terça-feira, 13 de março de 2012

Entre Rio e São Paulo :: Arnaldo Jabor

A melhor comparação entre Rio e S.Paulo que conheço é de Oswald de Andrade:

"No Rio, o contrário da burguesia é a boemia. Em S.Paulo é o proletariado." É isso. São Paulo é realista; o Rio é romântico - um "lugar-comum" perfeito.

Há vários meses não vinha ao Rio, minha terra, e o contraste é assustador. São Paulo está virando uma calamidade pública e o Rio tem de fugir desse destino. Não quero falar dos ratos políticos que destruíram a cidade nas últimas décadas não - isso é conhecido em nossa vergonhosa história. Mas, sinto que depois de anos de críticas contra a óbvia catástrofe urbana, alguma consciência civil já se consolidou.

A cidade do Rio é uma pessoa poética e com desejos próprios e o Rio resiste, entre ilusões e desgraças, e já melhorou muito com a bênção da Olimpíada, que nos deu uma meta de esperança.

O Rio estava maravilhoso esses dias. Fiquei andando pela cidade, da zona sul ao centro, entre as coisas que vejo desde criança como carioca do Meyer, da Urca e Ipanema: cores, cheiros, ventos da terra e do mar, sal e peixes, súbitas luzes, súbitas brumas, súbitas "brahmas", que resistem às brutas modernizações.

Nem falo do "céu, sol, sul", mas dos detalhes que só cariocas veem.

Já escrevi sobre SP e RIO, e sei que corro o risco da subliteratura mas, vamos a isso.

Enquanto ando, como um "flaneur baudelairiano" vejo a púrpura que colore por instantes a Lagoa antes do crepúsculo, nos dias em que a água é um espelho sem peixes saltando, ouço quartetos de cigarras fechando o verão, vi o esquilo atravessando a estrada das Canoas, a cotia do campo de Santana farejando perigo, andei sob a chuva quente que faz subir vapor nas calçadas, vi as flores dos flamboyants caindo como gotas de sangue, uma garça magra e branca como um manequim em desfile caminhando no Jardim de Alá. Atrás de minha casa, olho os imensos granitos de 500 milhões de anos onde os dinossauros se aqueciam, vi os urubus dormindo na perna do vento do Corcovado e um teco-teco vermelho passando entre eles, anoto as nuvens rosas no Pão de Açúcar em fins de tarde, a cara do imperador assírio na Pedra da Gávea. Apesar do tráfico e violência, há nos morros a sabedoria calma de velhos sambistas, há os poéticos caixotinhos dos apontadores dos bicheiros, vendendo apostas nas esquinas em lentas conversas com aposentados, há as frutas, os legumes, as gargalhadas dos feirantes nas manhãs, há a malandragem , o tom debochado do carioca sabido, o arrastado sotaque que evoca a desconfiança nos poderes da capital que já fomos, ritmos e gestos nascidos nos balcões de secretarias desde os tempos do Rei, sotaque curvo como a paisagem arredondada, oscilando em negaças e volteios, a fala marcada por sambas, metáforas vivas condensando morte e amor, cachaça, empada, navalha, bilhares e futebol. Entre a fórmica, os sujos grafites e os edifícios boçais, dá para ver ainda pedaços dos anos 50, restos de uma delicadeza perdida, as anedotas que se renovavam a cada semana, com papagaios e portugueses, piadas que giravam entre gagos, fanhos e gatos caindo do telhado, piadas que sumiram e que podem renascer. Há, sim, uma beleza em nossas fragilidades, no "samba, na prontidão e outras bossas que são coisas nossas...", há a poética dos camelôs, objetinhos insignificantes nos tabuleiros, há também, apesar da pobreza, uma satisfação cotidiana nos subúrbios, uma alegria desesperançada, uma aceitação das impossibilidades, diferente dos lamentos utópicos de inocentes do Leblon; há, sim, o jeito de andar das cariocas (olha o jeitinho dela andar), hoje com barrigas de fora e calças apertadas, sim, uma sexualidade forte não de celebridades de plantão, mas de gostosíssimas comerciárias e bancárias ao fim do expediente no centro, há o prazer de amar a cidade de novo, principalmente depois que o prefeito derrubou o muro da vergonha do César Maia no poético bar 20, onde o bonde fazia a curva desde o início dos tempos - (César e Garotinho, o "eixo do mal" que arrasou o Rio, estão se unindo para atacar o melhor prefeito que já tivemos), há a tragédia da miséria em toda parte sim, mas, entre os raios da tristeza, há os inúmeros grupos de choro e samba, tocando anônimos nos botequins e sob sovacos de morro, há uma alegria soterrada que pode reflorir daqui para frente, para além da excessiva euforia das escolas de samba, uma alegria mais discreta e verdadeira, há a alma de Nelson Rodrigues entre botequins e negões, que diria que os cariocas agora são "príncipes tropeçando nos próprios mantos de arminho", não mais vira-latas; há coisas ínfimas que só o carioca vê, "detalhes tão pequenos de nós dois", há uma preguiça sábia, diferente da paranoia paulista, há uma preguiça para além do ócio ou do desemprego, a preguiça das conversas, de um ritmo sem capitalismo, há restos de trilhos de bonde entrevistos nas falhas do asfalto, há a cidade desenhada sobre um corpo de mulher, tudo é redondo, doce, as montanhas da Barra são mulher, as curvas, tudo mulher, há a linha infinita da restinga de Marambaia à Joatinga, linha frágil que divide o mar ao meio, e finalmente há até a poética da sujeira, da zorra total, do baixo mundo, há a putaria poética em Copacabana entre vadias, veados, michês, miquimbas e cafifas, todos num desabrigo corajoso e batalhador. Mas temos as calmas tardes do subúrbio, a precariedade de nossa vida antiga, de um mundo com menos gente louca e má.

"Ah! Você por acaso quer a volta do atraso, da miséria terrível de antes?" - dirão alguns. Não, claro que não. Mas as cidades são pessoas, com alma e corpo que não podem ser desfigurados em nome do progresso que deformou São Paulo.

SP precisa de coisas do Rio e vice-versa. SP precisa de beleza e limpeza de um crescimento trágico (trânsito pior do mundo, chuvas, poluição absurda). O Rio precisa de mais ordem e de mais consciência social, que há em S.Paulo.

FONTE: SEGUNDO CADERNO/ O GLOBO

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