terça-feira, 5 de março de 2013

Uma Primavera Vaticana? - Hans Küng*

A Primavera Árabe abalou diversos regimes autocráticos. Com a renúncia do papa Bento XVI, não seria possível ocorrer algo semelhante dentro da Igreja Católica Romana - uma Primavera Vaticana?

Naturalmente o sistema da Igreja Católica se assemelha menos ao da Tunísia ou Egito que ao de uma monarquia absoluta como a Arábia Saudita. Tanto na Igreja como na Arábia Saudita não ocorreu nenhuma reforma autêntica, apenas concessões de menor importância. Em ambos os casos, a tradição é mantida em oposição à reforma. Na Arábia Saudita, essa tradição remonta a apenas dois séculos. No caso do papado, a 20.

Mas, trata-se de uma tradição real? Na verdade, durante um milênio a Igreja não teve um papado monarquista absolutista como conhecemos hoje.

Foi somente depois do século 11 que "uma revolução de cima", a Reforma Gregoriana, iniciada pelo papa Gregório VII, estabeleceu três características distintivas do sistema católico romano: um papado absolutista centralizado, um clericalismo compulsório e a obrigação do celibato dos padres e outros do clero secular.

As tentativas de reforma dos concílios no século 15, os reformadores do século 16, o Iluminismo, a Revolução Francesa nos séculos 17 e 18 e o liberalismo no século 19 obtiveram um sucesso apenas parcial em termos reformistas. Mesmo o Concílio Vaticano II, de 1962 a 1965, embora tenha resolvido muitas questões levantadas por reformadores e críticos modernos, foi frustrado pelo poder da Cúria, órgão que governa a Igreja, e conseguiu implementar apenas algumas das mudanças requeridas.

Até esta data a Cúria, que no seu atual formato é também um produto do século 11, tem sido o principal obstáculo a qualquer reforma profunda da Igreja Católica, a qualquer entendimento ecumênico honesto com outras igrejas cristãs e religiões, a qualquer atitude construtiva e crítica em relação ao mundo moderno. Sob a direção dos dois últimos pontífices, João Paulo II e Bento XVI, observamos um retorno fatal aos velhos hábitos monárquicos da Igreja.

Em 2005, em uma das raras ações mais audaciosas de Bento XVI, ele manteve uma conversa amigável de quatro horas comigo em sua residência de verão em Castelgandolfo, em Roma. Fui seu colega na Universidade de Tübingen e também certamente seu mais severo crítico. Durante 22 anos, graças à revogação da minha licença para lecionar teologia por ter criticado a infalibilidade papal, não tivemos o menor contato privado.

Antes da reunião, decidimos deixar de lado nossas diferenças e discutir temas sobre os quais poderíamos chegar a um acordo: o relacionamento positivo entre a fé cristã e a ciência, o diálogo entre religiões e civilizações, e o consenso ético através de crenças e ideologias.

Para mim, na verdade para todo o mundo católico, o encontro era um sinal de esperança. Mas infelizmente o pontificado de Bento XVI foi marcado por crises e decisões equivocadas. Ele irritou as igrejas protestantes, judeus, muçulmanos, indígenas da América Latina, mulheres, teólogos reformadores e todos os católicos que defendem mudanças.

Os maiores escândalos durante seu papado são conhecidos: o reconhecimento da arquiconservadora Sociedade do Santo Pio X, do arcebispo Marcel Lefebvre, que se opõe veementemente ao Concílio Vaticano II, como também de um clérigo que nega o Holocausto, o bispo Richard Williamson.

Houve abuso sexual generalizado de crianças e jovens por parte de clérigos, e o papa fez-se responsável por encobrir os fatos, isso quando era apenas o cardeal Joseph Ratzinger. Mais tarde eclodiu também o chamado escândalo do "Vatileaks", que revelou uma assustadora quantidade de intrigas, lutas pelo poder, corrupção e deslizes sexuais na Cúria, o que parece ter sido a principal razão da saída de Bento XVI.

A primeira renúncia de um papa em cerca de 600 anos deixa clara a crise fundamental que ameaça uma Igreja petrificada. E agora o mundo todo pergunta: apesar de tudo isso, o próximo papa conseguirá dar início a uma nova primavera na Igreja Católica?

Impossível ignorar as necessidades desesperadas da Igreja. Há uma escassez catastrófica de padres, na Europa, na América Latina e na África. Um número enorme de pessoas vem abandonando a Igreja ou se decidiu por uma "migração interna", especialmente nos países industrializados. Há uma perda de respeito inequívoca pelos bispos e padres, alienação, particularmente por parte das mulheres mais jovens, e o fracasso para integrar os jovens na Igreja.

Penso que não devemos nos deixar levar pela cobertura na mídia dos grandiosos eventos de massa em torno do papa, ou com os aplausos entusiastas de grupos de jovens católicos conservadores. Por trás dessa fachada, a casa inteira está desmoronando.

Nessa situação dramática, a Igreja necessita de um papa que não viva intelectualmente na Idade Média, que não defenda nenhum tipo de teologia, liturgia ou constituição da Igreja que seja medieval. Ela precisa de um papa que esteja aberto aos desejos de reforma, à modernidade. Um papa que se levante em defesa da liberdade da Igreja no mundo não apenas fazendo sermões, mas lutando com palavras e ações pela liberdade e pelos direitos humanos dentro da Igreja, no que diz respeito aos teólogos, às mulheres e todos os católicos que desejem falar a verdade abertamente. Um papa que não mais obrigue os bispos a se conformarem com uma linha partidária reacionária, que ponha em prática uma democracia justa na Igreja, nos moldes da cristandade primitiva. Um papa que não se permita ser influenciado por um papa das sombras. baseado no Vaticano, como Bento e seus leais seguidores.

De onde virá esse papa não é um fator crucial. O Colégio Cardinalício precisa simplesmente escolher o melhor. Infelizmente, desde a época de João Paulo II, um questionário tem sido usado de modo que todos os bispos sigam a doutrina católica romana oficial nos assuntos controversos, um processo selado por um voto de obediência incondicional ao papa. É por isso que até agora não temos dissidentes públicos entre os bispos.

Mas a hierarquia católica vem sendo alertada do fosso existente entre ela e os leigos em importantes questões da reforma. Uma pesquisa recente na Alemanha mostra que 85% dos católicos são a favor de os padres se casarem, 79% são favoráveis a que pessoas divorciadas voltem a se casar na Igreja e 75% são pela ordenação de mulheres. Dados similares provavelmente seriam observados em muitos outros países.

Poderemos ter um cardeal ou um bispo que não deseje simplesmente prosseguir na mesma rotina? Alguém que, em primeiro lugar, saiba quão profunda é a crise da Igreja e, em segundo, conheça os caminhos que poderiam tirá-la dessa crise?

Essas questões precisam ser discutidas abertamente antes e durante o conclave, sem se impor um silêncio dos cardeais, como ocorreu no último conclave, em 2005.

Sendo eu o último teólogo atuante que participou do Concílio Vaticano II (com Bento XVI), me pergunto se não haveria no início do conclave, como ocorreu no início daquele concílio, um grupo de cardeais corajosos que consiga encarar os católicos romanos radicais e exigir um candidato disposto a se aventurar em novas direções. Isso poderia ocorrer em um novo concílio de reforma ou, melhor ainda, uma assembleia representativa de bispos, padres e leigos.

Se o próximo conclave eleger um papa que siga pela mesma velha estrada, a Igreja jamais viverá uma nova primavera, mas entrará numa nova era do gelo, com o risco de encolher a ponto de se tornar uma seita cada vez mais irrelevante.

(Tradução de Terezinha Martino)

* Hans Küng é sacerdote, escritor, professor emérito de teologia na Universidade de Tübingen, Alemanha, presidente da global Ethic Foundation. Escreveu este artigo para The New York Times

Fonte: Aliás / O Estado de S. Paulo

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