quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Depois do mensalão, um Brasil pior? - Lúcio Flávio Pinto

A primeira campanha de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência da república custou um milhão de reais. A vitória de Fernando Collor de Mello saiu por 100 vezes mais porque dos R$ 160 milhões arrecadados pelo seu tesoureiro, Paulo César Farias, “só” R$ 100 milhões foram gastos. Foi a maior “sobra de campanha” de todos os tempos. Mesmo porque foi a primeira vez que esse tipo de receita foi documentado. E acabou se tornando de domínio público o que antes era feito com sigilo e nos bastidores.

Collor mandou PC Farias administrar esse fundo, absolutamente clandestino, de R$ 60 milhões, o mais desejável dos caixa 2 que alguém podia imaginar. O grande escândalo que levou à desgraça de Collor resultou da desenvoltura dos saques nesse caixa. Ele já existia antes, mas com PC Farias assumiu um tamanho inédito. Passou a ser uma fonte de dinheiro sem registro notável.

Lula e sua equipe, depois de três eleições frustradas em 12 anos de muita experiência, estavam prontos para vencer a disputa de 2002. Duda Mendonça, o melhor dos marqueteiros, foi contratado para polir o “Lulinha paz e amor”, que pôs fim à reação da classe média, multiplicada pela sua capacidade de influir sobre a opinião pública.

Duda custou R$ 15,5 milhões (incluindo serviços anteriores, seu faturamento ultrapassou R$ 40 milhões). Mas não era o único marqueteiro na campanha. João Santana faturou quase 14 milhões. Só com os dois, o comitê de Lula gastou 30 vezes mais do que em toda campanha de 2009. De onde veio esse dinheiro? Como foi distribuído? Quem o distribuiu? Quem o recebeu? Como essas despesas foram lançadas?

Estas são as perguntas fundamentais por trás do “mensalão”, uma história que avança há sete anos. Tendo começado por denúncias anônimas ou assumidas, teve julgamento político no Congresso Nacional e poucas condenações. Chegou agora ao Supremo Tribunal Federal. Na denúncia, o procurador-geral da república, Roberto Gurgel, diz que se trata do “maior crime político da história da república”, perpetrado por uma “sofisticada organização criminosa”.

Ela se reparte em três quadrilhas. A política, comandada por José Dirceu, a segunda figura mais importante no PT depois de Lula. A de captação de recursos, à frente o publicitário Marcos Valério. E a financeira, liderada pela presidente do Banco Rural, Karla Rabello.

O chefe do Ministério Público Federal diz que elas agiam entrosadas. Primeiro para pagar as contas eleitorais do PT e de seus principais aliados políticos. Depois, já atuando de forma permanente, para comprar vitórias do governo na votação de iniciativas do seu interesse no parlamento. O dinheiro, que fluiu inicialmente através de instituições privadas, passou a sair dos cofres públicos quando Lula assumiu a presidência.

O relatório de Gurgel tem 123 páginas. É contundente. Os autos do processo são formados por 233 volumes com quase 50 mil páginas, nas quais aparecem 700 personagens, dos quais 38 foram denunciados à justiça como réus. O Congresso, que concluiu pela prática dos crimes e forçou alguns dos seus integrantes a renunciar, além de cassar outros, concorda. Dois procuradores-gerais sucessivos partilharam a mesma convicção. O ministro relator no STF, Joaquim Barbosa repetiu suas afirmativas.

A defesa dos réus concorda que um crime foi praticado: o caixa 2. Nega todos os outros delitos. O crime eleitoral está prescrito. Se só houver esse indiciamento, mesmo que haja condenação, não haverá presos. Ninguém irá para a cadeia. Mas não irá, sustentam os advogados dos acusados, porque não existem provas das demais práticas criminosas, apenas ilações e algumas evidências, insuficientes para definir os tipos criminais.

Ainda que a denúncia fosse procedente, ela exagera. Não se trata, a rigor, do “maior crime político do Brasil”. Mas talvez seja o mais grave da atualidade. Suas consequências, estas, sim, podem ser ainda mais desastrosas. Podem pôr fim ao que restava de preocupação ética na prática política brasileira, que, em humor tornado negro, daria razão à vovó Zulmira, personagem antológica criada por Stanislaw Ponte Preta: se a moral não vai ser restaurada, então que todos nos locupletemos.

Depois de três derrotas na disputa pelo poder, Lula e o PT concluíram que só venceriam se deixassem de ser o que vinham sendo: uma alternativa à esquerda para o país, uma novidade, uma mudança profunda, talvez radical. O que era para ser uma tática de momento, sem a qual seria impossível vencer a quarta tentativa, se tornou a prática corrente de Lula e do partido colocado ao seu reboque, como sua mera extensão.

Em algum momento, seus dirigentes imaginaram que a mão suja podia ser lavada logo depois da vitória. Mas era preciso sujá-la sem pudor para derrotar o PSDB de Fernando Henrique Cardoso, mesmo que seu candidato fosse o indigesto José Serra. Ninguém contesta, nem o petista mais vermelho, que o partido distribuiu clandestinamente R$ 56 milhões entre o final de 2002 e o primeiro semestre de 2005, R$ 28,5 milhões para o próprio PT e o restante entre PL, PP, PTB e PMDB.

Todo esse dinheiro seria para quitar as dívidas pendentes num orçamento que perdeu seu senso de realidade quando a hipótese de vitória se tornou forte. Tudo foi avalizado, até o que não podia ser declarado. Por isso o pagamento de Duda foi para um paraíso fiscal nas Bahamas. Por baixo dos panos e atrás dos biombos outras contas foram acertadas, no melhor estilo mafioso.

Uma vez equilibrado o fechamento do caixa 2, o PT podia voltar a ser o campeão da ética, da honradez, da defesa intransigente de programas? Não. Pelo simples detalhe: já deixara de corresponder a essa imagem de propaganda. O PT perdera a virgindade a partir das administrações regionais. Formara caixa 2, desviara sobras de campanha, negociara decisões, estabelecera ligação com gente escusa e colocara ao alcance de alguns dos seus dirigentes um poder que eles jamais imaginaram que um dia poderiam ter.

Os petistas ainda tinham a síndrome de Harry Porter. Pareciam convencidos de que a capa do passado ocultaria seus mal feitos. Podiam então se lançar à desonra certos de que ninguém os veria. Teria diante dos seus atos o pior dos cegos, o que se recusa a ver. Invisíveis, os petistas no poder davam-se ao desfrute de repetir as práticas que condenavam quando na oposição. Não importava: o dinheiro ilícito e a prática imoral eram meios escusos que se legitimavam pelo seu fim, o de colocar no comando do país as melhores pessoas, o melhor partido, o melhor programa. Uma vez alcançado o fim, o meio que o negava se extinguiria. A classe desfavorecida havia chegado, finalmente, ao paraíso.

No meio dessa engrenagem toda houve gente que se assustou. Uns saíram do jogo. Outros o denunciaram. O caso mais exemplar foi o do ex-prefeito de Santo André, Antônio Celso Daniel. Ele constatou que o dinheiro sujo não estava indo apenas para o caixa 2, entidade remota que com o PT se transformou em mecanismo burocratizado, absorvido, “normalizado”. Alguns petistas estavam colocando o dinheiro no próprio bolso. Estavam roubando.

Celso Daniel foi assassinado. Sua família, que denunciou a inspiração política do crime, teve que fugir do Brasil, se exilando na França. Voltou recentemente com o mesmo discurso. E com o mesmo efeito prático: nenhum. A síndrome de Harry Potter o inutiliza em relação ao PT. Lula ainda tem o reforço do efeito teflon: nenhuma acusação gruda nele.

Mas tantas foram as vilanias que a originalidade do “mensalão” na sua fase judicial é o surgimento do acusado que quer ser réu. Não pretende o benefício da delação premiada: admite que cometeu o crime, desde que o crime seja o eleitoral, do caixa 2, que o manterá longe da cadeia, logo lhe permitindo retornar à condição de primariedade, com a qual sua vida prosseguirá risonha e franca.

O código para essa saída eficaz foi dado por Lula na famosa entrevista semiclandestina dada em Paris a uma jornalista de aluguel (e de ocasião): tudo isso é caixa 2, prática ancestral. É um deslize dos “aloprados”, do mesmo gênero que mereceu a tolerância de outro presidente da república, o general Ernesto Geisel, em relação aos “radicais, mas sinceros”. Nada que um carão não resolva, fazendo o rebelde se enquadrar de novo e voltar a ser uma boa pessoa.

Assumindo grotescamente essa culpa perante a justiça, ardentemente desejosos de que venha essa condenação segmentada, os réus do “mensalão” sepultaram a moral e a ética pública. Se os santos pecaram e proclamam seu pecado, aos pecadores tudo está autorizado.

O mais exemplar dos atores dessa ópera bufa, Delúbio Soares, o PC Farias de Lula, é “uma pessoa honesta, no sentido de que não arrecadou dinheiro oficial ou por baixo dos panos,para aproveitar uma parte”. É o que assegura A outra tese do mensalão, livro de Antônio Carlos Queiroz, Lia Imanishi Rodrigues e Raimundo Rodrigues Pereira (159 páginas, Editora Manifesto), que acaba de ser lançado para se opor ao prejulgamento da imprensa dominante, dos inimigos do PT e de um poder judiciário manipulado.

O pecado (venial, é claro) de Delúbio é “seu gosto por bons vinhos e charutos cubanos”. Para um simplório professor de matemática de escola de ensino médio (da qual foi recentemente demitido, por abandono do emprego) em Goiás, cabe perguntar como o tesoureiro de sempre de Lula formou esses gostos e como o mantém. Recebendo presentes de amigos? Naturalmente, ele acredita em jantar grátis.

Seu chefe, que morou por anos em casa alugada que o compadre lhe cedeu, com tudo mais para uma boa vida (charutos e vinhos inclusos), também. A partir do exemplo superior, muitos petistas seguiram atrás, sem perguntar pela origem dos fundos que sustentam esses novos hábitos.

A “outra tese”, que os jornalistas da revista Retrato do Brasil apresentam, com muitos argumentos em seu abono, pode ser tão defensável quanto a primeira tese, ou até mais, já que os acusadores dos integrantes das três quadrilhas reunidas pela “sofisticada organização criminosa” exageraram na ênfase e extrapolaram nas interpretações. A base factual é menor do que a conclusão a que esses acusadores chegaram.

É pouco provável (embora não de todo impossível) que Lula e o PT precisassem criar uma propina mensal para comprar votos de parlamentares para seus projetos. Para comprar votos, têm mais eficácia obras favoráveis e emendas parlamentares aprovadas, o que o PT faz à larga desde que assumiu o Palácio do Planalto. E é muito mais dinheiro do que aquele que pode ter saído do Banco do Brasil através do fundo Visanet. Sem o risco de poder ser classificado de criminoso. Imoral, sim. Antiético, sem dúvida. Mas é sempre assim no alto do poder. O PT apenas repete os vícios, já sem qualquer resquício de pudor.

Daí a concluir que o Supremo Tribunal Federal se transformou num “tribunal de exceção” ao julgar o “mensalão”, como fazem os três jornalistas da “outra tese”, vai uma distância muito grande. Os exageros de lado a lado servem, no fim, aos que aceitam que alguma verdade seja dita e, por causa dela, alguém seja punido. O cego-surdo por conveniência mais famoso do Brasil.

Mas não que a revelação chegue à verdade por inteiro e alcance todos os envolvidos. Ou então, depois de José Dirceu, derrubado pela denúncia de Roberto Jefferson (que jamais podia assumir o papel de mocinho num enredo decente), teria que ser atingido quem completava a cadeia de comando: Luiz Inácio Lula da Silva.

Por isso, qualquer que venha a ser o desfecho dessa novela, depois dela o Brasil, sob a aparência de uma saúde reforçada, terá um organismo debilitado por um mal invisível: o acerto de contas entre os personagens principais, mas invisíveis. Ou porque sofrem da síndrome de Harry Potter. Ou porque sempre foram invisíveis.

Lúcio Flávio Pinto é o editor do Jornal Pessoal, de Belém, e autor, entre outros, de O jornalismo na linha de tiro (2006), Contra o poder. 20 anos de Jornal Pessoal: uma paixão amazônica (2007), Memória do cotidiano (2008) e A agressão (imprensa e violência na Amazônia) (2008).

FONTE: JORNAL PESSOAL & GRAMSCI E O BRASIL.

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