sábado, 26 de maio de 2012

Li Xing:: Merval Pereira

A crise política que se abateu sobre o Partido Comunista chinês em março, quando uma de suas principais estrelas, Bo Xilai, que comandava a megacidade Chongqing, foi afastado, tem origem em uma disputa em torno da relevância de uma característica subjetiva chinesa que faz parte hoje do ideário do Comitê Central, resgatada nos últimos anos depois de ter sido menosprezada pelo camarada Mao e sua Revolução Cultural, que Bo Xilai queria reviver como parte de um projeto politico oposto ao que está em vigor no país há 30 anos.

Ele era um dos fortes candidatos ao órgão máximo do Partido Comunista, o Comitê Central, que deve ser renovado proximamente, e foi superado pela visão hegemônica no país que a tradição do Li Xing deve orientar o crescimento econômico.

Coube ao professor Tong Shijun, vice-presidente da Academia de Ciências Sociais de Xangai, trazer para o debate essa tradição viva chinesa que o filósofo inglês Bertrand Russel classificou em seu famoso livro "The problem of China" ("O problema da China"), de 1922, como a característica mais importante do espírito chinês: a "razoabilidade", que para o filósofo chinês Liang Shuming não é simplesmente uma atitude, um comportamento, ou um modo de pensar típico da cultura chinesa, mas sobretudo alguma coisa profundamente enraizada no coração do povo chinês, e, nesse sentido, sagrada.

Para Bertrand Russel, "os chineses almejam ser requintados na arte e razoáveis na vida". Esse conceito, que tem suas origens no confucionismo, foi sufocado no período de Mao Zedong e o professor Shijun chamou a atenção para o fato de que nos oito volumes dos escritos de Mao o Li Xing aparece uma única vez, e assim mesmo de maneira pejorativa: "Seres humanos são antes de mais nada animais sociais e não devemos seguir a burguesia enfatizando a importância do Li Xing para os humanos".

O professor Tong Shijun diz que o fim da Revolução Cultural em 1976, dando lugar a um processo de grande desenvolvimento econômico e cultural, pode ser interpretado como evidência de que a tradição do Li Xing, ou "razoabilidade", prevaleceu, mas, mesmo que tenha sido assim, "é preciso perguntar por que uma nação com tamanha tradição pode ter sofrido tal falta de racionalidade e razoabilidade, e como isso pode ser evitado no futuro".

Ele chama a atenção para fatos que vêm se sucedendo nos últimos anos e que indicariam uma tendência no Partido Comunista no sentido de manter a política de abertura.

Em outubro de 2010, a reunião do Comitê Central do Partido Comunista aprovou o programa de cinco anos para o desenvolvimento econômico e social da China que objetiva, entre outras coisas, "promover o espírito científico, fortalecer preocupações humanísticas, dar mais atenção ao aconselhamento psicológico e cultivar uma mentalidade social que seja empreendedoramente progressista, pacificamente Li Xing e aberta tolerantemente".

Nesse mesmo contexto, de abril a maio de 2011, o maior jornal oficial, o "People"s Daily", publicou uma série de artigos sob o título geral de "Dando atenção à mentalidade social" para explicar as implicações da demanda de cultivar uma mentalidade social Li Xing .

O professor Shijun ressalta que merece especial atenção um dos artigos da série, sobre como começar os esforços para atingir o Li Xing . Ele destaca o fato de que a expressão Li Xing passou a ser frequentemente usada porque muitas pessoas estão se tornando o oposto da razão frente a vários problemas.

O artigo afirma que o entendimento do partido sobre a razão "alcançou um tremendo progresso nesses últimos 30 anos, começando a abertura, as reformas, a aceitação de uma racionalidade econômica que favorece aos interesses pessoais, a competição e a eficiência, indo da questão individual, na ênfase em ser calmo, estável, sensível e contido, até os esforços feitos pelo partido e o governo para proteger os interesses das massas, salvaguardando a razão pública e construindo uma sociedade harmoniosa".

Mas o artigo também admite que num país em rápida mudança como a China de hoje, que enfrenta uma situação de turbulência nunca vista em milhares de anos, nenhuma pessoa em particular pode se aventurar a ser o dono da verdade absoluta e desfrutar um sentido superior de razão e esperar ser capaz de curar a ferida da irracionalidade com o símbolo da razão.

Para completar o quadro, o professor Tong Shijun lembrou a posição de um dos fundadores do Partido Comunista chinês Li Dazhao (1889-1927), que tentou apropriar a cultura tradicional do L i X ing para desenvolver uma versão chinesa da democracia deliberativa.

Li citou em um artigo de 1923 um famoso conceito de Mencius (372 BC-289 BC), professor confuciano, que só perdia em importância para o próprio Confúcio, para explicar o conceito de "livre escolha", que considerava essencial para uma democracia genuína: "Quando subjugam um homem pela força, não o dominam no coração. O submetem porque sua força não é suficiente para resistir".

O professor Shijun ressaltou que quando desenvolvia sua sofisticada justificação de uma moderna política legitimada pelo que Habermas mais tarde chamaria de "motivada somente pela força desarmada do melhor argumento", Li já havia se convertido ao marxismo, segundo a historiografia oficial.

Para ele, os recentes esforços para integrar o marxismo com o confucionismo e construir uma democracia com características chinesas podem ganhar forte apoio dentro do Partido Comunista e também da escola filosófica tradicional chinesa.

FONTE: O GLOBO

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