sexta-feira, 1 de março de 2013

A miséria da superação - Cristovam Buarque

Dilma corrompe o dicionário e cria a grave ilusão de que se pode erradicar a penúria sem garantir estruturas que impeçam o retrocesso

A presidenta Dilma Rousseff anunciou que, nos últimos anos, cerca de 22 milhões de brasileiros superaram a miséria. Os números podem estar certos, mas o conceito de superação está errado. Superar é saltar, uma conotação muito diferente do que suspender provisoriamente uma condição.

A realidade é que 22 milhões de brasileiros passaram a receber, a partir de 2011, o valor de R$ 70 mensais por transferência de renda. Essas transferências representam um raro gesto de generosidade da parcela rica para os pobres do Brasil.

É certo que essa generosidade já estava presente no gesto do governo do presidente Emílio Garrastazu Médici, no regime militar, com a criação da Previdência Social Rural/Prorural, em 1971. Podemos citar também a criação da Bolsa-Escola no Distrito Federal e em Campinas, em 1995. A ampliação deste programa, em 2001, pelo governo de Fernando Henrique Cardoso, para 4 milhões de famílias beneficiadas, só fez crescer a generosidade.

Mas foi o presidente Lula quem deu o salto para 12 milhões de famílias, ao colocar o programa como centro de sua política social, reunindo no Bolsa Família todos os programas de assistência social do governo federal. A presidenta Dilma não apenas ampliou o número de beneficiados, como complementou a rede de proteção social com os programas Brasil sem Miséria (2011) e Brasil Carinhoso (2012).

Graças a isso, o número de famílias em condições de penúria extrema, de desnutrição crônica, diminuiu substancialmente nos últimos 20 anos.

Primeiro, cabe observar que os 22 milhões de brasileiros que são apresentados como tendo superado a miséria recebem R$ 70 por mês. Isso equivale a R$ 2,34 por dia para uma família de cinco pessoas ou 1,4 pão por dia para cada um dos membros. Não são mais os retirantes que a fome expulsava de suas terras por comida, mas ainda não é possível afirmar que saíram da miséria.
Bastaria uma inflação de 8% ao ano para que, em quatro anos, os atuais R$ 70, sem reajuste, passassem a valer R$ 51,45, o que não compraria nem mesmo um pão por dia para cada membro da família.

Segundo, é grave a ilusão de que a miséria pode ser superada sem se assegurar a estrutura que permita o salto sem volta. Mesmo com a renda do Bolsa Família, os beneficiados permanecerão na mesma situação social. Continuarão sendo cidadãos sem educação, sem esgoto, sem água potável e sem condições de empregabilidade. Isso não é superação.

Terceiro, apesar de mitigar o sofrimento, o programa Bolsa Família não abre a porta de saída da extrema pobreza, não abole a miséria nem provoca um salto social sem retrocesso. Embora o governo não informe, há grande possibilidade de que alguns dos atuais pais beneficiados pelo Bolsa Família tenham sido crianças de famílias com a bolsa.

Cria-se um círculo que nega totalmente o conceito de superação aplicado aos resultados obtidos. Prova disso é que o governo comemora o aumento do número dos que recebem o Bolsa Família. Não comemora, no entanto, a redução do número dos que necessitam da transferência de renda do governo para compensar o que a estrutura social e econômica não faz para superar a miséria de forma sustentável, com mudanças estruturais e escola de qualidade para todas as crianças.

Ao dizer que houve superação da miséria, a presidenta corrompe o dicionário. Cria a ilusão que pode acomodar o espírito de solidariedade transformadora de que o país precisa. Todos sonham com a superação da miséria, não com o conceito de superação empobrecido.
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Cristovam Buarque, 69, professor da Universidade de Brasília (UnB), é senador da República pelo PDT-DF

Fonte: Folha de S. Paulo

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