sábado, 18 de agosto de 2012

Fim das utopias - Sergio Paulo Rouanet

O mundo contemporâneo está cheio de amnésicos assim: os desmemoriados, que não se lembram de nada, e os memoriosos, que se lembram de tudo, exceto do essencial. O que Engels chamava de “falsa consciência” tem como ingrediente principal o esquecimento. Há várias formas de esquecimento. O esquecimento originário, o fetichismo da mercadoria, que nos faz esquecer que o valor não é uma relação entre coisas, e sim entre classes. O esquecimento histórico, que faz os alemães se esquecerem da ignomínia do nazismo, e os brasileiros se esquecerem de quatro séculos de escravidão. O esquecimento político, que nos faz esquecer os mortos e os torturados pelo regime militar. O esquecimento moral, que levou os que arriscaram a vida num combate heroico contra a ditadura a desonrarem sua biografia, praticando a corrupção como receita de governabilidade.

E há o esquecimento sectário dos que querem obliterar o caminho percorrido pela humanidade, destruindo todas as ideologias, e substituindo a treva da ignorância pelo fulgor da verdade. Como diz a Internacional, eles querem du passé faire table rase. É preciso, nisso, dar razão a Adorno e Horkheimer: o que é falso na ideologia não é seu conteúdo, e sim a pretensão de que ele já seja real. Não é a trindade revolucionária francesa que é fraudulenta, e sim a tentativa retórica de persuadir os cidadãos de que a liberdade, a igualdade e a fraternidade já se realizaram. Como escreveu Horkheimer, “as ideologias do passado não serão simplesmente identificadas com a estupidez e a impostura, como fazia o Iluminismo francês com relação ao pensamento medieval... Embora privadas, no contexto contemporâneo, do poder que originalmente tinham, servirão para iluminar o caminho da humanidade. Nessa função, a filosofia se tornará a memória e a consciência humana, e contribuirá para impedir que o caminho do homem se assemelhe aos cegos rodopios de um louco na hora da recreação”.

Quanto ao futuro, ele era um tema fundamental durante a vigência da doutrina do progresso linear da humanidade. O futuro era o horizonte para o qual tendia o gênero humano. Era a fase das grandes narrativas, na terminologia de Lyotard, como a narrativa da revolução mundial, ou a do saber enciclopédico. Como todas as narrativas, elas tinham um começo, um meio e um fim, e o fim (não necessariamente no sentido de final) era o futuro. Mas o futuro está bloqueado por um sistema social em que o novo aparece sob a forma do sempre igual, e o sempre igual sob a forma do novo. É o tempo do inferno, para citar Benjamin.

Tudo muda: os smartphones de 2012 são diferentes dos de 2011, e isso é essencial para que nada mude. No fundo, o futuro tornou-se um termo técnico da Bolsa. As pessoas não especulam mais sobre o futuro, e sim no futuro — no mercado de futuros. A consequência mais grave da crise do futuro é que ela resultou no assassinato da utopia. E para autores sérios como Ernst Bloch, Theodor Adorno, Herbert Marcuse e Jürgen Habermas, toda sociedade e todo pensamento que não se deixem guiar pela perspectiva do futuro utópico estão condenados à irrelevância.

Sergio Paulo Rouanet é doutor em ciência política pela USP, autor de “Mal estar na modernidade” (Companhia das Letras) e “Édipo e o anjo” (Tempo Brasileiro)

FONTE : PROSA & VERSO

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