domingo, 4 de março de 2012

Picnic:: Caetano Veloso

Ao ouvir a conversa que surgiu, durante o ensaio do show de Gal, sobre a nomeação de Marcelo Crivella para o Ministério da Pesca (e a história de que o senador evangélico teria respondido à pergunta de um repórter sobre seus conhecimentos a respeito do assunto com a frase "Não sei nem colocar uma isca no anzol"), o guitarrista Pedro Baby, ainda levantando o tronco e a cabeça do semicírculo de pedais que se dispõe à sua frente, comentou (ele viveu alguns anos nos Estados Unidos): "Puxa vida, Ministério da Pesca!, daqui a pouco vai ter o Ministério do Piquenique." O número de ministérios é enorme e só fez crescer na era Lula. Tem que agraciar muitos partidos e muitos grupos de pressão (dizem que Crivella entra para atrair eleitores evangélicos para o candidato do PT, portanto do Governo Federal, à prefeitura de São Paulo, já que Serra decidiu dizer mais uma vez que se se eleger não deixará o cargo para tentar de novo a presidência?). Quem pode acreditar em quem quer que esteja em qualquer dos lugares dessa dança? Um pique-nique contra a legalização do aborto e o reconhecimento do casamento gay. Piquenique ou picnic? Como é mesmo que o acordo nos aconselharia a grafar essa palavra inglesa (ou alemã?) há século consagrada pelo uso?

Esse acordo é uma maluquice. Quero dizer, é outra maluquice. É mais uma maluquice. O que foi mesmo que houve nos anos 1970? Não me lembro de ouvir a palavra "acordo" (que ainda se escrevia "acôrdo", para distinguir da primeira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo acordar). Mas o fato é que o CD "Nego", concebido por Carlos Rennó, ficou com esse título que remete mais ao samba-canção que primeiro fez furor na voz de Nelson Gonçalves e, depois, na de Maria Bethânia do que à palavra que poderia corresponder ao "nigger" americano, se este não fosse um xingamento. Até os anos 1970, escrevia-se "nêgo", quando se queria designar alguém de pele escura, ou dengar um amigo ou namorado querido, ou ser simpático com o vendedor da loja, ou simplesmente referir-se ao ser humano em geral. Aliás, nesta última acepção é que ouvi essa palavra pronunciada hoje, pelo mesmo Pedro, quando, ao reportar uma combinação que tinha feito com todos os membros de sua família, disse que "nego acatou logo". "Nego" é "geral", é "todo mundo" (que perdeu o "o", o artigo definido que tinha herdado da origem francesa da expressão, também depois dos anos 1960, acho, embora eu próprio quando escrevi um livro nos anos 1990 ainda teimasse em manter o artigo). Nego é a família de Pedro.

Também o livro "Um defeito de cor", cujas 925 páginas li sempre com algum interesse, ostenta um título à primeira vista estranho na capa: alguém decorou um defeito e o repete sem precisar consultar o teleprompter? Não, seu velho, "cor" é "côr". Faz décadas que alguém decidiu, neguinho decidiu, um grupo de pessoas decidiu (quem, afinal, foi a esse piquenique?) que seria mais fácil para os estudantes brasileiros e estrangeiros que os acentos diferenciais dançassem. Por falar nisso: por que Guimarães Rosa escreve "dansar" em ao menos uma das histórias (estórias) de "Sagarana" (ou será "Corpo de baile")? E "dôido" em todo o "Grande sertão"? "Dôido"? Nem nos anos 1950 eu aprendi isso. Diferençava-se "doido" (que já começa com um ditongo que automaticamente confere som fechado ao "o", além de assegurar a tonicidade da sílaba - que aliás independe disso, já que um dissílabo não acentuado e não terminando em "i", "u" ou ditongo é automaticamente paroxítono - fazendo duas vezes desnecessário o recurso ao acento circunflexo) de "doído", como até hoje se faz. Nada mais. Mistérios. Escrever é muito perigoso. Esse circunflexo de Rosa deve ter motivações esotéricas, numerológicas, ocultas. É um caso extremo e anômalo. Mas o de, por melhor exemplo, "fôra" até hoje me faz falta. Muitas vezes inicio a leitura de um parágrafo de romance e paro na palavra "fora", indeciso se seu "o" foi pensado para se pronunciar aberto (e, portanto, indicar que não é dentro) ou fechado (dando à palavra o sentido de mais-que-perfeito do verbo ir - ou ser!). De modo que sempre tenho de recomeçar a leitura depois que, lendo o resto da frase, me asseguro de tratar-se de uma ou outra pronúncia. Imagino que teria um problema se estivesse lendo o texto pela primeira vez e em voz alta para um grupo, num piquenique.

Mas será que a finalidade é de fato facilitar o uso da língua escrita? E é seguro que a ausência de acentos a torna mais fácil? A facilidade é uma virtude para uma língua? Ouço muitos malucos brasileiros dizerem que "o português é uma língua muito difícil". De onde vem essa ideia? Do Ministério da Pesca?

Sempre se dá o exemplo da facilidade gramatical do inglês. Acho inglês uma língua de outro planeta. Ela é polida ou desgastada pelo tempo, uso e convergência de vários povos numa ilha afortunada, como um seixo. Não tem essas redundâncias de o plural ter que se reafirmar em cada palavra da sentença, não tem propriamente conjugação verbal, não tem esse desperdício de masculino e feminino pra tudo. Mas ouvi aquele discurso contra o preconceito linguístico nos Estados Unidos no filme "12 homens e uma sentença". Em "Picnic" temos aqueles peitos incríveis de Kim Novak. Agora aqui é "para" em vez de "pára". Como posso parar? As maluquices proliferam ao redor, só tenho uma cabeça. Ou talvez só tenha quatro, como diz Mautner.

FONTE: O GLOBO/SEGUNDO CADERNO

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