segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Partidos são, de fato, necessários? - Renato Janine Ribeiro

As decisões do TSE, negando registro ao Rede e concedendo-o a dois partidos desconhecidos, suscitam uma pergunta radical: partidos são mesmo necessários? Ainda mais porque o Rede, embora seja partido, defende candidaturas avulsas, como há em vários países do mundo. O assunto merece debate.

Uma forma de democracia - a democracia dos partidos - triunfou após a II Guerra Mundial. A democracia é o poder do povo, mas há vários modos de implantá-lo. A democracia dos partidos é típica só de nossa época, tão diferente da Atenas antiga, mas tem o grande mérito de ser o modo pelo qual ela, finalmente, se globalizou. Só que isso traz problemas sérios. Convém apontá-los, até porque um lugar comum brasileiro sobre o aprimoramento da democracia passa pelo mantra de que a democracia depende de partidos fortes, ponto esse que foi contestado nas ruas em junho.

Essa forma de democracia é criação anglo-saxônica. Consolida-se no Reino Unido, Estados Unidos, Canadá. Espraia-se pela Europa ocidental. Ganha o mundo ao se difundir pela Ásia (Índia, Japão), América Latina e Europa oriental. Só que exige uma sociedade constituída por indivíduos livres, mas individualistas. Supõe que cada um de nós tome decisões rompendo com seus vínculos de grupo. Essa liberdade do indivíduo em face dos outros e de sua história é sua maior condição. Mas não é óbvio que isso sempre seja bom. E essa não é a única forma boa de democracia.

O Ubuntu e a política sem partidos

Porque esse experimento histórico é problemático. Primeiro, exclui do poder quem não pertence ao partido (ou à coligação) que vença as eleições. Quem perde a eleição não pode cooperar com o poder. Isso é desnecessário e mesquinho. A divisão em facções faz que o vencedor não só assuma a liderança política, mas aparelhe o Estado. Disso é acusado o PT, mas o PSDB não faz por menos - basta ver a preferência da TV Cultura por entrevistados tucanos numa área, o jornalismo, que deveria ser imune a injunções partidárias. Assim é a democracia dos partidos.

Isso decorre de um segundo defeito. A frase do catolicismo triunfante - "Não há salvação fora da Igreja" - cabe aqui: não há política fora dos partidos competitivos. Temos poucas opções de participação política. Há partidos para vários gostos. Mas quem não se encaixar nos poucos com chances de êxito eleitoral só haverá de falar, sem agir: "Verba, non acta".

Terceiro, cai a pluralidade de opiniões. Quando o PDT se constituiu, fez um debate para tomar posição sobre a condição feminina. O tema é crucial, mas não é óbvio que um partido deva ter posição única a respeito. Recordo uma reunião da revista "Teoria e Debate", do PT, de cujo conselho eu era membro, na qual um militante defendeu que o periódico discutisse o que seria o modo petista de amar. Ora, petistas amariam de forma diferente de peemedebistas? Entendo a preocupação generosa de democratizar o mundo afetivo. Mas me choca ver até onde vai a partidarização de um mundo complexo.

Partidos evocam o verbo partir: cindir, rachar, dividir. Nascem da ideia de que a sociedade não precisa ver o mundo de uma só forma, de que o conflito é legítimo e até mesmo a norma em nosso mundo - uma tese positiva, aberta, com a qual concordo. Mas o máximo que conseguimos é, em vez do pensamento único, dois ou três pensamentos.

Essa política não serve em sociedades de forte teor grupal. Para nós, ocidentais, soa absurdo que em eleições democráticas tribos votem de forma unida, tribalizando a política, rachando a sociedade segundo linhas étnicas, negando a liberdade individual de cada um escolher livremente o seu caminho. Mas, se para mim o principal for o laço com meus próximos, por que não? Se na Bolívia, hoje um Estado plurinacional, uma aldeia discutir o que lhe convém mais nas políticas públicas e seus moradores votarem coesos nas eleições, por que não? Mas, aí, a liberdade individual não faz sentido. O indivíduo faz pouco sentido.

Uma expressão resume essa visão que contrasta com a democracia vitoriosa de nosso tempo. É a palavra Ubuntu, a grande contribuição da África do Sul ao pensamento mundial. Quer dizer algo como "Somos, logo sou" - uma alternativa ao "Penso, logo existo", que desde Descartes molda a experiência ocidental com base no indivíduo racional. Ubuntu é "eu existo a partir de minha rede de relações sociais". Nada sou, sozinho. É uma ideia que faz sucesso, mundo afora, na área da educação. Vejam na internet o "Vamos ubuntar", que Lia Diskin escreveu para a Unesco. Devemos levar essa ideia para a organização política - porque pode criar uma sociedade na qual se dispute, sim, a hegemonia, mas não com base em indivíduos e sim em redes, e na qual não mais se promova a exclusão do derrotado.

Não estranha que o partido que não conseguiu registro de partido se chame "rede". Uma rede é horizontal, não vertical. Procura juntar o maior mundo de pessoas, em vez de excluir. Sequer deveria estabelecer lideranças - embora seja difícil fazer política sem elas, e Marina seja a líder mais inconteste que o Brasil viu desde Brizola e Lula. Não acredito que uma política funcione sem hegemonias atribuídas pelo voto. Mas dá para fazer política sem impor, a todos, que para participar do poder se encaixem numa das poucas identidades disponíveis (no Brasil, o duelo petistas/tucanos), e sem que o derrotado na disputa perca tudo. Abrir mais as identidades e admitir a participação no poder mesmo dos vencidos já bastaria para um avanço político notável. Mas isso supõe uma redução significativa do poder dos partidos, e que se aposente o mantra de que não há salvação fora deles.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.

Fonte: Valor Econômico

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