São Paulo Gilberto Kassab para o governo?

Amorim: O ideal seria que o partido não participasse do ministério porque já teria uma imagem, no seu momento de fundação, de fisiologismo muito grande. É importante para Dilma ter o apoio parlamentar do PSD, mas não é interessante que ele participe do ministério, nem é importante para o PSD logo agora.

Valor: Isso poderia criar um precedente interessante, de um partido grande, com mais de 50 deputados, que apoia o governo, mas não participa com cargos ou ministérios?

Amorim: Você pode negociar com os partidos sem que eles tenham cargos. Essa é uma possibilidade. Fazendo isso o PSD pode se credenciar perante o eleitorado sinalizando que está interessado em discussões programáticas. Acho que interessa a ambos.

Valor: As tensões com o PMDB devem aumentar?

Amorim: Dos sete ministros que caíram vale lembrar que o PMDB não conseguiu substituir o titular do ministério da Defesa, que era o Nelson Jobim - embora setores do partido não creiam que ele seja PMDB puro sangue. Mas fica essa dívida da Dilma com o PMDB. Não à toa que há uma série de rumores em torno da ideia de que o PMDB vai receber novos ministérios, porque realmente perdeu um. E o resto é pura especulação.

Valor: O que caracteriza o estilo Dilma?

Amorim: Muito mais discreto e reservado. A comunicação política de Dilma é oposta à do Lula e isso realmente contribuiu para distender o ambiente político. A oposição se sentia permanentemente fustigada pelo chefe da nação. Outro ponto é a centralização. Lembra muito o [penúltimo presidente do regime militar, Ernesto] Geisel [que governou entre 1974 e 1979]. É interessada nos detalhes das políticas, ao contrário do Lula, que era pouco curioso e delegava muito. Ela tem essa disposição para dialogar com os secretários-executivos, os "vice-ministros". Está descendo ao segundo e terceiro escalões para conseguir o que quer. Os vice-ministros não têm base política própria, são figuras muito mais frágeis politicamente e a presidente tem muito mais condição de ver suas preferências prevalecerem quando dá poder a eles. É um estilo de gestão de um Executivo presidencial que, por exemplo, marcou o governo do [presidente Franklin Delano] Roosevelt nos Estados Unidos [entre 1933 e 1945]. Ele não apenas se entendia com os secretários, enfiava a mão lá na burocracia.

Valor: Dilma tende a dar mais importância aos temas econômicos do que aos da área social?

Amorim: A presidente tem tempo e recursos limitados. A ideia de que Dilma abandonou um pouco a área social é muito coerente com a necessidade de fazer um ajuste econômico. Ela abaixou o sarrafo. Se começasse a lançar um programa abrangente a cada mês, novamente, iria inflacionar as expectativas, e não há mais condições de se fazer o que se fez no segundo mandato do Lula. A festa acabou. Os próximos anos não serão tão fartos e há necessidade de muita concentração de eficiência para dar conta desses dois megaeventos: a Copa e a Olimpíada.

FONTE: VALOR ECONÔMICO

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