sexta-feira, 5 de julho de 2013

Bom para pensar - Maria Alice Rezende de Carvalho *

Assim como as ruas vêm se manifestando de forma clara e contundente, também o entendimento acerca dessa manifestação não tem conhecido maiores disputas. Trata- se, reconhecidamente, do mais importante movimento em prol de direitos num Brasil urbano, democrático e economicamente em expansão.

É claro que há avaliações precárias sobre os tempos em que vivemos:as que apontam a recente alta da inflação como o caldo da fervura, as que denunciam o poder da mídia burguesa, as que acreditam ser esse um movimento orquestrado pela direita radical‟(SIC). Mas, sinceramente, ainda que tais ideias possam animar acólitos de seus formuladores, suas premissas, se convertidas em iniciativas governamentais, não demoveriam a sociedade do seu impulso atual. Ou alguém crê que centavos abatidos do preço do transporte público ou mesmo o cerceamento da chamada mídia burguesa poderão retrazer o Brasil à situação ex ante?

As ruas avançaram muito e querem mais; e uma dimensão desse desejo consiste em se unir ao movimento globalizado por direitos, cujas colorações locais não desmarcam sua vocação transnacional, planetária. Até hoje, o movimento social que continha, com exclusividade, esse caráter e que, não atoa, realizou a grande revolução do século 20, uma revolução surda, invisível, mas que mudou a vida no planeta, foi o movimento feminista. A afirmação da mulher onde quer que ela se dê, no lar ou na arena pública, é o maior legado do século passado e a maior potência a animar a relação entre humanos, inumanos, artefatos e símbolos. E se „juventude‟, como categoria analítica, encerra as dificuldades sabidas, é mediante sua aproximação com a “revolução feminina”que se pode, talvez, começar a arranhar a compreensão do fenômeno em curso.

Nos arredores de Paris, nos anos de 1990, em bairros pobres de Londres, nos 2000,em praças de importantes cidades do Oriente Médio e Norte da África,a partir de 2010,no Zuccotti Park, em New York, no outono de 2011, e,ainda hoje, em torno do ameaçado Parque Gezi, de Istambul, a experiência de jovens amotinados, há 30 anos, é similar à que tem curso nas praças brasileiras – da maior à menor pracinha de municípios até ontem mortos. Há fatores demográficos envolvidos – em alguns casos como efeito de políticas modernizantes já disparadas –; há demandas pela moralização da política e pela diminuição dos índices de corrupção aferidos pela Transparency International, sediada em Berlim; há a valorização da liberdade e da desmilitarização em regimes autoritários e democráticos; e, afinal, um componente performático irremovível, pois, como disse um jovem traficante entrevistado em pleno calor dos saques londrinos, “você sabe como funciona a mente dos britânicos. Rola concorrência o tempo todo. Se em Tottenham as gangues quebram tudo, em Croydon ou em Chatham as gangues vão querer fazer pior.”

Há performance no movimento das ruas – performance como aspecto estruturante da atual argumentação pública em torno de direitos. Não se trata apenas de defendê-los, vocalizá-los, mas de agenciar identidades construídas em público, no movimento. E se a revolução feminina foi silenciosa e distendida ao longo do tempo, a revolução juvenil tem urgência, irreverência e força, além de outro diferencial importante: é mais inclusiva.São poucos e limitados, até agora, os momentos em que a política se investiu da identificação feminina, como no movimento das madres de La Plaza de Mayo ou, mais recentemente, no das mujeres de blanco, que tem curso em Cuba. Mas, no caso da identificação juvenil, é desnecessário perguntar quem não foi rejuvenescido pela energia das ruas?De sorte que, um mundo que se entregara à crença no fim da história, um mundo enrijecido e burocrático, que via na “civilização dos segurados” seu melhor índice de acerto, naufraga diante de nós. Haverá tempos e colorações distintas nesse naufrágio, mas o fenômeno é universal e diz da vitalidade da política e da luta pela ampliação do seu escopo.

Portanto, política e direitos são termos entrelaçados no movimento das ruas. E se é verdade que tal movimento vem sendo devidamente entendido no seu sentido geral, há que pensar algumas temáticas que o emolduram e que deverão seguir conosco, reflexivamente. A primeira delas diz respeito à centralidade da questão urbana no mundo contemporâneo e, se quisermos, no Brasil, país que, nos últimos 100 anos,viu a população residente em suas cidades caminhar progressivamente até a marca atual de 85% da população total. O percentual é suficientemente expressivo para que entendamos que, hoje, nossas tensões distributivas estão contidas nessa moldura urbanística.Ainda mais se nosso modelo de cidade é o extensivo ou rodoviário.

O modelo rodoviário de cidades, como a ele se referiu Milton Santos ainda no começo dos anos de 1990, não é uma exclusividade brasileira, caracterizando-se por afastar o trabalhador do centro urbano e levando-o a percorrer vários quilômetros por dia, entre os dois principais polos de sua existência: casa-trabalho-casa. No Brasil, contudo, esse modelo foi implantado nos anos de 1960, a partir da opção governamental pelo transporte rodoviário em detrimento do transporte sobre trilhos, que era, até então, a forma convencional de estruturação da malha urbana. Tal opção não obedeceu, é claro, a critérios urbanísticos, afinando-se com iniciativas voltadas ao desenvolvimento da indústria automobilística. E a ditadura militar impediu que os efeitos desse novo lançamento do capitalismo no país fossem dosados, avaliados, revistos, eventualmente. Ela simplesmente recalcou o problema diante de uma classe trabalhadora reprimida e progressivamente desorganizada.

Hoje, mais de duas décadas após a promulgação da Constituição de 1988, a agenda da democratização brasileira ainda não havia lancetado esse tumor. Nesse sentido, as ruas tocaram o cerne da nossa experiência cidadã ao não permitirem que se aumentasse o pagamento por um serviço discricionário, que humilha e degrada o trabalhador, que não faculta a ele, com igualdade de condições, o acesso à cidade. A cidade como bem-público, que vinha sendo encurtada na sua dimensão política teve aí um primeiro sopro de vitória. Há, nesse caso, um dever de casa a ser executado pelas autoridades governamentais; mas, independente do que venham a fazer, o entendimento acerca do desastroso modelo rodoviário, que sobrevive como um entulho autoritário nas cidades do Brasil, foi sedimentado entre todos os cidadãos.

Outra questão a ser destacada, e que se articula à primeira, diz respeito aos vínculos entre democratização urbana e tecnologias de comunicação e informação. Não é possível aventurar-se nesse oceano usando boia de pneu – não o farei. Mas o aspecto a ser destacado é que a literatura sobre cidades jamais conviveu positivamente com a emergência dessas tecnologias, atribuindo a elas o risco da atomização dos urbanistas, o fastio de cidade. Chegou-se a aventar que as vias engarrafadas das megacidades encontrariam uma solução “natural”, na medida em que homens e mulheres desistiram das ruas, substituindo seus deslocamentos físicos pelas trocas facultadas pela internet. Nesse mundo imaginado – e que aqui conhece uma exageração –, o argumento central, embora subentendido, era o da progressiva reunião virtual de iguais, ao modo de condomínios de ideias, valores e práticas, replicando, aliás, o ambiente urbano das últimas décadas. Contudo, ao longo desse último mês, o que se observa é que as redes e as ruas foram sendo tomadas pela diversidade – fato que, por um lado, torna o cenário potencialmente mais explosivo, porém, por outro, retraz a cidade à sua mais profunda figuração humanista, republicana.

Por fim, uma terceira questão política que deverá alimentar nossa reflexão sobre os atuais acontecimentos concerne à democracia representativa e, mais especificamente, à noção de que a institucionalização democrática não se esgota no funcionamento do regime; ela prevê "condições adicionais‟ que extrapolam a definição restrita de democracia. Uma dessas condições consiste, por exemplo, na permanente reconstrução de uma identificação social comum, sem a qual o sentimento de participação no jogo se vê arrefecido e a democracia, fragilizada. Portanto, o regime democrático é central, mas deve ser permanentemente inquirido a partir das suas margens – lugar que pode oferecer um ponto de vista revelador daquilo que permanece oculto ou naturalizado sob a rotina das instituições.

Após um mês de efervescência das ruas, pode-se dizer que o principal saldo político do movimento não foram as respostas pontuais das autoridades às demandas da população, embora seja essa a perspectiva do regime. O principal saldo consistiu na construção de uma “comunidade”não essencializada e indeterminada, isto é, na formação „em ato‟ da vontade coletiva, apoiada na intersubjetividade e em pressupostos pragmáticos dos atores. E isso é tão importante porque o fato de indivíduos ordinários terem criado um novo padrão cultural de comunidade extrai a possibilidade de renovação democrática da chave da utopia, dos maciços filosóficos, de seus intérpretes exclusivos e suas lideranças exotéricas.

Estamos diante de um movimento que dialoga com a sugestão habermasiana de que a solidariedade possível na modernidade tardia é a que se fundamenta racionalmente. Uma solidariedade reflexiva, sinônimo de interesse comum racionalmente obtido. Estamos todos juntos, por ora e afinal.

*Professora do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio e Membro da Coordenação do Centro de Estudos Direito e Sociedade (CEDES-PUC-Rio).

Fonte: Boletim CEDES – julho-setembro 2013

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