segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Duas épocas da corrupção - Renato Janine Ribeiro

O tema mais frequente nas discussões sobre o poder no Brasil, pelo menos no período republicano, é a corrupção. Mas não é um grande tema político, por uma simples razão: esse assunto, ao substituir a política, degrada-a. Em vez de se debater quais rumos nosso País deve tomar, acusa-se o outro lado de praticar crimes comuns. Ou seja, nossa sociedade se porta como se não houvesse rumos a escolher para o Brasil - apenas, crimes dos quais escapar. Não discutimos a política, mas o crime. Não procuramos construir um futuro para nossa casa comum. Limitamo-nos a reclamar dos homens maus que nos enganam. No fundo, nem sei se pensamos em futuro. Queixamo-nos do presente e do passado. Para uma sociedade ter futuro, ela precisa projetar o destino que quer construir. Isso é bem mais do que reclamar da sina que se abateu sobre nós, do que falar mal da gente má que nos faz mal.

Mas quero me ater a duas épocas da República, as mais recentes. Não falarei do Império ou da República Velha, com sua enorme fraude eleitoral, mas dos últimos cinquenta anos. A ditadura militar abafou a crítica, na fase que começa com o Ato Institucional nº 5, em dezembro de 1968. Contudo, no fim da década de 1970, jornalistas corajosos começam a investigar casos graves de corrupção. Começa aí uma época que duraria quase duas décadas. Ainda sob o regime militar, a imprensa denuncia a corrupção. Já no governo civil, Jânio de Freitas revela o caso da Ferrovia Norte-Sul. Sarney era presidente. Seu sucessor, Fernando Collor, não completa o mandato - porque ele mesmo é denunciado e julgado. Em dezembro de 1992, ele se torna o único presidente do Brasil a perder o cargo por impeachment. No ano seguinte, há mais acusações, das quais a principal é a dos deputados chamados de "anões do orçamento".

Essa foi uma fase heroica da história da imprensa brasileira e, por que não dizer, do Brasil também. Começa com jornalistas valentes, enfrentando um regime no qual grassavam a tortura, a censura, a ditadura. Prossegue, no início da frustrante Nova República, com profissionais da imprensa e parlamentares se empenhando em apurar casos graves, isso enquanto ainda se teme a volta do regime de força. Esses jornalistas e deputados atuam como verdadeiros heróis (insisto na ideia), lutando pela decência e por um país melhor. Nessa época, está claro qual é o lado do bem, qual o do mal. Aliás, as denúncias de corrupção são didáticas. Os fatos parecem óbvios. A oposição entre "nós" e "eles" não é maniqueísmo. É real - ou assim parece.

No passado era claro onde estava a corrupção

Infelizmente, esse tempo passou. Veja-se o posfácio que Mario Sergio Conti escreveu para a nova edição de seu "Notícias do Planalto", o apaixonado relato das apurações jornalísticas e parlamentares que levaram à destituição de Collor. Pois os jornalistas audazes de vinte anos atrás estão hoje, quase todos, fora da imprensa. Uns trabalham em atividades que, no passado, eles próprios não admirariam. É o que impressiona na leitura dessa atualização de currículos. Um sonho, uma esperança se desfez. Lembremos que um dos deputados mais ativos na apuração dos fatos foi José Dirceu, cuja imagem pública também mudou.

Porque, desde que a "Folha de S. Paulo" começa a publicar, em meados da década de 1990, matérias sobre suposta corrupção no governo tucano, a divisão entre bem e mal se perde. Principia a segunda época da corrupção. Daí em diante, tudo se embaralha. Há um racha entre os que combateram a ditadura e os maus costumes políticos. O governo Fernando Henrique não quer apurar as denúncias de compra de votos para a reeleição (assunto recordado por Jânio de Freitas no "Roda Viva" este mês), nem as de irregularidade na privatização das teles. Depois disso, o governo Lula também não desejará aprofundar as denúncias que vierem. Não há mais um lado do bem - ou, se há, ficou com os nanicos. Será por acaso que quem pediu a cassação do então senador Demóstenes foi um senador do PSOL, que tem a menor bancada dentre os partidos sobre os quais lemos com alguma frequência?

Este é um dia de Arnaldo Jabor - eu me refiro ao que mais admiro nesse escritor poderoso, que é quando ele evoca com certa nostalgia os tempos em que tudo era preto ou branco, em que o bem estava de um lado e o mal, de outro: os tempos da ditadura. É verdade que hoje ele defende um dos lados em que o país se dividiu na política, mas a força de sua escrita vai além disso. Ela é um pranto por um país que poderia ter existido, mas não existe - pelo menos, por enquanto. Um país que não existe porque o PSDB e o PT desistiram de construí-lo.

Porque era fácil acompanhar o caso Delfin, Collor, os anões. Hoje, não é nada fácil. Pessoalmente, desde o escândalo da compra de votos para aprovar a emenda da reeleição, denunciado em 1997, não consigo entender os casos. Não têm a limpidez que havia nos processos da era heroica. Temos gente decente jurando que houve compra de votos, e gente boa assegurando que não. Idem, para o mensalão. Os casos viraram cipoais. Geralmente, quem tem certezas a respeito é quadro de partido. Sabendo que a forma fácil de fazer campanha política é acusar o outro lado de desonesto, e que a desonestidade óbvia é a corrupção, muitos atribuem corrupção ao antagonista só para ter votos. Vá-se ver o caso Collor, em 1992, e compare-se o caso do mensalão - lendo sempre os dois lados, acusação e defesa - e se verá como é difícil se orientar em meio ao caos atual. Mas creio que esta desorientação é fruto da perda da nossa inocência, e que a perdemos devido à Realpolitik em que se meteram os melhores partidos, primeiro o PSDB, depois o PT.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.

FONTE: VALOR ECONÔMICO

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