segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Morte e Vida Severina (2) – João Cabral de Melo Neto

Encontra dois homens carregando
um defunto numa rede,
aos gritos de “ó irmãos das almas!
Irmãos das almas! Não fui eu
quem matei não!”

— A quem estais carregando,
irmãos das almas,
embrulhado nessa rede?
dizei que eu saiba.

— A um defunto de nada,
irmão das almas,
que há muitas horas viaja
à sua morada.

— E sabeis quem era ele,
irmãos das almas,
sabeis como ele se chama
ou se chamava?

— Severino Lavrador,
irmão das almas,
Severino Lavrador,
mas já não lavra.

— E de onde que o estais trazendo,
irmãos das almas,
onde foi que começou
vossa jornada?

— Onde a caatinga é mais seca,
irmão das almas,
onde uma terra que não dá
nem planta brava.

— E foi morrida essa morte,
irmãos das almas,
essa foi morte morrida
ou foi matada?

— Até que não foi morrida,
irmão das almas,
esta foi morte matada,
numa emboscada.

— E o que guardava a emboscada,
irmão das almas
e com que foi que o mataram,
com faca ou bala?

— Este foi morto de bala,
irmão das almas,
mas garantido é de bala,
mais longe vara.

— E quem foi que o emboscou,
irmãos das almas,
quem contra ele soltou
essa ave-bala?

— Ali é difícil dizer,
irmão das almas,
sempre há uma bala voando
desocupada.

— E o que havia ele feito
irmãos das almas,
e o que havia ele feito
contra a tal pássara?

— Ter um hectares de terra,
irmão das almas,
de pedra e areia lavada
que cultivava.

— Mas que roças que ele tinha,
irmãos das almas
que podia ele plantar
na pedra avara?

— Nos magros lábios de areia,
irmão das almas,
os intervalos das pedras,
plantava palha.

— E era grande sua lavoura,
irmãos das almas,
lavoura de muitas covas,
tão cobiçada?

— Tinha somente dez quadras,
irmão das almas,
todas nos ombros da serra,
nenhuma várzea.

— Mas então por que o mataram,
irmãos das almas,
mas então por que o mataram
com espingarda?

— Queria mais espalhar-se,
irmão das almas,
queria voar mais livre
essa ave-bala.

— E agora o que passará,
irmãos das almas,
o que é que acontecerá
contra a espingarda?

— Mais campo tem para soltar,
irmão das almas,
tem mais onde fazer voar
as filhas-bala.

— E onde o levais a enterrar,
irmãos das almas,
com a semente do chumbo
que tem guardada?

— Ao cemitério de Torres,
irmão das almas,
que hoje se diz Toritama,
de madrugada.

— E poderei ajudar,
irmãos das almas?
vou passar por Toritama,
é minha estrada.

— Bem que poderá ajudar,
irmão das almas,
é irmão das almas quem ouve
nossa chamada.

— E um de nós pode voltar,
irmão das almas,
pode voltar daqui mesmo
para sua casa.

— Vou eu que a viagem é longa,
irmãos das almas,
é muito longa a viagem
e a serra é alta.

— Mais sorte tem o defunto
irmãos das almas,
pois já não fará na volta
a caminhada.

— Toritama não cai longe,
irmãos das almas,
seremos no campo santo
de madrugada.

— Partamos enquanto é noite
irmãos das almas,
que é o melhor lençol dos mortos
noite fechada.

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