quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Fé e política - Michel Zaidan Filho

Não é de hoje que se especula sobre a relação entre a cidade de Deus e a cidade dos homens, para usar a expressão de Santo Agostinho. Ninguém ignora o componente messiânico (judaico, cristão ou muçulmano) que existe no pensamento socialista revolucionário. O próprio marxismo, enquanto teoria política, já foi definido como uma escatologia de base profana e imanentista. E Engels, o companheiro de Marx, chamou os "essenios" - cristãos primitivos - de os primeiros socialistas. Foi de Cristo a afirmação de que o filho de Deus não tinha sequer uma pedra onde descansar a cabeça, e a tese de que seria mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus. Foi Nietzsche quem proclamou definitivamente o Cristianismo e seu primo mais velho - o judaísmo - como a religião dos escravos, dos pobre s, fracos e miseráveis.

Todo esse preâmbulo é para tocar num ponto que se tornou crucial ultimamente na política de alianças do PT,PC do B e PSB no Pernambuco e no Brasil: a aliança da esquerda com os evangélicos, sobretudo os pentecostais e neo-pentecostais. A igreja cristã já esteve mais perto da esquerda marxista, depois do Concílio vaticano II e a Teologia da Libertação. Hoje o significado desta aliança é meramente tático e de natureza conservadora. De um lado, os neo-pentecostais e pentecostais têm um projeto de poder para o Brasil e vêm trabalhando seriamente, de eleição a eleição, para executá-lo - outro sentido não têm, aliás, as diversas marchas pré-eletorais com Cristo e as concentrações "gospel" em praças públicas e casas de shows. Até a Rede Globo aderiu, por razões comerciais, a essa avalanche "cristã". De outro, o governo petista, comunista (do B) e pesebista oportunisticamente resolveram cortejar o eleitorado evangélico, apoiando candidatos religiosos e oferecendo cargos em seus secretariados. A maior inovação "comunista" foi a da Prefeitura de Olinda, que instituiu uma secretaria das Igrejas e estimula ou apoia - junto com o governador "socialista" um curso de formação para ministros afro-religiosos. O próprio governador criou um cargo de secretário dado ao senhor Jorge Arruda - para "organizar" o campo religioso afro-brasileiro em Pernambuco.

Tudo isto convergiu nos últimos dias para a edição de duas medidas extremamente polêmicas: a isenção das Igrejas para o envio de dinheiro ao exterior e a autorização da Prefeitura do Recife para que uma Igreja evangélica explorasse um estacionamento e um Hotel na avenida Mário Melo. Imagino que esses negócios "religiosos" deverão contar com a total isenção de impostos, em nome de Cristo e da santa aliança religiosa-socialista.

É preciso meditar demoradamente sobre a repercussão dessas medidas público-religiosas num Estado laico e republicano, como o nosso. Por que as Igrejas, sejam de que denominação forem, estão isentas de impostos e dos controles fiscais, financeiros em relação a envio de dinheiro para o Exterior? Já não bastam as inúmeras denúncias de "lavagem de dinheiro", de evasão de divisas, de sonegação fiscal, em paraísos fiscais no exterior? Por que os ministros de Deus e de Cristo teriam esse privilégio? - Pior ainda, deve o Poder Público estimular, apoiar, beneficiar empreendimentos comerciais das Igrejas, sejam cristãs ou não?

A política de um estado laico e republicano é garantir a mais ampla liberdade de organização, expressão e de culto a todas as correntes e denominações religiosas (cristãs romanas ou não). E punir com severidade qualquer ato de vandalismo, intolerância, violência, discriminação contra qualquer uma delas (como aliás, no caso das discriminações sexistas e racistas). Mas daí a estimular, apoiar ou beneficiar qualquer um delas, há aí uma enorme distância.

Nas sociedades multiculturais, multiétnicas e multireligiosas de nossa época, só se concebe aquilo que se chama o "patriotismo da Constituição", qualquer medida tendente a beneficiar este ou aquele grupo cultural, étnico ou religioso pode levar a uma política de hegemonia cultural de certos grupos sobre outros e favorecer a uma onde de intolerância e desrespeito aos di reitos civis, sociais e de personalidade de diversos segmentos da população. Portanto, esse namoro dos petistas, socialistas e comunistas "bossa nova" de Pernambuco pode acabar muito mal. Respeitemos a Constituição e vivamos em paz.

Michel Zaidan Filho, cientista político e professor da UFPE

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