domingo, 9 de junho de 2013

O Caboclinho do Brasil – Ivan Alves Filho

- "A senhora pode ficar tranqüila, o guri vai nos acompanhar".

Quem assim se expressava, quase em tom de súplica, sentado no sofá da sala do nosso apartamento, era o seresteiro Sílvio Caldas, que pretendia arrastar meu pai para um espetáculo em que ele estava atuando em Copacabana e praticamente me oferecia como garantia de que a farra não correria solta.

"O guri vai nos acompanhar". Minha mãe ainda relutou. Ela conhecia a fama de boêmio de Sílvio Caldas, o Caboclinho do Brasil, e mais ainda aquela de meu pai - mesmo assim acabou concordando. Afinal, a presença do filho pequeno na área deveria impedir
maiores estripulias. Eu era uma garantia e tanto, pelo visto. E um pedido de Sílvio Caldas não era de se desprezar.

Bem, o lugar para onde me levaram era um "inferninho", ou seja, uma daquelas boates de entrada proibida para menores de 21 anos. E eu era menor...de dez! Esses "inferninhos" - o nome é altamente revelador - formavam um desses lugares para lá de descontraídos, para dizer o mínimo. Tão descontraídos que a "dura" volta e meia baixava no "recinto", dando uma "incerta" na rapaziada. Eram os tempos da Bossa Nova e cantores como Sílvio Caldas, com um repertório de serestas e sambas tradicionais, tinham de disputar mercado com a turma da Zona Sul, que inventara uns acordes dissonantes e desandara a fazer sucesso em determinada faixa de público. O público da Zona Sul, justamente.

No "inferninho", a mistura era explosiva. Bebidas, mulheres da vida - que eram de morte! - músicos, malandros, jornalistas, escritores - boêmios militantes todos. Uni-vos, meus caros, uni-vos! Liberdade ainda que tarde da noite!

Pois não é que naquela noite, exatamente naquela noite, a "dura" resolveu agir? E meu pai e seus amigos tiveram de me esconder. Não havia tempo a perder. Enquanto Sílvio Caldas cantava no minúsculo palco do "inferninho", eu era empurrado com certa agilidade para debaixo da mesa, onde fiquei protegido por uma providencial toalha de linho branco que atingia até quase o chão (que não estava salpicado de estrelas). Os "tiras" não pensaram em olhar por debaixo da mesa - seria uma indelicadeza levantar a saia da mesa e eles eram homens da maior correção, naturalmente - e tive de esperar que partissem para voltar à superfície - mas não exatamente à vida legal. Se alguém ali estava no inferno, esse alguém era eu.

Para minha surpresa, quando pus a cara de fora, recebi uma estrondosa, uma consagradora salva de palmas. A boêmia carioca me acolhia prematuramente como uma de suas mais jovens promessas.

Aquela foi a primeira vez, na vida, que eu escaparia da polícia.

Ivan Alves Filho, historiador e jornalista

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