domingo, 10 de março de 2013

Renda para sair da miséria não paga nem dieta básica

Governo adota R$ 70 para erradicar pobreza extrema, mas comida requer R$ 103

Linha baixa para deixar de ser miserável facilita cumprir promessa que será vitrine de Dilma para reeleição em 2014

João Carlos Magalhães, Johanna Nublat

BRASÍLIA - Os R$ 70 mensais per capita que a gestão Dilma Rousseff estabeleceu como linha de corte para erradicar a miséria são insuficientes para comprar os alimentos da dieta mínima recomendada pelo próprio governo federal.

Simulações da Folha mostram que, para adquirir as porções de comida estabelecidas no "Guia Alimentar para a População Brasileira", do Ministério da Saúde, seriam necessários, no mínimo, R$ 103 mensais -ou quase 50% a mais do que os R$ 70.

A diferença confirma aquilo que estudiosos já apontam desde 2011, quando o governo federal anunciou a criação da "linha oficial" da miséria, nunca atualizada pela inflação: ela é baixa demais.

A escolha do valor tem contornos eleitorais porque é a partir dele que Dilma vai mensurar seu esforço para erradicar a miséria no país, promessa feita em 2010 e futuro cerne de sua propaganda para tentar a reeleição em 2014.

Foi a partir desse critério também que, há mais de duas semanas, a presidente anunciou o fim da "miséria cadastrada" -por ter zerado, com uma expansão do Bolsa Família, o número de miseráveis no cadastro federal de pessoas com baixa renda.

Ao escolher uma linha baixa, Dilma tornou mais fácil cumprir a promessa -já que um teto menor acarreta menos pessoas extremamente pobres a serem resgatadas pelos programas sociais.

Apesar de o consumo alimentar mínimo ser um dos critérios mais tradicionais no desenho de linhas de miséria, não há unanimidade sobre a maneira de defini-las.

Por isso, diferentes entidades estipulam diferentes valores -a FGV (Fundação Getulio Vargas), por exemplo, tinha uma linha de R$ 138, quase o dobro dos R$ 70.

Preços mais baixos

O valor mínimo para pagar a dieta básica recomendada pelo governo se baseou nos preços médios captados em 19 cidades pelo Dieese.

A reportagem aglutinou os preços mais baixos encontrados, mesmo que em diferentes municípios, sem levar em conta a variedade de alimentos nas refeições e desconsiderando a inflação a partir do início do ano (os preços disponíveis eram os de janeiro).

Os preços individuais de cada cidade mostram um cenário ainda mais oneroso. Em Campo Grande, por exemplo, a dieta mínima custaria R$ 129; em São Paulo, R$ 155; em Manaus, R$ 193.

Os preços foram calculados antes da desoneração da cesta básica anunciada na sexta-feira, que não alteraria, no entanto, as conclusões.

Plano alimentar mínimo é rico em calorias, mas pobre em nutrientes

Segundo especialistas, com essa dieta é possível ficar obeso e desnutrido ao mesmo tempo

Nutricionista afirma que guia do governo está desatualizado; ministério diz seguir normas internacionais

Especialistas que analisaram a dieta criada pela Folha para testar o limite da linha de miséria de R$ 70 afirmaram que fazer uma alimentação realmente equilibrada sairia ainda mais caro.

"Com todas essas calorias e na falta de vários nutrientes, podemos manter o peso elevado, mas sem saúde. Vai ter uma população até obesa, e desnutrida. Essa dieta teria que ser mais cara", afirma Celso Cukier, médico nutrólogo do Instituto de Metabolismo e Nutrição.

Para a nutricionista funcional Daniela Jobst, apesar de ser o último documento oficial, o guia do Ministério da Saúde está desatualizado.

Jobst trocaria, por exemplo, uma porção de cereais e uma de leite por mais uma de carne ou ovos.

"Essa diretriz é muito básica. Tem muita porção de farináceos, que até são mais baratos. As coisas boas para a saúde acabam sendo mais caras", afirmou a especialista em nutrição funcional.

Procurado, o Ministério da Saúde afirmou que o guia, de 2006, é o documento mais recente com diretrizes alimentares, baseadas em recomendações internacionais.

De acordo com o ministério, o documento está em reavaliação, feita rotineiramente. A pasta não quis, no entanto, se manifestar sobre o teor da reportagem.

Alternativas

O fato de R$ 70 não serem suficientes para comprar os alimentos da dieta não significa que quem ganha menos do que esse valor morreria de fome.

Boa parte dos miseráveis usa restaurantes populares (com refeições por R$ 1,25), se alimenta do que planta ou coleta, recebe comida como esmola, come na escola ou troca pequenos serviços por alimentação.

Fonte: Folha de S. Paulo

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