terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Um alfaiate na cruz::José de Souza Martins*

O teatro amador, nos bairros e no subúrbio de São Paulo, fez época. Até os anos quarenta ainda disputava preferência com o cinema. Ocupava salões de paróquias, de sindicatos, de sociedades de mútuo socorro, de clubes de fábrica. Alguns deles tinham até palco com cortina, caso do da Associação Auxiliadora das Classes Laboriosas, na Rua do Carmo. Os atores das chamadas sociedades filodramáticas aproveitavam, também, a passagem dos circos pelos bairros para neles se apresentarem. A Semana Santa era a melhor época. O circo era pra fazer rir, o que na Semana Santa ainda era pecado. Mas os grupos locais de teatro tinham no repertório peças religiosas, apropriadas para a ocasião. Se o cinema apresentava filmes sobre a Paixão de Cristo, como O Rei dos Reis, de 1927, de Cecil B. DeMille, e era todo ano a mesma coisa, sempre havia algo mais intenso no teatro de circo.

Fazia parte de um desses grupos teatrais, em São Caetano, com a esposa, desde os anos vinte, Otávio Tegão. Era um alfaiate magérrimo, bem talhado para representar a figura de Cristo na teatralização da Paixão. Quando voltava da escola primária, eu passava invariavelmente na porta de sua pequena alfaiataria. Lá estava ele, de cigarro pendurado no beiço, riscando ou cortando pano, ou costurando. Foi ele quem fez o primeiro tailleur de minha mãe.

Lembro bem dele porque estava de moda uma música de Luiz Gonzaga, que muitos repetiam: “Ai, que vida ingrata o alfaiate tem...” E lá vinha o refrão que grudava na memória da molecada: “Vai cortando o pano, vai cortando o pano...”

Contou-me um de seus conhecidos, Henry Veronesi, que numa das apresentações de Semana Santa, já estava ele preso à cruz, só de fralda, para representar a crucificação de Cristo. Continuava com o cigarro na boca, fumando, distraído. Começavam a abrir a cortina, quando, advertido pelo bom ladrão, cuspiu o cigarro que, em vez de cair no chão, caiu-lhe no cós da fralda folgada, indo parar-lhe no púbis, entre pêlos e pele. O ator desempenhou-se bem, como sempre, nos primeiros minutos daquele que era o último ato da peça. Lancetado pelo soldado romano, marido de uma lavadeira de minha rua, que fazia a Verônica, começou a contorcer-se, tentando, com o movimento de uma perna sobre a outra, livrar-se do cigarro que o queimava. Já em desespero, revirou os olhos para o alto e gemeu com profunda dor: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito.” E pendeu a cabeça banhado em suor, as lágrimas escorrendo-lhe pelo rosto. A multidão delirava com o realismo de seu desempenho. Muitos choravam. Fechada a cortina, Tegão foi desamarrado e livrou-se do cigarro. Reaberto o pano para os aplausos, foi ele ovacionado pelo povaréu em transe. Nunca, jamais, em tempo algum, um alfaiate desempenhara com tanta perfeição o papel de crucificado.

*Sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Dentre outros livros, autor de A Política do Brasil Lúmpen e Místico (Contexto, 2011); e Uma Arqueologia da Memória Social – Autobiografia de um moleque de fábrica (Ateliê Editorial, 2011

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

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