sábado, 6 de abril de 2013

A vida em branco - Miguel Reale Júnior*

Seria verdade que o homem, ao ser expulso do paraíso, sofreu como condenação ter de trabalhar? O trabalho é um castigo? Seria o ócio uma dádiva? Independentemente da necessidade de trabalhar para ganhar o sustento, muitas vezes enfrentando tarefas enfadonhas e repetitivas, impondo-se o deslocamento de casa até a fábrica ou o escritório, com horas de sacrifício dentro do metrô ou do ônibus, penso que o trabalho dá sentido à vida.

Somos condenados a viver. A não ser a instigante hipótese reencarnacionista, pela qual o espírito concorda em voltar ao mundo para passar por novas experiências e novos desafios, nas demais religiões ou no ateísmo se reconhece que não fomos consultados se queríamos nascer ou não. Nascemos e nas condições que se apresentam, devendo enfrentar a situação de filho de beltrano e de sicrana, rico ou pobre, brasileiro, suíço ou angolano. Viver é uma aventura que de plano enfrenta o barulho depois do confortável silêncio do útero materno. Inicia-se o percurso e cabe a cada qual afirmar sua individualidade.

Para preencher o dia a dia que se impõe, a criança, pobre ou rica, brinca na rua ou em casa, vai à escola, faz os deveres escolares, cumpre obrigações a pedido da mãe. Brincar e estudar constituem o trabalho desejado e obrigatório até os 14 anos, visando a construir a formação de uma pessoa. Formação para quê? Para, em sendo adulto, ter uma profissão, em suma, trabalhar.

Cada qual se põe na vida diante desta empreitada: obter sua realização pessoal. Mesmo na Idade Média, quando se dividiam, como diz Le Goff, as pessoas nas categorias dos que lutam e defendem com armas o feudo, dos que oram, rezam para enaltecer a Deus e obter sua proteção e dos que trabalham com as mãos, não deixava de haver afazeres para os diversos estamentos.

Pela via do trabalho a pessoa marca sua individualidade, assinala sua passagem por esta vida, ocupa as horas do cotidiano visando a construir sua autoestima e a conquista importante do reconhecimento dos demais. Não é por acaso que ao se conhecer alguém a primeira pergunta que assoma dirigir-lhe é: o que você faz?

Ao se perceber o que o interlocutor faz, desenha-se no espírito a sua imagem, o seu universo de interesse, sobre o qual pode haver nossa curiosidade, nosso respeito ou até mesmo nosso desdém. Mas surge uma definição de quem é o novel conhecido ao se saber sua profissão ou seu afazer.

O trabalho atua em duas frentes: permite, de um lado, que as pessoas se afirmem perante si mesmas, motivando a busca de realização, podendo trazer orgulho no sucesso ou dor diante de eventual fracasso; e, de outro lado, faz surgir entre os consorciados o reconhecimento de uma condição própria como sapateiro, mecânico, médico, professor, cozinheiro. Esse espaço na sociedade causa satisfação ou desilusão, se reconhecido como o melhor sapateiro do bairro ou como o pior cozinheiro da região.

Discípulo de Habermas, Axel Honneth (Luta por Reconhecimento, ed. 34, 2011, reimpresssão) bem assinala que se imbricam a autoestima e a aprovação social, pois a autorrelação bem-sucedida depende do reconhecimento dos demais acerca de suas capacidades e realizações, de forma a se abrir uma falha no indivíduo caso não tenha tido, em momento algum, assentimento social, com o consequente surgimento da vergonha.

Preocupante, contudo, é não querer ocupar um lugar no mundo, a ser alcançado com o esforço próprio, modesto ou ilustre, mas fruto da disposição da conquista. O fundamental é viver para instituir uma identidade, uma definição perante os demais, com resultado positivo ou negativo, pois pior do que o insucesso é não ter tido a coragem e o ânimo de sair a campo com as próprias pernas para tentar obter a felicidade na realização de si próprio.

Assim, fracassar na execução de uma profissão ou ofício é do jogo da vida. Mas frustrante mesmo é nem sequer entrar no jogo para fazer algo com sua cara, com seu jeito, da sua forma, esperando infantilmente contar com acontecimentos externos para conseguir preencher o vazio de uma existência sem rosto.

Dois fenômenos da atual sociedade digital, na qual mais se mexem os dedos no iPhone do que se ativam os neurônios, indicam uma falsa felicidade não derivada da efetivação de um projeto, ou, como dizia Ortega Y Gasset, do irrenunciável projeto de si mesmo, mas sim de fatores marcadamente efêmeros, visivelmente enganosos: os relacionamentos na rede do tipo Facebook e o culto às celebridades.

A urgência hoje vivida de compartilhar imediatamente todos os acontecimentos (ouvir uma música, comprar uma roupa, deliciar-se com um vinho, trocar um olhar) retira a vivência da realidade do âmbito individual, pois o essencial é antes dividir com alguém o sucedido para receber imediatamente o assentimento elogioso do que sentir isoladamente o prazer do fato, transformando-se, dessa maneira, o mundo numa grande academia do elogio mútuo. A satisfação, então, vem de fora, pois algo só vale se outrem vier a curtir. Instala-se um novo cartesianismo: eu compartilho, logo existo.

Outra futilidade alienante domina os espíritos: a celebração das celebridades, os famosos, a mais perfeita criação artificial da mídia. Acompanha-se a existência de um ex-BBB, por exemplo, desde sua ida à praia ou a uma festa, como se fosse a própria vida. Ídolos passageiros, sem conteúdo, apenas virtuais, povoam a fantasia.

A existência perde consistência. Muitos são os espíritos empreendedores, porém, infelizmente, repetem-se hoje jovens para os quais a conquista árdua, a afirmação profissional, deixa de ser importante para que eventuais fracassos não sejam sofridos, mas disfarçados, driblados pelo compartilhamento elogioso de momentos irrelevantes ou pelo consumismo desenfreado, que substitui o ser pelo possuir.

A vida deixa de ter cor, passa em branco.

* Advogado, professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça

Fonte: O Estado de S. Paulo

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